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Juntas contra a aids

No sul da África – região que mais sofre com o HIV –, agentes de saúde soropositivas combatem a doença emulando a ação do vírus. E está funcionando.

Por Fellipe Abreu, na Suazilândia e em Moçambique, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 21 ago 2018, 01h53 - Publicado em 23 nov 2017, 17h40
Portadoras de HIV na Suazilândia se revezam para buscar e distribuir medicação antirretroviral para pacientes na mesma situação. (Fellipe Abreu/Superinteressante)

Ainda é cedo em Qomintaba, sul da Suazilândia, mas o sol queima como se fosse meio-dia. No céu não se vê uma nuvem para amenizar os raios. Na terra, árvores secas espalham escassas sombras, onde cachorros e cabras descansam. No horizonte, o solo árido e amarelado contrasta com o azul-escuro do céu.

Enquanto algumas mulheres cozinham em grandes caldeirões de ferro, outras trazem na cabeça baldes cheios de água potável recolhida do buraco mais próximo. Os homens caminham para um mesmo ponto, o Kudla Inhloko – uma grande roda cercada por galhos de árvores de uns 3 m de altura. É aqui que os membros da comunidade se encontram em ocasiões especiais ou para conversar sobre decisões importantes. O motivo da reunião de hoje é uma tradicional cerimônia local, o Cow Head Meeting, quando, como o próprio nome sugere, uma cabeça de vaca é preparada na brasa para alimentar os moradores. Dessa vez, porém, a aldeia tem uma visita especial. Aproveitando a presença de homens influentes, uma equipe móvel dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) veio até a comunidade com o objetivo de fazer um trabalho de aconselhamento sobre o HIV.

A Suazilândia é o país com maior taxa de infecção pelo vírus. De acordo com a Unaids (programa da ONU para combate a aids), a prevalência entre adultos é de 27,4% – quase um terço dos maiores de 18 anos. E já foi pior. “Antes de 2007 – quando o MSF começou a trabalhar na Suazilândia –, a taxa de prevalência era de 42%. Na nossa cultura, os funerais sempre foram realizados nos fins de semana. Mas, com a epidemia de aids, tanta gente morria que as cerimônias passaram a ser feitas durante a semana também”, conta Zanele Zwane, assessora de comunicação do MSF no país.

Todos os dias, equipes móveis do MSF enfrentam longos trechos de estradas de terra esburacadas para visitar comunidades isoladas como Qomintaba. Dentro do Kudla Inhloko, os homens estão sentados com as costas apoiadas na cerca de galhos de um lado, enquanto quatro mulheres se acomodam do outro. Um dos senhores cuida do fogo. O papo trivial cessa quando Busi Gumbi e Sylvia Khuzwayo sentam em pequenas esteiras de palha no chão e começam a inocular a informação. Enquanto Sylvia fala com os homens sobre a importância da realização do exame, Busi aconselha um grupo de quatro mulheres, falando sobre como elas devem cuidar da saúde durante o tratamento antirretroviral e sobre como devem contar aos filhos que são portadoras do HIV.

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Busi e Sylvia, nascidas na Suazilândia, são conselheiras do MSF. Elas não têm educação formal em medicina ou enfermagem – se credenciaram a atuar como agentes de saúde pela experiência de vida. Ambas são portadoras do HIV e usam a própria história para ensinar as comunidades locais sobre a aids, mostrando que é possível viver bem com o vírus, desde que o tratamento seja levado a sério.

“Eu descobri que tinha HIV em 2004, quando estava grávida. E dois anos depois decidi assumir a doença publicamente. Daí em diante, comecei a motivar as pessoas da minha comunidade a realizar o exame”, diz Busi. Quando o MSF visitou sua comunidade pela primeira vez, em 2010, o chefe comunitário contou a eles sobre o trabalho e logo depois ela foi convidada para ser conselheira.

Trabalho de aconselhamento na comunidade Zombodze Emuva, no sul da Suazilândia

Habitante da aldeia aguarda início da palestra sobre prevenção e tratamento contra o HIV. (Fellipe Abreu/Superinteressante)
Um dos líderes da comunidade – vestindo estampa com o rosto do rei Mswati 3º – cozinha para os convidados. (Fellipe Abreu/Superinteressante)
Aldeão suazi guarda a entrada da comunidade. (Fellipe Abreu/Superinteressante)
Conselheira de saúde, soropositiva, conta como é possível ter uma vida normal e saudável seguindo o tratamento contra o HIV. (Fellipe Abreu/Superinteressante)

Ruth Ndlangamandla é uma das quatro mulheres que ouviram os conselhos de Busi na roda da cabeça de vaca. Seu marido foi diagnosticado HIV positivo em 2005 e ela descobriu que estava na mesma condição em 2006, mas só começou o tratamento em 2013. Ela conta que no começo chorava muito e entrou em depressão. Não conseguia contar aos filhos que estava doente, porque se preocupava com o que eles pensariam sobre como ela contraiu o vírus. O HIV na Suazilândia, afinal, é sempre associado à promiscuidade. “No meu coração eu sabia que o HIV mata e meu maior medo era deixar os meus filhos para trás. Alguns anos depois do diagnóstico, recebi a primeira visita de Busi. Pelo jeito que ela falava, parecia possível ter uma vida normal e saudável se eu seguisse o tratamento”, desabafa Ruth.

