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Minha mãe (não) é bandida

O número de mulheres na prisão subiu 567% em 15 anos. Boa parte delas não deveria estar lá

Por Pâmela Carbonari, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 21 ago 2018, 01h48 - Publicado em 3 mar 2017, 19h57

Débora* é negra, tem 43 anos, não completou o Ensino Fundamental e não tem antecedentes criminais. Aposentou-se cedo por causa da sua incapacidade de andar e sua pensão é a única fonte de sustento da casa em que vive com filhos e netos na periferia de São Paulo. Ou, pelo menos, em que vivia.

Em uma tarde de setembro de 2015, Débora brincava com um dos netos quando a polícia entrou sem pedir licença nem bater na porta. Havia uma denúncia anônima de que ela guardava drogas. Eles encontraram 110 g de maconha, 44 g de cocaína e 15 g de crack em uma mochila nos fundos da casa, que fica aberta para a passagem de pessoas. Por conta da dificuldade de locomoção, Débora dificilmente teria acesso ao local onde encontraram os entorpecentes. Mesmo assim, ela nunca mais voltou para casa.

11.269 mulheres estão presas sem condenação no Brasil (3 em cada 10)

Débora aguardou seis meses na cadeia até a primeira audiência. Em um julgamento sem outras evidências de seu envolvimento com tráfico e com os policiais como únicas testemunhas, foi condenada a um ano e oito meses de prisão, pena mínima para “tráfico privilegiado” – o termo designa o acusado sem antecedentes criminais nem envolvimento com o crime organizado. Hoje, Débora está longe dos filhos, sem cadeira de rodas e com as pernas sangrando de se arrastar pela prisão.

Se o flagrante de Débora ocorresse a partir de 23 de junho de 2016, ela poderia estar cumprindo pena em liberdade. Na data, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que tráfico privilegiado não é crime hediondo. Em livre tradução do juridiquês, perder o caráter hediondo é abrandar a natureza do crime e ganhar mais flexibilidade no cumprimento da pena. No entendimento atualizado da lei, se o réu não tiver ficha na polícia nem envolvimento com o crime organizado, o juiz pode reduzir a pena e decidir pelo cumprimento em regime aberto. Essa medida pode beneficiar cerca de 12 mil mulheres detidas por delitos relacionados ao tráfico de drogas – universo que representa 32% da população carcerária feminina no Brasil.

Se a pessoa pegar menos de quatro anos de prisão, pode cumprir em regime aberto ou apenas ter direitos civis restringidos – o mais comum é pagar uma multa ou fazer serviços comunitários. Para penas maiores que quatro anos, o condenado pode cumprir um sexto na prisão e progredir para regimes mais leves.

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Fábrica de detentos

O processo que transformou o tráfico privilegiado em crime não-hediondo se arrastava há um ano e foi uma virada histórica contra a austeridade das punições. Um dos principais motivos da virada foi o discurso do então presidente do STF, Ricardo Lewandowski. Ele alertou que, se o País continuar encarcerando no ritmo atual, chegará a 1 milhão de presos em poucos anos – no último levantamento oficial, de 2014, eram 579.787 detidos. Lewandowski afirmou também que 45% dos 174 mil presos por tráfico de drogas no Brasil não são relevantes nas organizações criminosas nem têm antecedentes criminais. Ele também ressaltou o impacto negativo do encarceramento em massa de mulheres, já que 56% das presidiárias brasileiras criavam os filhos antes de terem ido para a cadeia.

A situação é alarmante, de fato. De acordo com um relatório do Ministério da Justiça(1), o número de mulheres presas aumentou 567% entre 2000 e 2014. Esse salto de 5.601 para 37.380 presas representa três vezes o crescimento da população carcerária feminina das Américas, e cinco vezes o da Ásia. Alguma coisa está fora da ordem mundial.

