Aeromodelos dublês: Brinquedos de gente grande
Os aeromodelos já são usados para carregar câmaras em filmagens ousadas e para espalhar inseticidas em pequenas plantações. Mas seu trabalho mais fascinante é o de dublê, como cópias incrivelmente perfeitas de aviões reais.
A cena não mostra exóticos extraterrestres, nem desastres terríveis: apenas o emocionante ataque de um caça americano da Segunda Guerra, o Mustang P-51, contra um campo de concentração japonês, onde o menino James Graham, depois de perder-se dos pais ingleses, havia passado quase dois anos em abominável sofrimento. Apesar disso, ela representa um marco primoroso do moderno ilusionismo cinematográfico — cujo truque não se percebe mesmo quando o menino sobe a um dos edifícios da prisão para ver bem de perto o elegante avião, apelidado de “cadilaque do céu”, em ataques rasantes contra os japoneses.
Mas o segredo é tão simples quanto sofisticado: o avião, na realidade, é um dublê — um aeromodelo que resume o desenvolvimento tecnológico desses brinquedos nos últimos vinte anos. Embora tenha apenas 1,5 metro de uma ponta a outra da asa, ele incorpora caprichos das sondas espaciais, pois carrega a bordo um receptor de rádio para sinais de comando transmitidos em linguagem binária — código composto por uma sucessão de dois caracteres, por exemplo, zero e um. O receptor decodifica os sinais e aciona um conjunto de motores elétricos, ou “servos”, conforme o jargão dos engenheiros.
Os servos, por sua vez, comandam a aceleração do motor e movimentam os ailerons (superfícies nos extremos da asa que fazem o avião inclinar as asas na curva); os flaps, lâminas que escorregam por trás e para baixo da asa para aumentar a sustentação; e os lemes de direção e de profundidade, este último encarregado de fazer subir ou descer o nariz do avião. Esse conjunto de comandos é basicamente o mesmo dos aviões de verdade, e pode ser acrescido de outros: para abrir e fechar o trem de aterrissagem, despejar bombas, ejetar o piloto de pára-quedas, acionar dispositivos para soltar fumaça e dar a impressão de o avião ter sido atingido pelo inimigo.
Ou é possível simplesmente detonar um explosivo e encerrar a carreira do dublê voador, com glória, júbilo e aplausos da platéia. Além dos comandos, o refinamento alcança o motor a explosão, uma jóia da mecânica fina. Esculpido em ligas de alumínio e aço, pelas mesmas máquinas robotizadas presentes na indústria automobilística do Primeiro Mundo, cabe na palma da mão, pesa de 0,5 a 1 quilo e sua potência pode variar de um quinto à metade da do motor de uma motocicleta leve. O corpo do avião, afinal, embora não dispense uma pitada da tradicional madeira balsa, é moldado principalmente em espuma sintética e fibras de carbono, como as que dão forma aos car-ros de Fórmula 1.
Essa tecnologia não é aplicada em fábricas automatizadas, mas em oficinas de hábeis artesãos, que cobram caro pelo trabalho de tornar as miniaturas indistinguíveis de seus correspondentes de grande porte. Os avanços tecnológicos são de tal ordem que os aficionados mais radi-cais preferem hoje chamá-los de “modelos aeronáuticos” ou réplicas de aviões em escala reduzida. Não é por outro motivo que são capazes de dar aos filmes doses de realismo inimagináveis, até bem pouco tempo atrás, e a um custo relativamente baixo. O resultado foi uma profusão de filmes, nos últimos anos, nos quais os aeromodelos chegam a roubar a cena dos atores principais.
Um exemplo é a série de thrillers Águia de aço, do diretor Sidney Furie, já em edição de número três. Na suculenta salada aeronáutica que oferece, destaca-se uma revoada em que veteranos ases e seus antológicos aviões da Segunda Guerra — como os caças Spit-fire, inglês, Messerschmitt 109, alemão, e Zero, japonês — são perseguidos pelo estranho jato Soko, iugoslavo, pilotado por um malvado traficante de drogas. Também já existem modelos dotados de jatos — eles fizeram sua estréia no cinema em Os Eleitos. O filme, dirigido por Philip Kaufman e baseado num romance-reportagem de Tom Wolfe, revela a angústia dos primeiros astronautas dos Estados Unidos, nos anos 60.
