Línguas separatistas: a história de 13 conflitos linguísticos pelo mundo
Uma língua é mais que um código compartilhado: é o cerne da identidade de um povo. E quando as fronteiras não correspondem aos idiomas, começa a confusão.
Em diversas regiões de conflito ao redor do mundo, existem línguas que, embora tenham nomes diferentes, são tão parecidas entre si quanto o português brasileiro e o português de Portugal.
Línguas que, para todos os critérios práticos, poderiam ser uma só – mas permanecem separadas do ponto de vista político porque seus falantes se dividem em dois ou mais grupos com histórias e religiões diferentes. É o caso do urdu e do hindi, falados pelos arqui-inimigos Paquistão e Índia, ou do servo-croata, cujas variantes na Sérvia e na Croácia são reinvindicadas como línguas à parte.
O oposto também acontece: línguas distintas forçadas a ficar sob o mesmo balaio. Isso acontece com o árabe. A versão clássica da língua, em que se lê o Corão, desmembrou-se há muito em línguas-filhas nos diversos países islâmicos. Mas elas não são reconhecidas oficialmente, e as escolas ainda forçam as crianças a escrever de um jeito tão antiquado quanto o latim seria para nós.
O problema mais comum, porém, é o dos falantes de duas ou mais línguas diferentes que convivem no mesmo território, sob o mesmo governo. Dos bascos na Espanha à revolta dos falantes de tâmil contra os cingaleses em Sri Lanka, as diferenças linguísticas foram e são combustível de brigas entre congressistas, guerras civis e ataques terroristas em todo o mundo. Conheça algumas dessas histórias.
Índia, Paquistão e Bangladesh
Índia e Paquistão são vizinhos e falam uma mesma língua. Mas jamais admitiriam: para os paquistaneses, que são muçulmanos, o idioma se chama urdu e é escrito com o alfabeto árabe. Já os indianos se referem à língua como hindi e usam o alfabeto devanagari (o do sânscrito). As duas ex-colônias britânicas mantêm desde 1947 uma inimizade pontuada por quatro guerras, ameaças nucleares e a disputa do território da Caxemira. E essa história tem um spin off: o Paquistão, originalmente, tinha um naco isolado de território do outro lado da Índia. Naquelas bandas, não se fala urdu, mas bengali – essa sim, uma língua diferente. A minoria bengali tornou sua língua uma das oficiais do Paquistão em 1956. Em 1971, declarou independência e formou o Bangladesh. O episódio inspirou a Unesco a criar o Dia Internacional da Língua Materna.
Sri Lanka
Por lá, fala-se o cingalês, idioma da maioria budista, e o tâmil, língua dos hindus e católicos. A turma tâmil acusa os cingaleses de privilégios; os cingaleses dizem que é reparação histórica, porque o povo tâmil era queridinho dos colonizadores britânicos. Resultado? Os Tigres de Libertação da Pátria Tâmil iniciaram (e perderam) uma guerra, que acabou em 2009 com cerca de 100 mil mortos.
Cabo Verde
Essa ex-colônia ilustra conflitos linguísticos comuns na África. A língua oficial é o português, mas cada ilha do arquipélago fala, na prática, sua versão do crioulo cabo-verdiano, uma mistura de português e línguas nativas. Há um movimento para torná-lo língua oficial, mas, como a tradição é oral e não há padronização gramatical, fica a questão: qual das nove variantes deve-se adotar?
Veja como se diz “Eu não sei” em três versões do crioulo cabo-verdiano – uma de cada ilha do arquipélago.
Crioulo de São Vicente: M’ câ sabê.
Crioulo de Santo Antão: Mí n’ séb’.
Crioulo de Santiago: M’ câ sâbi.
Timor-Leste
O pequeno país no Sudeste Asiático declarou independência de Portugal em 1975. Não durou: um ano depois, a vizinha Indonésia anexou o território, proibiu a língua portuguesa e o catolicismo e realizou um genocídio. Em 2002, o país reconquistou a liberdade e tentou trazer de volta o português – falado até hoje pelos mais velhos. Mas os jovens não querem: preferem falar inglês.
Países árabes
O árabe clássico, que Maomé falava no século 7, já era: cada país fala uma língua própria que descende dele, do mesmo jeito que o latim se tornou o italiano, o português etc. Mas as Constituições islâmicas não reconhecem a existência de idiomas que não sejam o original do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.
É como se os nossos jornais e leis ainda fossem escritos como na Roma Antiga.