E o motivo parece nítido: cada vez mais mulheres têm sido presas por “tráfico privilegiado”, como Débora. Tanto que o tráfico aparece como o motivo das prisões de 64% das mulheres. Diante disso, a conclusão do STF foi a seguinte: estamos prendendo gente demais, por tempo demais.

“É um avanço ver que o Judiciário se mostrou sensível à proporcionalidade de penas. Não faz sentido prender usuários e pequenos traficantes enquanto os patrões das organizações criminosas estão soltos e o sistema carcerário está prestes a explodir”, afirma Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, ONG voltada para pesquisa em segurança, justiça e desenvolvimento.

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Juristas como Vitore Maximiano, ex-secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, defendem essa nova opção para conter o inchaço das cadeias. “Tráfico não é um crime violento. Outras penas que não a restritiva de liberdade podem ser aplicadas. Não dá para o sistema funcionar como uma máquina de prisões.”

Os últimos anos mostram que o encarceramento em massa não é um método eficiente de combate ao crime. Na lista das 50 cidades mais violentas do mundo(2), com base no número de homicídios, 21 delas são brasileiras. O País tem a quarta maior população carcerária do planeta, com quase 600 mil detentos – perdemos apenas para EUA, China e Rússia. Só que, enquanto eles reduziram as taxas de aprisionamento em 8%, 9% e 24%, respectivamente, a nossa aumentou 33% entre 2008 e 2014.

54% das mulheres não recebem visitas.
(Dados estaduais de São Paulo)

Esse aumento da população prisional está diretamente ligado com o combate às drogas no Brasil – entre 2006 e 2014, o número de presos por tráfico aumentou 50% (de 44 mil para 66 mil). “A política de drogas foi o maior exemplo do fracasso do sistema penal e carcerário brasileiro, prendendo em condições terríveis com o pretexto de defender a saúde pública. Houve um aumento brutal do número de detentos e uma clara seletividade da polícia e da Justiça: pobres e negros são os mais processados”, diz Mauricio Fiore, diretor-científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.

Há dez anos, a Lei 11.343/2006 foi pioneira ao permitir julgamentos distintos para usuários e traficantes. A ideia era abrandar a pena de quem usa e enrijecer a punição a quem produz e comercializa.

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Mas a medida teve um efeito colateral inesperado: fez crescer o número de traficantes. O de gente condenada por tráfico, na verdade. Aí, das duas uma: ou o comércio de cocaína, crack e cia. virou a mais nova tendência do mundo dos negócios ou a polícia passou a prender usuários dizendo que eles não eram simples consumidores, mas traficantes. O STF e as ONG que examinam o assunto apostam na segunda hipótese. A tendência, eles afirmam, foi clara: usuário pobre demais para se defender juridicamente tende a acabar fichado como traficante. E pequeno traficante acaba fichado como se fosse um peixe grande do crime. É o caso de Raquel.

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Gravidez na cela

Raquel Santos Machado é diarista, dona de casa e mãe de três filhos. Enquanto os mais velhos brincam, ela amamenta Nicole. Conta que sua rotina é cuidar das crianças, que não falta a reuniões escolares e que ajuda no dever de casa. Raquel defende que um filho não pode ser criado longe da mãe. E ela tem conhecimento de causa para afirmar isso.

Em 2014, o dinheiro não dava para comprar leite e fraldas. Viu no tráfico uma saída, mas foi flagrada com 7 g de maconha e 18 g de cocaína – quantidade pequena para um traficante, mas não suficiente para livrá-la da cadeia. Pegou dois anos. Nota: estava grávida de Nicole.

“Quando você está na rua e sente uma dor, vai ao hospital. Lá dentro, não. Se não tiver uma escolta para acompanhar, você não sai de jeito nenhum”, relembra em um dos vídeos da série Por Que é Melhor Não Prender, da iniciativa Mulheres em Prisão(3).