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“O trabalho do conselheiro é fundamental. O fato de ser soropositivo gera um vínculo muito forte com a comunidade”, explica Zanele Zwane. Em outras palavras, as conselheiras têm uma penetração e um poder de convencimento que nenhum médico ou enfermeira teria. Mesmo assim, a falta de informação e o preconceito continuam sendo uma grande barreira para o tratamento. Na roda de conversa, senhoras relataram que, quando as mulheres decidem fazer o teste de HIV, são abandonadas pelos maridos, que as expulsam de casa. Muitas delas, por medo, não fazem o exame ou, no melhor dos cenários, começam o tratamento escondidas da família.

Cem conselheiros – a maioria do sexo feminino – têm se espalhado pelo território da Suazilândia para combater o HIV. Cruzando a fronteira para Moçambique, o número é de 50. Elas trabalham oito horas por dia e ganham R$ 400 por mês. Todas passam por treinamento do Ministério da Saúde do respectivo país, além de outros cursos oferecidos pelo MSF.

Em Maputo, capital de Moçambique, acompanhamos outra ação das conselheiras. Após nos esgueirarmos pelas vielas do bairro Maxaquene B, nos aproximamos do ponto de encontro – a casa de Dona Cacilda, líder de um grupo de mulheres soropositivas. Foi fácil saber em que casa devíamos entrar. Bastou seguir as vozes que entoavam uma canção em changana (língua da etnia predominante em Maputo). A busca terminou em um quintal de terra batida onde umas 20 mulheres cantavam e dançavam. Dois homens observavam tudo ao fundo, calados. Na mão das mulheres, um frasco branco, que elas erguiam orgulhosas. “Não queremos, não queremos, não queremos morrer com a aids. Juntamo-nos, juntamo-nos, vamos todas juntas, a caminho do hospital”, entoavam.

Dentro de cada frasco, a salvação daquelas mulheres: os medicamentos antiretrovirais, que tomam três vezes ao dia, como parte do tratamento contra o HIV.

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Em Maxaquene B, uma em cada dez pessoas tem o vírus. E cada uma das mulheres reunidas faz parte de um projeto do MSF chamado GAAC (Grupos de Apoio e Adesão Comunitária). A ideia é simples: grupos de no máximo seis soropositivos organizam um rodízio entre si para buscar os remédios no posto de saúde mais próximo. Nesse esquema, quem busca hoje o medicamento do mês não precisa se preocupar com isso nos cinco meses seguintes, quando a tarefa será feita pelos demais. Como não é raro que os pacientes fiquem abatidos pelo tratamento ou por desnutrição, qualquer chance de se poupar é válida.

Retratos do trabalho de aconselhamento feito por soropositivos na Suazilândia

O suazi Babe Ndlovu foi beneficiado pelo projeto Test and Treat, do MSF, que estimula os soropositivos a iniciar o tratamento assim que são diagnosticados. (Fellipe Abreu/Superinteressante)
Participante de um Grupo de Apoio e Adesão Comunitária (GAAC) exibe os antirretrovirais que buscou para compartilhar com os outros integrantes do grupo. (Fellipe Abreu/Superinteressante)
Quatro membros de um GAAC se reúnem num remoto ponto de encontro para a partilha
de medicamentos antirretrovirais – a cada mês, um integrante é encarregado de buscar os remédios de todos. (Fellipe Abreu/Superinteressante)

Mas o sucesso do projeto vai muito além disso. As mulheres de Maxaquene B contam que, antes dos GAACs, elas não tinham coragem de assumir que portavam o HIV e muitas vezes deixavam de seguir o tratamento por medo da repercussão na comunidade. Margarida Nuvunga, de 28 anos, conta que decidiu fazer o exame porque se sentia sempre doente. “Quando cheguei em casa e contei ao meu marido que o resultado foi positivo, ele não acreditou e se negou a fazer o teste. Dias depois, me abandonou com duas filhas e nunca mais deu sinal de vida.” Sem trabalho, Margarida voltou para a casa dos pais.

E ela não é a única sem emprego, muito pelo contrário. Cacilda Fumo, dona da casa e líder do grupo, diz que a maior parte das participantes não trabalha. “Um dos principais fatores para o alastramento da doença entre nós, mulheres, é a condição social da moçambicana.” Segundo Cacilda, os maridos usam essa circunstância para impor regras que contribuem para a disseminação do HIV. “Quando a mulher pede que o marido use preservativo, ele argumenta que é o trabalhador da casa e que, por isso, ela tem que aceitar sexo sem camisinha”, completa.

Desde 2007, o MSF tem trabalhado assim no sul da África: com as conselheiras imitando o vírus que carregam no corpo para se espalhar e contagiar gente que continuaria negando a existência da aids e que não aceitaria o tratamento sem esse contato mais íntimo. Tão íntimo que prostitutas têm trabalhado como agentes do MSF em Moçambique.

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Em dez anos de trabalho viral das conselheiras, os números de novas infecções anuais na Suazilândia e em Moçambique caíram 67% e 52%, respectivamente – fruto da ação conjunta entre várias ONGs e os ministérios da saúde de cada país. Mas ainda restam milhares de aldeias e rincões imunes ao acolhimento e conhecimento necessários para brecar o HIV.

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