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E Se… o regime da Coreia do Norte cair?

As duas Coreias se reunificam e gritam "jayu!" (liberdade). E aí você acorda: a realidade é bem menos idílica. Entenda o que de fato poderia acontecer.

Por Fabio Marton
Atualizado em 8 mar 2023, 11h30 - Publicado em 23 ago 2019, 11h37

Enfim, paz! A Zona Desmilitarizada das Coreias – hoje, a zona mais militarizada do planeta – é aberta. O mundo assiste em êxtase enquanto, como na Berlim de três décadas atrás, coreanos atravessam a fronteira e vão abraçar seus irmãos do outro lado. Uma das maiores fontes de tensão geopolítica e constante ameaça nuclear junta-se ao rol do mundo livre. “Jayu!” – liberdade! – cantam ambos os lados. E aí você acorda. A realidade não é assim tão idílica.

“Ninguém derramaria uma lágrima [pelo fim do regime norte-coreano], fosse comunista ou não comunista, coreano ou não coreano, esquerdista ou direitista”, afirma o analista geopolítico Michael J. Deane, da Universidade Johns Hopkins (EUA). Deane é autor de um artigo a respeito, The Collapse Of North Korea: A Prospect To Celebrate Or Fear? (“O colapso da Coreia do Norte: uma possibilidade a celebrar ou temer?”). Mas, pelo próprio título do artigo, já dá para entender que não há muita razão para otimismo. Embora o fim do regime de Kim Jong-un seja um desejo praticamente universal, ele é distante.

O exemplo que todo mundo tem em mente, a reunificação das Alemanhas, não é uma comparação válida. Primeiro, o contraste entre os dois países: quando a Alemanha se reunificou, havia 63 milhões de alemães na parte capitalista, contra 16 milhões na comunista. Ou seja, eram quatro alemães ocidentais para cada oriental. No caso das Coreias, são 51 milhões no Sul contra 25 milhões no Norte – uma vantagem populacional bem mais modesta, de 2 para 1. E a situação econômica também é outra. Em 1989, a Alemanha Oriental era o país comunista mais rico do mundo, com PIB per capita de US$ 9.679 (US$ 19.789 em valores atuais), contra US$ 17.697 (US$ 36.183 atuais) da Alemanha Ocidental. Entre as Coreias? São US$ 29.742, no Sul, contra míseros US$ 1.300 no Norte. O abismo econômico é muito maior.

E há a questão geopolítica. A queda do muro em 1989 foi possível porque a União Soviética estava passando pelos processos de Glasnost (“abertura”) e Perestroika (“transparência”), ao mesmo tempo em que estava exausta pela Guerra do Afeganistão e o desastre de Chernobyl. Não havia energia para fazer algo como em 1968, quando a Primavera de Praga, a tentativa de reformar (ou encerrar, entendiam os soviéticos) o regime comunista na Tchecoslováquia terminou com uma invasão militar da URSS.

Hoje, há um obstáculo no caminho. A Coreia do Norte é bancada pela China – que não está em abertura nem em crise. Muito pelo contrário: parece ser o regime totalitário mais bem-sucedido da história, oposto diametral ao isolamento e penúria econômica da Coreia do Norte. Nos últimos meses, ao reprimir duramente uma onda de protestos em Hong Kong, os chineses demonstraram o tipo de coisa que poderiam estar dispostos a fazer para resguardar a posição da Coreia do Norte. Bem ou mal, ela serve como uma barreira de proteção entre o território chinês e a Coreia do Sul, que vive sob forte influência dos EUA. A China não iria assistir em silêncio enquanto um aliado, por mais inconveniente que seja, se transforma em um rival.

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Qual guerra?

A queda da dinastia Kim possivelmente não terminaria em consenso: levaria a uma disputa entre facções diferentes para determinar o destino da nação. A absorção do país pela Coreia do Sul, que aos olhos do Ocidente parece óbvia, pode ser considerada uma saída extrema e desonrosa para os norte-coreanos, que desde criancinha aprendem que seus primos do Sul não passam de capachos do Tio Sam, o diabo na Terra. E, de novo, existe um lugar chamado China: cujo “socialismo de resultados”, já exportado com sucesso para o Vietnã, poderia ser adotado pela Coreia do Norte em seu futuro pós-Kim. 

Então haveria três possibilidades, cada uma defendida por uma facção diferente: manter o modelo Juche (palavra que significa “autossuficiência” e batiza a ideologia oficial do regime atual), mudar para o modelo chinês ou, então, tentar construir uma democracia capitalista à ocidental, com provável unificação com o Sul. Não há acordo possível entre essas posições. Alguém tem que perder. E isso no país mais militarizado do mundo, onde 25% da população é considerada ativa em organizações paramilitares. E onde há, todos sabem, armas nucleares. Com potências externas interessadas em resultados diferentes. Começou a fazer as contas?

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O que pode acontecer é desde um pequeno e violento golpe, com um lado se impondo rapidamente, até uma guerra civil ou uma nova Guerra da Coreia, desta vez com a China contra a Coreia do Sul e seus aliados. A primeira foi um dos mais sangrentos confrontos do século 20, com até 3 milhões de mortos, levando o mundo à beira do apocalipse nuclear. Uma Segunda Guerra da Coreia poderia, em tese, escalar para a Terceira Guerra Mundial. Mas isso já é forçar um pouco o pessimismo. O resultado poderia ser uma nova divisão do país, agora entre uma “Coreia do Norte do Norte” alinhada à China (ou absorvida por ela), e uma “Coreia do Norte do Sul”, associada à sua vizinha capitalista.

Final feliz?

Suponha que a última opção prevaleça, e haja um consenso na Coreia do Norte para transformar o país em uma democracia liberal e reunificá-lo à Coreia do Sul. Um plebiscito decide o destino de seus habitantes. Mais um entrave aqui: na verdade, teriam que ser dois plebiscitos. Afinal, a população sul-coreana também precisaria ser ouvida sobre uma eventual reunificação. O número de imigrantes norte-coreanos é relativamente baixo no país: pouco mais de 30 mil. Ainda assim, eles constituem uma subclasse que enfrenta preconceitos – o sotaque os entrega – e tem dificuldade em se integrar. E há a já citada abismal diferença econômica. Mesmo a opção democrática poderia terminar em caos e fome. Em outras palavras, seria um processo extremamente penoso, que facilmente poderia desestabilizar a 12a economia do mundo, pátria das onipresentes Samsung, LG e Hyundai. Que não necessariamente abriria mão das armas nucleares herdadas do irmão do Norte, aumentando as tensões com a China.

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O que todos esses cenários têm em comum: caos, crise humanitária de grandes proporções e tensão geopolítica no Leste Asiático, região que concentra 1 ⁄ 3 do PIB mundial. Uma recessão para fazer 1929 parecer marolinha, num contexto já de tensão avançada, atingindo enormemente uma China antagonizada pelo Ocidente.

Se isso soa pessimista demais para você, saiba que compartilham dessa opinião todas as partes envolvidas, menos uma. “De fato, os vizinhos mais próximos da Coreia do Norte – Coreia do Sul, Japão e China – acreditam que é mais barato manter a Coreia do Norte a longo prazo, possivelmente de forma indefinida, que vê-la cair no curto prazo”, afirma Michael J. Deane. “Só os EUA, que enxergam o problema apenas pelo ângulo militar, consideram essa queda como boa a curto prazo.” E os americanos, embora mandem muito, não mandam em tudo.

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