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Sem poder pagar um advogado, Raquel foi assistida pela Defensoria Pública (SP), que conseguiu um habeas corpus depois de ela ter passado oito meses numa cela. Assim, ela aguardou em liberdade o processo tramitar na Justiça. Sua pena virou restrição de direitos: em vez de passar mais 20 meses na cadeia, ela prestou serviços à comunidade e ficou sem sair de casa aos finais de semana. Raquel tinha deixado a penitenciária em 14 de agosto de 2014. Dois dias depois, Nicole nasceu.

A alteração da pena de Raquel ocorreu antes da nova decisão do STF, mas estava alinhada com o que já rezava a lei. O Código Penal brasileiro estabelece que grávidas, mães de crianças de até 12 anos ou responsáveis por menores com deficiência podem trocar a prisão preventiva pela domiciliar. Além disso, as Regras de Bangkok, um conjunto de normas promulgado pela ONU, defende que as mulheres são um grupo vulnerável com necessidades e exigências próprias. Por isso, os países devem ter condenações alternativas à privação da liberdade.

A ONU sugere também que infratoras não sejam separadas de suas famílias e comunidades sem que se avalie a história delas. O cumprimento dessas recomendações é prioridade para a presidente do STF Cármen Lúcia, a fim de combater o encarceramento feminino. Porém, pelo costume ainda arraigado de julgar o tráfico como crime hediondo, muitos juízes ignoram essas regras. Raquel teve sorte.

Círculo vicioso

Se há normas que defendem um olhar mais apurado nos processos contra mulheres, na prática, o pressuposto de igualdade de gênero condena o lado mais fraco. “Homens e mulheres são julgados sem distinção. Ou seja, não se discute se a ré está grávida ou se tem filhos. Muitas vezes, nem a própria defesa se vale das condições asseguradas no Código. Não levar isso em consideração na hora de julgar reforça a violência de gênero”, afirma Raquel Lima, coordenadora do programa Justiça sem Muros.

O paradoxo “julgar diferente para julgar igual” faz sentido, porque as condições entre homens e mulheres não são as mesmas fora do júri. Como vimos, mais da metade das presas viviam com os filhos, contra 23,7% dos presos homens. Outro ponto a favor delas: grande parte das presidiárias atuava em atividades criminais que não envolviam violência ou funções de comando. No tráfico, a maioria das mulheres trabalha como empacotadeira de drogas, e, quando vendem, o fazem em quantidades diminutas -o que é crime, sem dúvida, mas que não envolve violência.

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Violência mesmo é o que acaba invadindo as casas onde essas mulheres moravam antes de se mudar para para a cadeia. Na ausência da mãe, as crianças tendem a ser criadas por outra mulher. Se for a avó, é possível que a saúde dela já esteja debilitada. Mesmo que seja uma irmã ou amiga, provavelmente será alguém sem condições financeiras de assumir a prole de outra pessoa. Por tudo isso, é comum os filhos das detentas acabarem eles próprios atraídos pelas facilidades do crime. E fecha-se um círculo vicioso, com a cadeia gerando seus futuros presidiários.

Seja como for, o fato é que desde junho mais rés podem aguardar seus julgamentos em liberdade – a regra, antes, era prisão preventiva imediata. Ainda assim, para que a decisão do STF tenha um impacto realmente positivo, não basta só uma mudança de mentalidade do Judiciário. “O mesmo raciocínio de um juiz que prende alguém por tráfico é o que fica para um empregador na hora de decidir se contrata ou não a ex-detenta”, diz Nina Marcondes, advogada do Justiça sem Muros. De fato. Enquanto a própria sociedade continuar achando que todo mundo que já foi condenado por tráfico é um monstro, continuaremos estimulando ex-presidiários e ex-presidiárias a infringir a lei novamente. E o que seguirá hediondo serão as estatísticas criminais do País.

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Fontes: (1) Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) (2) ONG mexicana Conselho Cidadão pela Seguridade Social Pública e Justiça Penal (3) Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)

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