Como funciona a perícia de um áudio?
Avaliação oficial vai determinar se a gravação foi ou não editada. Entenda como funciona o processo.
Dois dias depois do escândalo Temer, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria onde o perito Ricardo Caires afirmava que o áudio havia sido editado em 50 partes diferentes. O Globo, então, afirmou ter conversado com Caires, que havia mudado sua versão (dessa vez eram só 14 pontos de edição). Agora, nesta segunda, a Folha diz que o perito continua sustentando a teoria de que havia meia centena de cortes na gravação.
Mas, afinal, como funciona a perícia de uma gravação?
A resposta não é tão simples. “Cada áudio é particular, ele tem singularidades que vão guiando a forma como a perícia é feita. A análise é conduzida de forma diferente para cada áudio”, explica André Morisson, diretor Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF). Isso não significa, no entanto, que alguns passos costumam ser mais comuns. É eles que vamos explicar no box abaixo.
Me empresta, rapidinho
Ter em mãos o gravador utilizado pode ajudar nas conclusões finais. Assim, existe a possibilidade de realizar testes, e simulações que recriam as situações dos áudios. Um defeitinho no microfone, ou um gravador antigo podem caracterizar um áudio. Funciona como uma espécie de impressão digital auditiva, que assim como a dos seus dedos, deixa marcas cruciais para um estudo criminal (Joesley, diga-se, usou um pen drive com gravador embutido).
A cópia perfeita
O arquivo tem que ser transportado para o computador do perito, onde vai ser feita a análise, da forma mais fidedigna possível. Se você, aí da sua casa, colocar uma música em um pendrive para ouvi-la na caixinha de som da sala, por exemplo, o arquivo pode sofrer modificações conforme passa de um dispositivo para o outro. Coisa pequena, mas que pode fazer diferença na hora da investigação: uma compressão na frequência ou até mesmo a exclusão de metadados, ou seja, informações sobre hora, dia e até local em que foi gravado o material. Os profissionais usam softwares específicos que conseguem copiar o arquivo, sem modificá-lo. É a chamada cópia bit a bit.
A primeira escutada
Chamada de análise oitiva, é a audição do arquivo sem necessariamente estar acompanhado de equipamentos especializados para a dissecação do áudio. “O perito passa por treinamentos que apuram sua audição para esse tipo de áudio. Ele percebe com mais facilidade se há algo errado na gravação”, conta Morisson. A ideia é que nessa fase o perito já comece a direcionar em que partes ele vai focar em um primeiro momento da análise. Um ruído meio estranho no minuto 7? Melhor analisá-lo com mais atenção desde o começo. Isso não significa, no entanto, que o restante do arquivo será ignorado. O áudio inteiro é investigado, mas esse é o momento de direcionar os primeiros esforços.
Não entendi
Uma frase ficou sem sentido? Pode ser indicação de que algo foi tirado do arquivo. O contexto acaba servindo como ferramenta na detecção de edições. Podem ser perguntas sem respostas, ou simplesmente afirmações que não fazem muito sentido naquela situação. Tudo é analisado.
O diabo mora nos detalhes
O maior indício de uma edição pode não estar na fala principal, mas nos coadjuvantes do som. “Uma alteração abrupta no barulho de fundo, como um telefone tocando, o som do ar-condicionado, ou o rádio de fundo podem ser cruciais para determinar se houve alteração no arquivo”. O rádio, aliás, pode ser uma prova cabal especificamente no caso das delações de Temer. Tanto no início quanto no fim da gravação de Joesley Batista é possível ouvir uma rádio tocando no carro. A CBN, a emissora em questão, fez dois posicionamentos sobre o caso: primeiro afirmou que os trechos ouvidos no começo e no final foram colocados ao ar com um intervalo de 38 minutos (exatamente a duração da gravação), mais tarde afirmou que uma segunda checagem foi feita, dessa vez mais técnica, e que, na verdade, havia uma diferença de seis minutos entre o tempo da gravação e o da programação da emissora – são indícios de que a gravação possa ter sido editada, ou que o sensor do gravador tenha o desligado automaticamente.
Som escrito
O arquivo é submetido a softwares que analisam o som e o transformam em gráficos. Alguns deles são algoritmos que visam exclusivamente sua utilização em situações de perícia. Com essa ferramenta é possível visualizar, literalmente, o comportamento do arquivo.
Toda mudança acaba aparecendo com um “risco” no gráfico, que o perito consegue avaliar. “As frequências que vemos nos gráficos têm uma lógica. Se você aumentar o arquivo, cortar um pedaço, ou então inserir trechos de outra gravação, a lógica é alterada. Desse jeito você consegue perceber as alterações posteriores”, explica Morisson. Esse tipo de registro pode ser feito até mesmo em situações não tão obvias. Alguns gravadores possuem um sensor de ruídos, por exemplo, na prática, eles detectam quando os interlocutores param de falar, e então aumentam a intensidade da gravação (para tentar ouvi algo, caso eles comecem a falar mais baixo), a consequência disso vem em seguida: quando as pessoas voltam a conversar há um micro estouro no áudio, e o gravador e os sensores entram em um processo de transição, para se regularem novamente. Se, só em um momento específico, não existir essa transição, pode ter algum problema por aí.
O Som (não) escrito
A não-ausência de um som também pode significar que o arquivo foi adulterado. Os silêncios fazem parte das línguas. A letra “p”, por exemplo,consiste basicamente de um momento de silêncio, acompanhado por um som de estouro de bolha que você faz com a boca (diga “uma pessoa” em voz alta – o “p” é um momento em que você não vocaliza nada, só faz um truque com os lábios sem perceber). Se nos gráficos, enfim, alguma palavra com P não estiver acompanhada de um micro-silêncio, pode ser que tenha havido algum tipo de edição com viés malicioso.
Os próprios gravadores fazem edições imperceptíveis para o ouvido. Em alguns momentos, é comum que a máquina pare de gravar por milésimos de segundo, por conta de suas configurações. Como toda máquina, no entanto, elas seguem um padrão: acontecem de 2 em 2 minutos, meia em meia hora, ou qualquer outro tipo de período pré-programado, uma interrupção nesses intervalos pode funcionar como prova.
É isso. Agora tudo depende da perícia oficial sobre a gravação de Joesley. Carmem Lúcia, a presidente do Supremo Tribunal Federal, afirmou que só vai decidir se suspende (ou não) o inquérito que tem Michel Temer como alvo após essa avaliação. A nós, resta ficar de ouvidos atentos.