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A nova crise dos mísseis

Os EUA anunciaram que irão instalar mísseis na Alemanha. A Rússia promete responder posicionando armas nucleares em Kaliningrado, seu enclave no mar Báltico. Entenda por que, após décadas de relativo equilíbrio, as duas potências voltam a travar uma corrida armamentista.

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
11 nov 2024, 10h00

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“Os Estados Unidos iniciarão a instalação episódica de armas de longo alcance pertencentes à sua Força-Tarefa Multidomínio na Alemanha em 2026, como parte do planejamento para o posicionamento desses recursos no futuro”, diz a breve nota divulgada pela Casa Branca em 10 de julho de 2024.

“Quando estiverem plenamente desenvolvidas, essas unidades convencionais [não nucleares] irão incluir SM-6, Tomahawk e armas hipersônicas em desenvolvimento, que possuem alcance significativamente maior do que as armas atualmente posicionadas na Europa.” Os SM-6 (Standard Missile 6) voam aproximadamente 500 km. Mas os Tomahawk têm autonomia de até 2.400 km – poderiam, portanto, ser usados para atacar a Rússia.

Infográfico, em fundo azul escuro, descrevendo a presença militar dos EUA no mundo.
(Lais Zanocco/Superinteressante)

O anúncio passou meio batido pela mídia ocidental, mas causou preocupação nos meios diplomáticos. Especialmente oito dias depois, quando veio a resposta: a Rússia ameaçou instalar mísseis nucleares em Kaliningrado, uma cidade de 500 mil habitantes à beira do mar Báltico que foi tomada pela Alemanha nazista, ocupada pela URSS ao final da Segunda Guerra Mundial, e hoje é um enclave russo.

Infográfico, em fundo azul escuro, descrevendo Kaliningrado, um enclave russo na Europa.
(Lais Zanocco/Superinteressante)

Fica bem na fronteira da Polônia, e a meros 500 km da Alemanha – que poderia se tornar um alvo, justamente por abrigar mísseis americanos. “Nem todas as armas deixam a Alemanha mais segura”, declarou o deputado Rolf Mutzenich, líder do SPD, o mesmo partido do chanceler (primeiro-ministro) da Alemanha, Olaf Scholz. Mutzenich, assim como outros membros do SPD, se manifestou contra a instalação de mísseis americanos em seu país.

A tensão aumentou no final de setembro. A OTAN (aliança militar que reúne os EUA e 31 outros países, em sua maioria europeus) vinha cogitando fornecer os mísseis Storm Shadow, produzidos pela França e pelo Reino Unido, para a Ucrânia utilizar em sua guerra com a Rússia.

Esses mísseis, que são lançados de caças, têm alcance de 550 km – permitiriam, portanto, que Kiev atacasse alvos bem dentro do território russo, não se limitando aos combates de fronteira, como hoje.

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Então a Rússia deu um tapa na mesa: anunciou que estava revisando sua doutrina nuclear. A versão anterior do documento, publicada em 2020, estabelecia que o país só empregaria armas nucleares para revidar um ataque, também nuclear, de outra nação. A nova doutrina mudou isso, passando a permitir o uso dessas armas em caso de “agressão contra a Rússia por estados não nucleares”, caso a ação seja “apoiada por uma potência nuclear”.

Foi um recado claro à França e ao Reino Unido, que se enquadram nessa categoria (pois têm bombas atômicas). Traduzindo: se os Storm Shadow fossem usados contra a Rússia, Moscou poderia disparar armas nucleares contra alvos em território britânico ou francês.

Isso acionaria automaticamente o temível Artigo 5 do estatuto da OTAN, que obriga os países-membros do bloco a revidar conjuntamente ataques a qualquer um deles. A Europa e os EUA estariam em confronto com a Rússia, iniciando a Terceira Guerra Mundial.

Não aconteceu porque, aparentemente, a advertência russa surtiu efeito. Até a conclusão deste texto, o Reino Unido não havia autorizado o uso dos Storm Shadow pela Ucrânia – e o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, procurou minimizar a relevância dessa arma, um sinal de que ela pode ser deixada de lado.

O mundo não chegava tão perto de um confronto entre potências nucleares desde a Crise dos Mísseis de 1962, quando a União Soviética decidiu instalar armas em Cuba – e a humanidade viveu os dias mais perigosos de todos os tempos.

