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A nova rota da seda

Ela não é uma estrada: é o maior conjunto de obras da história da humanidade, e grande cartada da China para ultrapassar os EUA

Por Tiago Cordeiro e Bruno Garattoni
Atualizado em 18 mar 2019, 11h42 - Publicado em 26 jul 2017, 17h47

Liu Bang nasceu pobre, mas teve uma chance na vida. Apareceu tarde, aos 54 anos. O imperador chinês morreu e Liu, que era policial, montou um exército rebelde e tomou o poder. Ele trocou de nome e passou a ser conhecido como Gaozu de Han – o primeiro líder de uma dinastia poderosíssima, que duraria quatro séculos. Tudo porque Liu teve uma sacada genial: abriu a China, criando rotas e acordos de comércio que conectaram o país aos demais. Resultado, as exportações dispararam e a economia chinesa bombou. Mais ou menos como acontece hoje; só que no século 2 a.C. A iniciativa ficou conhecida como Rota da Seda (porque era esse o principal produto exportado), e os chineses aproveitaram a onda de comércio para dominar a Ásia, espalhando sua influência e negócios pelo continente. Agora, mais de 2 mil anos depois, eles querem fazer isso de novo – só que, desta vez, incluindo o mundo inteiro.

No mês passado, o governo chinês anunciou o One Belt One Road (“um cinturão, uma rota”, em inglês), o maior plano de investimentos da história da humanidade. Ele inclui uma quantidade astronômica de dinheiro: nada menos do que US$ 5 trilhões. Isso é três vezes o PIB do Brasil, e quase 40 vezes o valor atualizado do Plano Marshall, que os EUA criaram para reconstruir a Europa após a 2a Guerra Mundial. Esse tsunami de dinheiro será investido em 65 países, que juntos concentram 63% da população global, ao longo dos próximos 40 anos. O objetivo é nítido. “A China quer ser a nova potência mundial, e para isso precisa se tornar o maior player do comércio internacional”, diz Peter Dutton, diretor do US Naval War College e especialista em sinologia. O megaprojeto inclui portos, rodovias, ferrovias, gasodutos, oleodutos e centros de distribuição, tudo para favorecer as exportações chinesas.

É exatamente a mesma estratégia adotada pelas duas últimas superpotências. Nos séculos 18 e 19, os ingleses construíram ferrovias e portos no mundo inteiro, do Paraguai à Índia. Assim, eles ocupavam a capacidade ociosa de suas indústrias, davam emprego a seus trabalhadores e abriam novos mercados para seus produtos e serviços – de quebra, emprestavam dinheiro aos outros países, gerando dependência econômica e ganhando com juros. Os americanos fizeram exatamente a mesma coisa nas décadas de 1940 e 1950. Agora é a vez da China, que pretende concluir todas as obras de seu megaprojeto até 2049 – quando a revolução popular chinesa, liderada por Mao Tse-Tung em 1949, completará cem anos.

(Marcus Penna/Superinteressante)

O pulo do dragão

Pensou em produto importado, pensou na China. Hoje ela fabrica grande parte das coisas que o mundo consome, e sua economia cresce a taxas altíssimas (tanto que o PIB chinês poderá superar o dos Estados Unidos já em 2026). Mas nem sempre foi assim. Durante boa parte do século 20, o governo de Pequim apostou num socialismo focado na população interna. “A China deu início a sua economia de mercado em 1978”, explica o economista André Nassif, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O país começou criando as chamadas “zonas especiais de exportação”, áreas onde empresas estrangeiras poderiam montar fábricas. Deu certo, e na década de 1990 a China passou a ter grande superávit na balança comercial. Entrava mais dinheiro do que saía, e os chineses foram acumulando uma gigantesca poupança. Até que decidiram investir esse dinheiro fora do país. Em 1991, seus investimentos no exterior eram de apenas US$ 3 bilhões. Hoje, passam de US$ 170 bi. Muita coisa – mas, para uma economia do tamanho da chinesa, ainda pouco (corresponde a apenas 1,5% do PIB).   

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Um dos principais projetos da nova rota da seda é a melhoria da rede ferroviária. Os chineses já têm 20 linhas de carga que conectam o país a vários centros econômicos da Europa e da Ásia, mas querem converter tudo em ferrovias de alta velocidade. A viagem de trem de Pequim a Moscou, por exemplo, passaria a demorar apenas 30 horas – hoje, leva cinco dias. Tudo graças a trens-bala que ficarão prontos até 2025. A parceria com a Rússia também está levando os chineses até o Ártico: um projeto de US$ 40 bilhões vai apostar na construção e na reforma de portos, ferrovias e gasodutos. Ao todo, somados os projetos em estudo e em andamento, a China pretende construir 175 mil km de ferrovias nos próximos dez anos – isso dá sete vezes toda a malha ferroviária brasileira. O megaprojeto também tem obras no Oriente Médio e na África (veja no infográfico as principais). Mas há uma ausência notável: ele não inclui o Brasil.

