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A lição do futebol de Santa Catarina para os clubes do resto do País

Com folha de pagamento enxuta e rigor no orçamento, a Chapecoense saltou da Série D para a Série A em cinco anos. Relembre os acertos do time e de seus conterrâneos no aniversário de quatro anos do acidente de avião.

Por Daniel Giovanaz
Atualizado em 27 nov 2020, 13h47 - Publicado em 1 jun 2017, 17h45

Poucos acontecimentos esportivos provocaram tanta discussão quanto o 7 x 1 da Alemanha contra o Brasil na Copa de 2014. Antes do fim do jogo, milhões de pessoas tentavam entender o fracasso e propor soluções para que não se repetisse. Para Sandro Pallaoro, então presidente da Chapecoense, que estava no Mineirão, faltava identificação entre time e torcida.

Primeiro passo para a reaproximação: aperfeiçoar a gestão de clubes. Com folha de pagamento enxuta e rigor no orçamento, a Chape multiplicou o número de sócios, ergueu um centro de treinamentos e saltou da Série D para a Série A em cinco anos. Pallaoro queria dividir a experiência vitoriosa com outros dirigentes e recuperar a credibilidade do futebol no Brasil. Se atletas de ponta não tivessem que deixar o País para receber em dia e disputar torneios em alto nível, estaria resolvida a falta de identidade.

Nos últimos meses de vida, Pallaoro, morto no acidente de avião da Chapecoense, não parou em casa. Além de viagens com a equipe, era convidado a palestrar em vários Estados, contando o segredo do time. Além do respeito ao orçamento, um dos mantras do ex-presidente era “investir na base” (formação de jovens atletas) para reduzir custos e favorecer o entrosamento entre jogadores e comunidade – coisa que a Alemanha também fez.

Enquanto o dirigente da Chape dividia a angústia com a família nas arquibancadas, os alemães ampliavam o placar, dando força às convicções de Pallaoro. Os carrascos Thomas Müller, Toni Kroos, André Schürrle, revelados por escolinhas de clubes alemães, jogavam juntos, desde a base, havia pelo menos seis anos.

Atônito à beira do gramado, o protagonista da maior conquista do futebol catarinense até então estava derrotado. Luiz Felipe Scolari, campeão da Copa do Brasil pelo Criciúma em 1991, procurava uma justificativa para o vexame.

Se o 7 x 1 era o fim de Felipão na Seleção, o improvável título com a equipe catarinense, 23 anos antes, tinha sido o começo. “Foi o trabalho com o Criciúma que fez com que ele chegasse lá”, lembra o ex-jogador Roberto Cavalo, treinado por Scolari em 1991.

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Imagem sem texto alternativo (Julia Rodrigues/Superinteressante)
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Pontapé para cima

A façanha de Scolari nos anos 1990 é considerada um capítulo à parte do futebol catarinense. Depois daquela zebra vestida de tigre (apelido do Criciúma), Santa Catarina esperou 16 anos para disputar um título de tamanha importância, e isso só aconteceu porque houve uma revolução na gestão e na administração não só da Chapecoense, mas de boa parte dos clubes do Estado – que têm se tornado uma referência para todo o futebol brasileiro.

Mesmo derrotado na final da Copa do Brasil de 2007, foi o Figueirense, clube da capital Florianópolis, que iniciou a ascensão de Santa Catarina nos gramados nacionais. O grupo que chegou à decisão era fruto de investimento pesado na base, com um modelo de prospecção de atletas similar ao dos principais clubes da Espanha e da Alemanha.

“Dos 18 jogadores relacionados para aquela final, 14 eram formados no Figueira. Sete anos antes, dos nossos 37 jogadores, nenhum era da casa”, lembra Hemerson Maria, treinador da base do clube de 2001 a 2010 e campeão brasileiro da Série B pelo também catarinense Joinville em 2014.

Campeão da Copa São Paulo de Futebol Júnior em 2008, o time de Florianópolis revelou quatro jogadores de Seleção: Henrique, hoje no Cruzeiro, Roberto Firmino, do Liverpool, André Santos, ex-Corinthians, e Filipe Luís, do Atlético de Madri. Nenhum deles nasceu em Floripa: o Figueirense tinha olheiros e analistas de desempenho em quase todos os Estados em busca de novos talentos.

A estratégia de recrutamento foi replicada por outros clubes catarinenses e, em um dos casos mais bem-sucedidos, o Joinville, clube da maior cidade do Estado, descobriu o volante Ramires aos 16 anos, no Rio de Janeiro. Jogador de Seleção Brasileira entre 2008 e 2014, protagonizou a transferência mais cara do emergente futebol chinês, em 2016 – 28 milhões de euros, que renderam R$ 2 milhões ao Joinville, como clube formador do atleta.