Quebec
A ex-colônia francesa, hoje uma província (equivalente a um estado) canadense, pega pesado para manter a francofonia viva. Em 1977, o Projeto de Lei 101 tornou o francês a única língua oficial do Quebec – da sinalização de rua às aulas nas escolas, passando por documentos oficiais. A imposição levou parte da população falante de inglês a migrar, mas amenizou desejos separatistas.
Córsega
A ilha é culturalmente próxima da Itália, e o corso é um idioma similar ao dialeto da Toscana. Mas foi anexada à França em 1769, e é terra natal de Napoleão. No final da década de 1950, os franceses queriam realizar testes nucleares por lá – gota d’água para os corsos, já irritados há séculos com a submissão à França. Surgiu até a Frente de Libertação Nacional Corsa (FLNC), um grupo terrorista.
Crimeia
A Crimeia é russa em termos étnicos e linguísticos, mas fica na Ucrânia. Por isso, há um movimento separatista. Em 2012, um presidente ucraniano pró-Rússia tornou o russo língua oficial da Crimeia, e em 2014 negou um acordo com a União Europeia para agradar Putin. A população ucraniana odiou e expulsou o cara do cargo. Putin revidou invadindo a Crimeia – que permanece ocupada.
Croácia e Sérvia
Os croatas são católicos e escrevem com o alfabeto latino. Historicamente, pertencem à esfera de influência de Roma. Já os sérvios, de fé cristã ortodoxa, usam o alfabeto cirílico e são herdeiros culturais do Império Bizantino. Apesar disso, ambos falam o idioma servo-croata. Só muda o sotaque, basicamente. Os dois povos, porém, reivindicam suas variantes como línguas separadas. Essa autoafirmação é herança de uma briga feia. Após a 2a Guerra, as duas nações conviveram como partes da Iugoslávia socialista, unificada por Marechal Tito. Com sua morte em 1980, croatas, sérvios e outras quatro etnias forçadas a ficar sob o mesmo balaio saíram no braço. Os croatas declararam independência em 1991 e lutaram contra o exército iugoslavo, sob controle sérvio. Ganharam em 1995 – mas a tensão segue firme.
Sardenha e Sicília
Antes de se tornar parte da Itália, a Sardenha foi dominada pela Espanha. Seus moradores, então, falam sardo (a língua local, do mesmo tronco do italiano), catalão e até uma pitada de corso – e lutam no Congresso italiano para se separar do país. Também separatista é a Sicília, que se orgulha da classificação do siciliano como um idioma próprio em vez de um dialeto italiano.
País Basco e Catalunha
Os dois territórios espanhóis têm língua e cultura próprias (o basco, diga-se, é um idioma antiquíssimo, sem parentesco com línguas latinas ou germânicas). A opressão na ditadura de Franco acirrou os ânimos separatistas bascos e gerou o grupo terrorista ETA, sigla para Euskadi Ta Askatasuna, “Pátria Basca e Liberdade”. Já a Catalunha, embora sem insurgência armada, é 90% favorável à independência.
Na Galícia, uma região no noroeste da Espanha, fala-se galego – idioma que nasceu do mesmo ramo linguístico do português. Compare:
Português lusitano: “O Parlamento insta o Conselho a adotar as medidas necessárias para promover o pedido de admissão da Galiza como membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.”
Galego: “O Parlamento insta a Xunta a adoptar as medidas que sexan necesarias para impulsar a solicitude de admisión de Galicia como membro na Comunidade dos Países de Lingua Portuguesa.”
Estados Unidos
41 milhões de pessoas (13% da população) falam espanhol em casa – é um número de falantes maior que o da própria Espanha. O grupo anti-imigração ProEnglish luta desde 1994 para tornar o inglês língua oficial do país (a Constituição não prevê uma) e impedir o ensino bilíngue. Em 2017, Trump tirou do ar a versão em espanhol dos sites federais, num aceno a este e outros grupos racistas.
Paraguai
Em 2010, a legislação do país mudou para elevar o guarani ao patamar do espanhol, tornando-o também idioma oficial. Mas a língua indígena passou por uma reforma gramatical para se adequar ao currículo escolar – e não é mais a mesma que os avós das crianças falam. Países colonizados que dão espaço a línguas nativas têm o desafio nada trivial de viabilizar a tradição oral na forma escrita.
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Fontes: Marcos Bagno, Professor Associado do Instituto de Letras da UnB; Gabriel Antunes de Araujo, Livre-Docente na área de Filologia e
Língua Portuguesa no Depto. de Letras Clássicas e Vernáculas da USP; Pâmela Teixeira Ribeiro, Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela USP.
Errata: A versão online exclui um trecho sobre as diferenças entre português brasileiro e português europeu que continha informações imprecisas.