A polêmica da Bioceânica

Hoje pode parecer difícil de lembrar, mas o Brasil já viveu uma era de tranquilidade política. E foi justamente aí, em 2010, que os chineses nos procuraram para falar sobre uma obra gigantesca: a Ferrovia Bioceânica, que atravessaria o Peru e o Brasil, ligando o Oceano Pacífico ao Atlântico. Eles se propuseram a construir a ferrovia e emprestar dinheiro para o Brasil pagar a conta – que ficaria em torno de US$ 10 bilhões. Ao mesmo tempo, começaram a escavar um canal que atravessa a Nicarágua, com o mesmo objetivo – para que os navios chineses tenham trânsito livre e não precisem passar pelo Canal do Panamá, controlado pelos EUA.

Em ambos os casos, deu errado. Na Nicarágua, as obras mal começaram e já estão paradas. A Ferrovia Bioceânica, por sua vez, nem saiu do papel. Há quem acredite que o problema é econômico. “Ao apostar no crescimento de outros países, a China acredita no crescimento da demanda por produtos dela”, diz André Nassif. Como a nossa economia vai mal, estamos comprando menos da China, e por isso não valeria a pena investir.

Mesmo com a crise, a China continua sendo nosso maior parceiro comercial. Ela é o principal destino das nossas exportações, US$ 37,4 bilhões por ano, e o país de onde nós mais importamos coisas (US$ 23,8 bilhões). Em abril, os chineses enviaram representantes ao Senado para tentar fazer a obra deslanchar. Mesmo com todo o caos político no Brasil, eles querem a ferrovia. Mas há quem diga que ela jamais vai sair do papel.

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(nikolos/Superinteressante)

“Eu gostaria de ver acontecer a obra, mas há alguns estudos mostrando que a Ferrovia Bioceânica é inviável”, afirma Félix Alfredo Larrañaga, professor de comércio exterior da Faculdade Anchieta. Ele dá um exemplo. Transportar uma tonelada de soja do cerrado brasileiro até a China passando pelo porto de Santos, como é feito hoje, custa US$ 120. Já fazer isso usando a Ferrovia Bioceânica sairia por aproximadamente US$ 167. Bem mais caro.

Ou seja: na prática, o maior objetivo da obra seria gerar mercado para as construtoras chinesas, e não necessariamente beneficiar o Brasil. Porque essa é a outra face do One Belt One Road: a tentativa de estabelecer domínio absoluto. Tanto é que, ao mesmo tempo em que faz megainvestimentos em outros países, a China tem ampliado fortemente seu aparato militar, em especial a Marinha. Segundo um levantamento do Instituto Internacional para Estudos Estratégicos, sediado em Londres, no ano 2000 a China tinha 163 embarcações militares de grande porte (somando porta-aviões, cruzadores, destróieres e submarinos), contra 226 dos EUA. No ano passado, já eram 183 contra 188, um empate técnico. E, em 2030, deverão ser 260 dos chineses contra 199 dos americanos. O país também está investindo em bases marítimas no estrangeiro – a começar por uma no Djibuti, país africano com menos de 1 milhão de habitantes que está entre os principais alvos da nova rota da seda. Ou seja: junto com as obras civis, os chineses pretendem fazer uma expansão militar também. 

Os EUA não se manifestaram oficialmente sobre o megaprojeto chinês, mas várias empresas americanas estão tentando abocanhar uma parte das obras. É o caso da General Electric, que em 2016 conseguiu triplicar suas vendas de equipamentos de engenharia e construção na China.

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Os investimentos militares e civis são bancados em grande parte pelo Estado chinês, mas não só. O país organizou uma plataforma de suporte financeiro para a iniciativa, que inclui um fundo para captar investimentos privados, com capital inicial de US$ 40 bilhões. Grandes empresários chineses aderiram, como já tinham aderido a projetos anteriores – a tentativa de construir o canal da Nicarágua, por exemplo, é bancada por um magnata chinês das telecomunicações, Wang Jing. No caso específico do One Belt One Road, até agora 47 corporações da China participam de 1.676 diferentes programas vinculados ao projeto.  O China Communications Construction Group, sozinho, assumiu a responsabilidade de construir 95 portos, 10 aeroportos, 152 pontes e 10.320 km de estradas.