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Dançando no precipício
“EUA impõem bloqueio militar a Cuba após encontrar instalações de mísseis ofensivos; Kennedy pronto para enfrentamento com os soviéticos.” Essa foi a manchete, com três linhas em letras garrafais, do New York Times em 23 de outubro de 1962.

Na noite anterior, o presidente dos EUA fizera um pronunciamento de 18 minutos, em cadeia nacional de rádio e TV, no qual descreveu o problema (a URSS estava instalando mísseis nucleares, com alcance de quase 2.000 km, em Cuba), anunciou um plano com sete etapas (a principal era o bloqueio naval da ilha) e ameaçou os russos: disse que as medidas dos EUA poderiam “ser apenas o começo” de algo maior, e que as forças armadas americanas estavam “preparadas para quaisquer eventualidades”, incluindo “uma resposta retaliatória total sobre a União Soviética”. “O custo da liberdade sempre é alto – e os americanos sempre o pagaram”, concluiu John Kennedy.

O que ele não disse foi que, no ano anterior, os EUA haviam instalado mísseis nucleares em bases americanas na Itália e na Turquia, de onde poderiam facilmente alcançar a URSS.

A instalação de armas soviéticas em Cuba (cujo governo os EUA haviam tentado derrubar em abril de 1961, com a fracassada invasão da Baía dos Porcos) era uma resposta a esse movimento, que dera aos EUA uma vantagem militar crucial: com seus mísseis posicionados perto da URSS, os americanos conseguiriam executar e concluir um ataque nuclear ao inimigo antes que ele pudesse reagir.

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Enquanto o discurso de Kennedy era transmitido, todas as forças militares americanas receberam a ordem de se colocar em DEFCON 3. A escala DEFCON (“condição de defesa”, em inglês) tem cinco níveis, que vão do 5 (estado normal) até o 1 (guerra iminente ou em curso). No nível 3, de prontidão elevada, a força aérea deve estar pronta para atacar em no máximo 15 minutos.

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No dia seguinte, a URSS respondeu. A imprensa russa divulgou uma longa mensagem, endereçada pelo líder soviético Nikita Khruschev a Kennedy, classificando o bloqueio naval como “um ato de agressão” dos EUA, que estavam “empurrando a humanidade para o abismo de uma guerra nuclear global”. “Nós não ficaremos meramente observando as ações de pirataria dos navios americanos.”

Em 25 de outubro, a Strategic Air Command, divisão responsável pelos mísseis nucleares e bombas atômicas dos EUA, entrou em DEFCON 2. É o último degrau antes da guerra, e requer disponibilidade nuclear total.

Os EUA colocaram aproximadamente 1.500 caças e 3.000 armas nucleares, incluindo mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), em alerta máximo. Naquele mesmo dia, dois navios americanos tentaram interceptar um cargueiro soviético que se dirigia a Cuba, mas acabaram desistindo. Os EUA começaram a planejar uma nova tentativa de invasão da ilha.

No dia 26, Khrushchev enviou uma mensagem sigilosa a Kennedy. “Sr. Presidente, não devemos puxar as pontas da corda na qual você fez o nó da guerra, porque quanto mais nós dois puxarmos, mais apertado ele ficará.” A crise prosseguiu.

Fidel Castro enviou um telegrama a Khrushchev, sugerindo que Cuba disparasse os mísseis nucleares caso os EUA avançassem sobre a ilha. No dia 27, os soviéticos propuseram o seguinte: estavam dispostos a retirar seu arsenal de Cuba, caso os americanos fizessem o mesmo com os mísseis na Itália e na Turquia.

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Mas os EUA hesitaram – e, naquele sábado, a humanidade flertou três vezes com o apocalipse. Um avião espião americano U-2 foi abatido pela defesa antiaérea cubana.

Outro U-2 entrou no espaço aéreo soviético e foi perseguido por caças MiG, motivando uma resposta perigosa: os americanos enviaram um grupo de F-102A armados com mísseis nucleares para escoltar e resgatar sua aeronave espiã.

Um submarino soviético foi perseguido por navios americanos, e quase disparou um torpedo nuclear. Depois daquele dia terrível, em que o futuro do mundo esteve por um fio, Kennedy e Khrushchev aceitaram o acordo. Fim da crise.

