O lado amargo da baunilha
Viajamos para Madagascar e descobrimos que o preço da 2ª especiaria mais cara do mundo – R$ 2.000 por quilo na cena gourmet – é fruto de lavagem de dinheiro
Cada sacolejo por uma estrada de terra que é, nos melhores trechos, toda esburacada, acaba compensado pela vista: extensas colunas de coqueiros, abacateiros gigantes, mangueiras intermináveis e carregadas de frutos amarelos, abacaxis, flores dos mais variados tons e um grande rio dourado, o Bemarivo, que serpenteia pelo extremo norte de Madagascar – a grande ilha do sudeste africano e 10º país mais pobre do mundo.
Quanto mais entramos na floresta, mais frequentes são as barreiras com homens armados inspecionando tudo e todos que entram e saem da região. Perto do destino, a diversidade da flora local dá lugar a um corredor verde, dominado por uma trepadeira com pequenos cachos forrados de vagens. Os aromas são ofuscados por um cheiro intensamente doce, ao mesmo tempo familiar e exótico, que aos poucos vai dominando o ambiente. Um cheiro que, de tão forte, faz a boca salivar… Um companheiro de viagem interrompe nosso transe sensorial apontando pelo vidro da janela e sussurrando: “Taí o que vocês estavam procurando… tudo isso é baunilha.”
Chegamos a Tanambao, pequena aldeia da região de SAVA (sigla para as cidades de Sambava, Antalaha, Vohemar e Andapa). Com território quase do tamanho da Bélgica e 980 mil habitantes, SAVA produz metade da baunilha natural do planeta, um mercado de nicho, já que 95% da baunilha usada no mundo é sintética, mais barata. O motivo de tantos bloqueios de segurança pela estrada é simples: a baunilha natural é a segunda especiaria mais cara da Terra. Cotada em São Paulo a US$ 960 por quilo no atacado, fica atrás apenas do açafrão, cujo quilo custa US$ 4.090.
Safra milionária
Mais impactante que o aroma e a abundância das favas é a condição de quem as cultiva. Enquanto um punhado de baunilha dá sabor a sorvetes e outros doces gourmet ao redor do mundo, 50 mil famílias malgaxes – originárias de Madagascar – derretem sob sol para colher, em média, 100 kg de favas verdes por ano. Dessa colheita, após um longo processo de beneficiamento, envolvendo escaldo e secagem, sobram 15 kg de baunilha seca, escura e preciosa para restaurantes, pâtisseries e sorveterias.
A safra anual deixa a família milionária: rende 1,5 milhão de ariary, moeda local. Convertendo os valores para a realidade, porém, o rendimento é pífio. Atravessadores pagam obscenos US$ 32 por quilo da mercadoria pronta, padrão exportação, para os produtores. Ou seja, a renda é de cerca de US$ 480 (R$ 1.500) por ano – R$ 125 por mês. Como a temporada da baunilha dura apenas três meses, na entressafra as famílias de SAVA se viram criando gado e plantando café e arroz, atividades ainda menos lucrativas, por incrível que pareça.
Denis Emile Jao dedicou pelo menos 50 anos de sua vida à extração de baunilha. Hoje, aos 70, ele diz que gastou o pouco que ganhou com a família e mandando os filhos para a escola. Quando comentamos que uma das minúsculas favas que ele tem na mão custa, em média, US$ 6 no Brasil, o senhor franze a testa, como se não acreditasse. E continua: “Eu não tive oportunidades de ir muito longe daqui. E não posso tentar fazer nada diferente com a idade que tenho. Mas, por tudo que trabalhei até hoje, eu não deveria viver assim. Até a minha casa deveria ser diferente. Eu deveria morar em uma casa bonita de concreto ou, pelo menos, de ferro. Mas a verdade é que não tenho nada. Preciso trabalhar para comer.”
“Em contrapartida, os exportadores são milionários. A verdade é que existe muita injustiça. Por causa da pouca educação e do isolamento, os camponeses não têm ideia do preço da baunilha fora daqui. Nenhuma!”, explica Dominique Rakotoson, produtor em Tanambao e estudioso sobre o mercado de baunilha.