“São investimentos arriscados. Alguns podem não dar lucro ou não ser concluídos nos prazos”, diz David Wijeratne, analista da consultoria PricewaterhouseCoopers e autor de um estudo detalhado sobre a nova rota da seda. O Paquistão, por exemplo, vai chegar a 2022 devendo US$ 5 bilhões para os chineses, sem nenhuma garantia de que tudo vá mesmo ser construído. Os países africanos também podem acabar se enrolando em dívidas. É com dinheiro chinês que estão sendo construídas diferentes ferrovias, incluindo a que liga as capitais da Etiópia e do Djibuti e a estrada de ferro que vai conectar Mombassa e Nairobi, as duas cidades mais importantes do Quênia. A mesma pista deverá ser expandida até outros três países, Uganda, Ruanda e Congo. Para os africanos, por mais que as obras representem uma bela melhoria na infraestrutura, o investimento pode representar uma dependência econômica perigosa. “Quase todos os países envolvidos [no One Belt One Road] têm estabilidade política e condições mínimas de pagar pelo dinheiro emprestado pelos chineses. Não é o caso dos africanos”, afirma Peter Dutton. “Eles correm o risco de se tornar politicamente dependentes de Pequim.”

Talvez esse seja justamente um dos objetivos da nova rota da seda. Afinal, ela abre novos mercados, mas também espalha dívidas. Gera desenvolvimento, mas também cria relações de influência e poder. É assim que a economia global funciona. Sempre foi assim. E, ao que tudo indica, vai continuar a ser.

 

  (Marcus Penna/Superinteressante)

1 – Ferrovia Londres (Inglaterra)/ Yiwu (China)
Custo não divulgado
Em abril, um trem com 30 contêineres fez a viagem inaugural no primeiro trecho da linha, que vai passar por sete países no caminho entre China e Inglaterra: Cazaquistão, Rússia, Bielorrússia, Polônia, Alemanha, Bélgica e França.

2 – Ferrovia Kunming (China)/Vientiane (Laos)
US$ 5,9 bilhões
Será usada para transporte de passageiros, com trens de alta velocidade que farão todo o percurso em apenas 10 horas. Terá 33 estações, com início de operações previsto para 2020.

3 – Túnel Kamchiq (Uzbequistão)
US$ 1,9 bilhão
É o túnel mais longo da Ásia Central, e passa por sete falhas geológicas. Uma obra complicadíssima. Mas que já está pronta: o túnel foi aberto em 2016. Nos próximos anos, ele será conectado à malha ferroviária que os chineses estão construindo.

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4 – Ferrovia Moscou (Rússia) / Kazan (Rússia)
US$ 16,7 bilhões
Deve ficar pronta em 2020. Seus trens de passageiros vão alcançar 400 km/h e passar por 15 estações. Além de ligar as duas cidades russas, faz parte de um projeto maior: uma estrada de ferro  de 7 mil km, ligando Moscou a Pequim.

5 – Ferrovia Kunming (China) / Bangkok (Tailândia)
US$ 12 bilhões
Vai levar pessoas entre os dois países, por um terço do preço da passagem aérea para o mesmo trecho. Deverá ficar pronta em 2020, e será conectada a uma nova linha entre Tailândia e Singapura.

6 – Corredor de gasodutos e oleodutos da Ásia Central
US$ 7,3 bilhões
Os EUA sempre desejaram fazer essa obra – mas os chineses parecem mais perto de dobrar a resistência da Rússia e do Irã. Vai levar gás do Turcomenistão e do Cazaquistão para a China e a União Europeia.

7 – Corredor de infraestrutura Kashgar (China) / Khunjerab (Paquistão)
US$ 54 bilhões
Engloba rodovias, ferrovias, gasodutos, oleodutos e redes de telefonia e internet. Os chineses terão acesso direto à Caxemira (região atualmente disputada por Índia e Paquistão).

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8 – Ferrovia Addis Abeba (ETIópia) / Golfo de Aden (DjibuTI)
US$ 4 bilhões
Parcialmente inaugurada em outubro de 2016, a estrada Já leva cargas e, este ano, começará a transportar passageiros. A viagem, que de carro demora três dias, agora será percorrida em 12h.

9 – Ferrovia Budapeste (Hungria) / Belgrado (Sérvia)
US$ 2,9 bilhões
Será o primeiro pedaço de uma estrada maior, que deverá chegar a Atenas. A obra tem gerado polêmica na Europa, pois os chineses não divulgaram os detalhes do contrato que assinaram com o governo húngaro.

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