Infográfico, em fundo azul escuro, descrevendo a política nuclear entre EUA e Russia.
(Lais Zanocco/Superinteressante)

As superpotências entenderam que era preciso frear a corrida armamentista, e começaram a assinar uma série de tratados que limitavam o desenvolvimento, o teste e a posse de artefatos nucleares. Deu certo: o arsenal nuclear global, que chegou a bater em 70 mil ogivas, ficou muito menor [veja infográfico abaixo].

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Imagem sem texto alternativo (Lais Zanocco/Superinteressante)
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O mundo viveu uma relativa tranquilidade nuclear até agosto de 2019, quando os EUA anunciaram que estavam abandonando um desses acordos: o Tratado de Mísseis Intermediários (INF), que bania mísseis convencionais e nucleares com alcance entre 500 e 5.500 km. Era graças ao INF, assinado em 1987, que os americanos haviam retirado boa parte de seus mísseis da Europa. Agora, estava aberta a porta para que eles voltassem.

Os EUA alegaram que a Rússia não estava cumprindo o tratado – pois ela havia desenvolvido um novo míssil, o 9M730 Burevestnik. Não era uma arma qualquer.

O Burevestnik leva a bordo um minirreator nuclear, que fornece energia para ele voar. Com isso, o míssil pode ficar no ar por muito mais tempo do que os modelos convencionais, o que representa uma vantagem estratégica: permite que ele faça trajetórias mais difíceis de interceptar.

A Rússia negou que o Burevestnik (palavra em russo para “petrel”, uma ave migratória que voa sobre o oceano) violasse o tratado, pois seu alcance era inferior a 500 km. Não convenceu os americanos (por que um míssil de tão baixo alcance precisaria de um sofisticado sistema de propulsão nuclear?), e o clima azedou.

Acuada pela expansão da OTAN, que havia incorporado mais 14 países desde o final da Guerra Fria (quebrando uma promessa feita pelos EUA aos russos) e se preparava para fazer o mesmo com a Ucrânia, a Rússia invadiu a vizinha em fevereiro de 2022.

No ano seguinte, Moscou anunciou que estava “suspendendo” sua adesão ao New START, tratado que limitava a quantidade de ogivas nucleares que cada superpotência poderia ter. O acordo expira em fevereiro de 2026 – justamente quando os americanos, que estão desenvolvendo novas armas [veja quadro abaixo], pretendem instalar mísseis na Alemanha.

“Estamos entrando numa fase prolongada de tensões extremas, incluindo uma corrida armamentista”, afirma Ulrich Kuhn, pesquisador do Institute for Peace Research da Universidade de Hamburgo e especialista em política nuclear.

Isso deve ocorrer mesmo com a volta de Donald Trump à Casa Branca. Trump costuma ser considerado menos hostil a Moscou, e disse que vai buscar um acordo para encerrar a guerra na Ucrânia – o que o Kremlin vê com bons olhos.

Mas isso não significa que seu governo vá impedir uma nova crise dos mísseis entre EUA e Rússia. Pelo contrário: foi justamente durante o primeiro mandato de Trump que os Estados Unidos abandonaram o tratado INF.

Após décadas de equilíbrio entre as potências, o mundo vive um momento instável. Kuhn faz uma previsão tétrica: “As coisas provavelmente terão de piorar antes que possam melhorar”.

A próxima geração

Imagem de um míssil nuclear num fundo azul. Ilustração do míssil Sentinel.

Os EUA pretendem investir US$ 1,5 trilhão para modernizar (e possivelmente ampliar) seu arsenal nuclear.

O primeiro passo é o desenvolvimento dos novos Sentinel, que são ICBMs: mísseis balísticos intercontinentais, que saem da atmosfera e reentram nela a mais de 20 mil km/h, podendo alcançar alvos localizados a mais de 10 mil km de distância.

Eles vão ficar numa rede de silos espalhados pelos EUA, substituindo os atuais Minuteman III, em serviço desde os anos 1970. Os americanos também preparam uma nova ogiva nuclear, a W93, para equipar mísseis lançados de submarinos (os SLBMs), e uma nova bomba atômica, a B61-13, com 360 kilotons de potência (24 vezes mais que a usada em Hiroshima).

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