Entretanto, o maior desafio enfrentado atualmente pelos produtores não está relacionado com o trabalho árduo em nenhuma das etapas de produção. O aumento do preço da baunilha ao longo dos últimos anos desencadeou uma corrida pelas tão valorizadas favas. Segundo os produtores locais, em 2012 o quilo da baunilha custava US$ 22,50. Hoje, o quilo é vendido por até US$ 450 em SAVA. Essa escalada na cotação da especiaria tem atraído a atenção de grupos criminosos.
Alguns produtores organizam milícias para vigiar os cultivos noite e dia. E, pra variar, quem mais sofre com a violência são os menores produtores, sem condições de pagar por proteção privada. Nesse caso, para não arriscar a própria vida, se antecipam e colhem a baunilha ainda verde. Quando a fava não está madura, porém, ela tem menos vanilina – substância que dá aroma à baunilha. “Assim, a qualidade da baunilha não é boa, o cheiro não é bom. Isso deprecia o produto aos olhos do importador e todos nós perdemos. Atualmente, o maior desafio da indústria de baunilha é a segurança da região de SAVA”, diz Eric Sinikely, dono da exportadora Exotic.
Uma tentativa mais pacífica de amenizar os furtos é usar ferro e fogo para marcar o produto. “Todas as minhas favas estão marcadas com as iniciais do meu nome. Se alguém rouba minha baunilha, eu tenho mais chance de encontrá-la e provar que é minha”, explica Denis, enquanto exibe um cesto de palha recheado de favas com suas iniciais.
Mesmo assim, não é incomum o enfrentamento entre produtores e ladrões. “É duro contar isso, mas perto daqui, na aldeia de Marolambo, assaltantes atiraram na direção da casa em que viviam donos de baunilha e acertaram um bebê de dois ou três meses, que morreu na hora”, recorda Thomy Thierry, produtor de baunilha em Antanabasa, aldeia de apenas quatro casas.
A baunilha valoriza quase 20 vezes da planta ao prato.
O que mais revolta os agricultores da baunilha em SAVA é a omissão da polícia. Criminosos capturados pelas milícias e levados até as autoridades são liberados em pouco tempo. “É ridículo. Muitas vezes os policiais soltam os assaltantes antes mesmo de sairmos da delegacia”, conta Thierry.
O descaso oficial leva a atos de barbárie. “Muitas vezes, quando produtores prendem o ladrão, eles o matam e queimam no mesmo lugar. Porque ninguém confia na Justiça. Se as coisas não mudarem em SAVA, os malgaxes vão todos se matar a cada colheita de baunilha”, diz Kune Leng, morador de Tanambao.
Comércio paralelo
Além do comércio desregulamentado e da violência generalizada, fatores externos também impactam a cotação da baunilha. Na principal crise recente, em 2000, um ciclone devastou cerca de 80% das plantações em SAVA.
Inicialmente, com menos baunilha disponível no mercado, o preço aumentou. A alta repentina, entretanto, criou muita especulação no mercado de SAVA. O preço elevado assustou os importadores, que mandaram Madagascar às favas e começaram a comprar baunilha da Indonésia – que, em 2004, chegou a roubar a liderança mundial em exportações. Entre 2008 e 2012, a baunilha deixava Madagascar por, no máximo, US$ 30 o quilo. Em 2013, o preço subiu para US$ 40; em 2014, US$ 70. Mas esse é só um pedaço da explicação. Agora é que a coisa esquenta.
Em 2000, o mesmo ciclone que varreu quase toda baunilha do mapa também derrubou muitas árvores com madeira de altíssimo valor, como o jacarandá. À época, o governo concedeu uma autorização provisória para a comercialização da madeira de jacarandás levados abaixo pelo ciclone. Ao descobrir que ela era ainda mais valorizada do que imaginavam, principalmente na China, a atividade continuou – mas na ilegalidade, com madeireiras derrubando jacarandás às pencas. “Muita gente tem ficado milionária de um dia para o outro”, conta Kune Leng.