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Imagem sem texto alternativo (Julia Rodrigues/iStock)

Inteligência em campo

O Avaí, também de Florianópolis, e que está de volta à Série A em 2017, inovou entre os clubes catarinenses ao fazer análises de desempenho por vídeo. Em 2011, os dirigentes contrataram o carioca Ricardo Henry para gravar amistosos do time na Suécia e na Dinamarca. De volta ao Brasil, ele fundou as bases de um novo departamento: o Núcleo de Inteligência no Futebol (NIF), inaugurado em 2016.

Além de Henry, trabalham no Núcleo três estagiários, alunos de Educação Física. Para acabar com o efeito-ioiô (subir e cair de divisão seguidamente) no Brasileirão, eles produzem e analisam vídeos, filtram jogadores que se encaixam no perfil do Avaí, monitoram os atletas emprestados a outras equipes e ajudam a minimizar erros na montagem do elenco.

“O que estamos implementando aqui já é consolidado na Europa. Principalmente na Inglaterra, onde Chelsea, Liverpool e Manchester City são nossas referências”, afirma o chefe do setor no Avaí. “A ideia não é que os treinadores olhem as estatísticas do jogo como um número absoluto, mas que considerem dados como a posição de cada jogador no campo e o número de passes decisivos”, exemplifica.

A Chapecoense também tem seu analista de desempenho. É Victor Hugo Nascimento, que utiliza softwares estrangeiros – como o russo InStat Scout –, mas o carro-chefe de seu trabalho é uma plataforma que ele mesmo criou. O Portal do Atleta permite que cada jogador acesse vídeos das últimas quatro partidas de todos os atletas do time adversário, para estudar os oponentes.

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A chegada à final da Copa Sul-Americana, no fim de 2016, pôs à prova o trabalho de Victor Hugo. “Antes das oitavas, contra o Independiente, da Argentina, eu dividi o gol em nove quadriláteros e mostrei ao Danilo (goleiro) as últimas cobranças de cada jogador, para que ele visse as tendências”, lembra. “O jogo foi para os pênaltis e o Danilo defendeu quatro. Foi o ápice, para mim e para a Chape.”

Todos jogando junto

O crescimento fulminante do time do oeste de Santa Catarina não foi surpresa para o ex-jogador Paulo Rink, artilheiro da Chape em 1995. “Na minha época, a estrutura era precária, mas a gente sentia que o clube e a cidade eram movidos pela paixão”, conta. “Depois, quando se juntou a esse sentimento uma ideia de profissionalização e organização financeira, os resultados vieram naturalmente.”

A Chape aprimorou a gestão orçamentária uma década antes de chegar à Série A, o que fortaleceu o envolvimento da comunidade e dos investidores da região, como grandes empresas de agroindústria e frigoríficos. Em 2006, veio o segundo salto: a parceria com a Umbro, fornecedora inglesa de materiais esportivos que tem uma fábrica a 50 km de Chapecó.

Com a produção em uma região onde ao menos 65% da população torce para a Chapecoense, o gerente de sports marketing da Umbro, Eduardo Dal Pogetto, ressalta que a organização da Chape despertou o interesse da marca: “O projeto do clube sempre foi interessante. O investimento foi gradativo e, no começo, de risco mútuo, porque a marca e o clube dependiam do desempenho em campo.”

A partir dos anos 2000, a Umbro passou a apostar em outros dois clubes do Estado. Hoje, quase 30% dos times brasileiros que vestem Umbro são de Santa Catarina.

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Imagem sem texto alternativo (Thales Molina/Superinteressante)

Em boas mãos

Com os times subindo no cenário brasileiro, a Federação Catarinense de Futebol (FCF) trabalhou para elevar o nível do campeonato estadual, ameaçado de desprezo por dirigentes e torcedores. A primeira medida do ex-presidente da entidade, Delfim Peixoto, foi investir pesado na arbitragem.

De acordo com o sucessor Rubens Angelotti, “esse é o maior legado de Delfim [também morto no acidente aéreo da Chapecoense]”. Heber Roberto Lopes, árbitro Fifa, e Sandro Meira Ricci, que atuou na última Copa do Mundo, apitam jogos do Catarinense desde 2015. “Isso aumenta muito o nível do campeonato”, completa.

É consenso entre os dirigentes que o que falta para o Estado consolidar um papel relevante na elite do futebol nacional é entrar na briga por um título no formato de pontos corridos (no qual todos os times se enfrentam, com o maior pontuador sendo o campeão). Até hoje, o melhor desempenho foi o sexto lugar do Avaí no Brasileirão 2009. Para isso, será preciso superar um abismo financeiro: o valor repassado a Corinthians e Flamengo, referente às transmissões de TV, é quase sete vezes maior que a verba destinada aos times de SC na Série A.

