Sangue de homem picado por cobras mais de 200 vezes é usado para criar novo antídoto
Usando amostras do sangue de Tim Friede, pesquisadores conseguiram isolar dois anticorpos e usá-los em um antídoto que protege contra 19 espécies de cobras.

Tim Friede é um ex-mecânico de caminhões de 56 anos que vive no Wisconsin, nos Estados Unidos, e tem uma paixão incomum: cobras. Durante 20 anos, ele aplicou mais de 700 doses de veneno na própria corrente sanguínea, e já foi mordido por algumas espécies venenosas de serpentes mais de 200 vezes, tudo para tentar desenvolver tolerância às picadas de ofídios.
Depois de muitos experimentos com níveis pequenos de veneno, que ele aumentava gradualmente, Friede percebeu que havia desenvolvido uma imunidade aos diferentes venenos de cobra incomum para seres humanos normais (que não foram picados centenas de vezes).
Então, em 2017, ele entrou em contato com o empresário e cientista Jacob Glanville, CEO da empresa Centivax, para tentar desenvolver um antídoto universal a partir de seu sangue.
Friede começou esse autoexperimento sem supervisão médica, só como herpetologista (especialista em anfíbios) amador. Ele é fascinado por cobras e escorpiões, e foi picado por acidente ou propositalmente diversas vezes.
A imunidade não existia antes da exposição: Friede já sofreu com convulsões e febres altas após doses de veneno, quase morrendo algumas vezes. Porém, sua irresponsabilidade facilitou a criação de um novo antídoto, que serve para 19 espécies de cobra diferentes.
Esse antídoto, desenvolvido pela equipe da Centivax, foi divulgado em um estudo científico publicado na revista Cell. O soro antiveneno foi testado em ratos e os protegeu contra as mordidas de algumas cobras classificadas entre as mais venenosas do mundo pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como a mamba-negra.
Como funciona o novo antídoto
Para desenvolver o novo antídoto, pesquisadores da Centivax e cientistas dos Institutos Nacionais de Saúde (agência governamental de pesquisa biomédica dos Estados Unidos) analisaram amostras do sangue de Friede e conseguiram identificar e isolar dois anticorpos produzidos pelo seu corpo depois de anos de exposição às toxinas dos ofídios.
Os dois anticorpos, junto de uma pequena molécula inibidora de toxinas conhecida como “varespladib”, foram capazes de neutralizar o veneno de 19 espécies diferentes de serpentes, desde najas a cobras-corais. Esses primeiros testes foram feitos em camundongos, mas a descoberta é promissora para ser usada em humanos após passar pelos procedimentos necessários.
De acordo com a OMS, entre 81 mil e 138 mil pessoas morrem anualmente por consequência de picadas de cobra – número que pode ser bem maior, já que muitos desses casos acontecem em áreas rurais de difícil acesso, sem ligação com hospitais ou órgãos governamentais.
Um antídoto desses seria um grande avanço para os soros antiofídicos porque a maioria deles só funciona para espécies específicas de cobras, às vezes precisando de uma composição diferente de uma região do mundo para a outra. Esse também seria o primeiro soro feito a partir de anticorpos humanos, já que os antídotos atuais usam células de defesa de cavalos ou outros animais domesticados.
Nessa fase de testes iniciais, o antídoto funcionou bem contra o grupo dos elapídeos, que agrupa espécies como as najas, cobras-corais e mambas-negras. Porém, o soro não apresentou eficácia contra a família das víboras, como as cascavéis e jararacas, muito comuns no Brasil.
Se o antídoto se mostrar seguro para ser usado em humanos em grande escala, vai ser um avanço importante para a área da saúde. Ele deve ser aplicado por via intramuscular, o que facilita seu uso em ambientes rurais sem profissionais de saúde. Além disso, não seria necessário identificar a espécie de serpente antes de administrar a dose.
A próxima fase da pesquisa vai ser usar esse antídoto em cachorros levados a clínicas veterinárias na por causa de mordidas de cobra na Austrália, país cheio de serpentes venenosas que mordem tanto animais quanto humanos.
Se ele não funcionar, os cães não estarão em risco: o veneno dos elapídeos vai paralisando o espécime sem causar dano aos tecidos, então depois da aplicação do antídoto ainda dá tempo de recorrer aos soros antiofídicos tradicionais.