O tráfico de madeira gerou um volume colossal de dinheiro sujo no país. Como resposta, o governo tentou contornar o problema monitorando todas as operações bancárias acima de US$ 16 mil. Nesses casos, a origem do dinheiro teria que ser comprovada com vários documentos.
Depois dos anos 2000, SAVA, a “capital da baunilha”, passou a ser conhecida no mercado negro como a “capital do jacarandá”. Isso significa que a maior parte do dinheiro sujo do jacarandá está lá. E os traficantes começaram a lavar a grana com baunilha.
O esquema funciona assim: os madeireiros compram baunilha em pequenos lotes para evitar a malha fina do governo. Só que, como a economia local é instável e nunca se sabe quando haverá troca de moeda, ninguém quer se arriscar a vender a baunilha e ficar com dinheiro sem valor nas mãos. A baunilha, então, fica estocada como reserva de valor – o mesmo que as pessoas fazem com o ouro em tempos de crise financeira.
Assim, pela primeira vez na história, compradores locais passaram a pagar mais caro pela baunilha que os importadores. O preço foi para as nuvens.
“Em 2016, fui contratado por um cliente interessado em duas toneladas de baunilha. Entrei em contato com um fornecedor e negociamos o quilo por US$ 190. Quando voltei para pagar, ele disse que o preço não era mais US$ 190, mas US$ 225. Meu cliente aceitou o novo valor e, quando voltei para pagar, o fornecedor mudou de ideia novamente e queria US$ 260. Por tudo isso, atualmente o quilo da baunilha para exportação está custando até US$ 450 em SAVA”, finaliza Dominique – única pessoa que aceitou falar sobre o tráfico de jacarandá e ter seu nome publicado.
No cenário atual, as 3,1 mil toneladas exportadas de Madagascar têm uma escalada vertiginosa da planta ao prato. Pequenos produtores dividem os US$ 99 milhões pagos pelos atravessadores (US$ 32 por quilo), o que não dá nem para o cheiro do US$ 1,4 bilhão (US$ 450 por quilo) pago pelos exportadores aos lavadores de dinheiro para espalhar o aroma da baunilha pelo mundo. No fim das contas, após valorizar quase 1.900%, esse “ouro negro” vale US$ 1,95 bilhão (US$ 630 por quilo) quando chega até você, como sobremesa de luxo. Talvez sobre uma mesa de jacarandá de US$ 25 mil.
Conto de favas
O caminho das orquídeas selvagens até virarem sobremesa gourmet
Ilustrações: Sarah Kamada
1. Origem
A baunilha é produto da orquídea Vanilla planifolia. Após ser plantada, a muda demora quatro anos para se desenvolver completamente e florescer.
2. Polinização
Quando os botões abrem, elas são polinizadas individualmente com um palito. As favas amadurecem, acumulando vanilina, substância que dá o aroma.
3. Colheita
As favas são colhidas à mão, uma a uma, pois amadurecem em tempos diferentes.
4. Aquecimento
O beneficiamento começa com as favas sendo escaldadas por 3 minutos em água a 65 oC ou por 10 segundos a 80 oC. Isso inicia a formação do aroma na planta.
5. Repouso
As vagens escorridas, e ainda quentes, são embrulhadas em cobertores. Nessa etapa, a fava fica marrom e cheirosa, mas ainda retém muita água (cerca de 70% do peso).
6. Secagem
As favas são desidratadas – parte do dia sobre lonas a céu aberto e outra parte, à sombra. O processo interrompe a decomposição e fixa o sabor.
7. Triagem
Uma armazenagem de seis meses acentua sabor e aroma. Depois, as favas são classificadas de acordo com a qualidade e embaladas em papel parafinado para exportação. Nesse ponto, 2,5% da fava é vanilina.
8. Exportação
As favas mais íntegras, escuras e oleosas são vendidas inteiras. As menores, menos vistosas ou que se danificaram viram matéria-prima para baunilha em pó e essência.