Alemanha + Inglaterra

O sucesso da seleção alemã se deve à uma política vertical de investimento na base: desde 2001, a Federação Alemã repassa uma fatia milionária do orçamento para os departamentos amadores dos 40 maiores clubes do país. Em cada microrregião há um rigoroso processo seletivo, e os melhores jogadores são escolhidos para integrar desde cedo a seleção de base, que deve jogar com o mesmo padrão tático da equipe principal. É como se a CBF subsidiasse despesas dos clubes das Séries A e B e exigisse que cada um deles priorizasse as categorias de base, como o Figueirense fez nos anos 2000.

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Se o projeto de Hemerson Maria no Figueira pode ser comparado à gestão das categorias de base na Alemanha, não é exagero afirmar que as reflexões de Sandro Pallaoro após o 7 x 1 conduzem a um modelo similar ao inglês. Na Premier League, uma das ligas mais equilibradas e lucrativas do mundo, a organização do campeonato está baseada na captação e satisfação dos sócios-torcedores e no fortalecimento dos laços com a comunidade. A ideia é produzir identificação, aumentar as receitas dos clubes e coibir a violência nos estádios.

Sócios-torcedores

A sinergia entre os torcedores e a equipe da Chapecoense já era bem conhecida para quem acompanha futebol. Com o acidente aéreo de dezembro de 2016, ela foi revelada de maneira ainda mais cativante para o público comum. As homenagens em meio ao luto no estádio do clube, a Arena Condá, rodaram o mundo.

Em termos práticos, o clube triplicou o número de afiliados entre 2013 – ano da campanha que garantiu o acesso do time à elite do Brasileirão – e 2016. Os 8 mil associados viraram 25 mil – quantidade superior ao do programa de fidelidade do Botafogo, gigante do futebol brasileiro, e maior que a capacidade da Arena, de 22,6 mil. Após a queda do avião, dada a comoção, a Chapecoense atingiu 40 mil sócios, que, atualmente, garantem 20% das receitas mensais do clube.

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Imagem sem texto alternativo (Thales Molina/Superinteressante)

Força (do) interior

A trajetória da Chape serve como exemplo para os clubes menores de Santa Catarina que aspiram chegar à elite. O Clube Almirante Barroso, de Itajaí, voltou à primeira divisão estadual após 46 anos – foi rebaixado na temporada de reestreia, é verdade – e tem se estruturado. A equipe possui o único gramado sintético homologado pela Fifa no Estado, e pretende usá-lo como trunfo em 2017. “A gente não pensa em ser pequeno para sempre”, explica o presidente Helio Orsi.

Outro clube que se diferencia pelo investimento em infraestrutura é o Metropolitano, de Blumenau – uma das grandes cidades formadas pela imigração alemã no Brasil. “A gente carrega essa tradição alemã de levar as coisas com muita seriedade, e é assim que fazemos junto à comunidade na gestão das empresas e do time também”, admite o arquiteto Mairo Volkmann, diretor de projetos do clube, que desenhou um moderno centro de treinamentos para o clube: “É a nossa prioridade.” Volkmann espera também que, com os investimentos em infra, seja possível não apenas incomodar no estadual, mas chegar à Série B do Campeonato Brasileiro.

Além das dificuldades impostas por times menos tradicionais, os torcedores em Santa Catarina não estão polarizados, o que torna o campeonato estadual imprevisível. Se no oeste o primeiro time é a Chape, o Joinville domina no norte e o Criciúma, no sul do Estado. A torcida pelos clubes da capital, Avaí e Figueirense, fica praticamente restrita à Grande Florianópolis, e isso se reflete em campo: a cada dez Campeonatos Catarinenses, seis são vencidos por equipes do interior.

Para estimular ainda mais a competitividade, a Federação ajuda os times menores a quitar taxas de arbitragem e de inscrição em torneios. Isso evita que os clubes fechem as portas e propicia um equilíbrio de disputa semelhante ao da Premier League, que teve quatro campeões nos últimos cinco anos. É evidente a disparidade entre as cifras das equipes catarinenses e as da Terra da Rainha, mas quem vive o dia a dia dos clubes não recusa a inspiração: em Santa Catarina, os ventos do Velho Continente sopram a favor do futebol.

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O sucesso recente do futebol catarinense se baseia nos seguintes pilares…

• Responsabilidade na gestão financeira.
• Investimento em infraestrutura.
• Rivalidades regionais fomentando o crescimento dos clubes.
• Federação investindo nos estaduais.
• Fortalecimento das categorias de base.
• Uso inteligente da tecnologia.
• Suporte da comunidade e do empresariado local aos clubes.

… mas ainda perde feio em um quesito:
Santa Catarina é o Estado com maior porcentagem de clubes locais nas séries A e B (14,3%). Mesmo assim, os dois times na elite em 2017 recebem da TV, juntos, pouco mais de um quarto do que é pago aos campeões de audiência.

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