Escolhidos entre os pilotos de prova da Força Aérea americana, aqueles heróis eram encarregados de descobrir, na prática, as manhas e os vícios da primeira geração de jatos supersônicos. Espatifar-se a bordo de um deles, então, era rotina nos campos de testes da Flórida. Mas como recriar os acidentes, com a destruição de caríssimos aviões, sem elevar o orçamento dos filmes a níveis estratosféricos? A saída natural foi usar aeromodelos no papel de cobaias a jato. Tanto que agora eles estão em via de conquistar o status de réplicas em pequena escala, como já o fizeram seus parceiros de motor a explosão. Até agora, os jatos têm usado um sistema de propulsão chamado em inglês de “ducted fan”, o que poderia ser traduzido livremente como “ventoinha num tubo”.
Não se trata, de fato, de um motor a jato, mas sim a explosão; a diferença é que ele opera em altíssima velocidade, entre 20 000 e 40 000 rotações por minuto. Assim, faz girar uma ventoinha que sopra o ar para trás e, em reação, empurra o avião para a frente. No máximo, o sistema pode ser classificado como uma imitação de turbina. E, embora cumpra sem ressalvas a tarefa de fazer voar um modelo, sua aposentadoria está próxima. Desde o início deste ano, uma indústria da cidade de Vibraye, na França, passou a produzir em série uma miniatura de turbina que funciona de acordo com os mesmos princípios dos verdadeiros jatos: ar e combustível, comprimidos e queimados numa câmara, geram gases que escapam com força por uma abertura na traseira e impelem o aparelho à frente.
Ao mesmo tempo faz girar uma turbina que, em última instância, provoca a compressão inicial da mistura de ar e combustível. O motor a jato francês utiliza querosene ou gás de cozinha, tem cerca de 11 centímetros de diâmetro, 30 de comprimento e pesa pouco mais de 2 quilos. Sua potência mantém no ar aviões de até 7 quilos durante 15 minutos, o tempo médio de vôo de um aeromodelo comum. Mas não foi por sua ficha técnica que causou euforia entre os craques do aeromodelismo presentes, no ano passado, num dos mais importantes torneios do mundo, o Top Gun dos Estados Unidos, rea-lizado em Palm Beach, Flórida.
Apresentada ao público equipando um caça F-16, a turbina acrescentou a última pincelada que faltava para dar realismo total ao jatos: o som. Pode parecer exagero, mas esse é um dos quesitos daquela modalidade de competição, conhecida como escala, na qual vence o modelo que reproduz com melhor precisão as características de um avião de grande porte. Outros itens importantes são a postura de vôo e o timbre do motor. Detalhes à parte, o que conta mesmo é o bom desempenho profissional dos aeromodelos, conseqüência da crescente confiabilidade dos motores e sistemas de controle remoto. De outro modo, ninguém ousaria colocar um microhelicóptero pairando 5 metros acima das cabeças do público de um show de rock, ou de uma corrida de Fórmula 1.
Foi o que fez recentemente a empresa belga Movie Can, pioneira em filmagens aéreas dessa categoria. E a idéia já chegou ao Brasil, por exemplo pelas mãos do especialista em efeitos especiais Guilherme Steger e do engenheiro e construtor de aeromodelos Celso De Santi. Responsável pelos dispositivos que permitiram certas proezas em comerciais de TV — como aquele em que um maço de cigarros faz strip-tease —, Steger usa uma oficina na zona norte de São Paulo para desenvolver um helicóptero capaz de fazer “filmagens impossíveis”, como diz. O problema é que as câmaras são usualmente presas a uma grua, espécie de braço mecânico de 6 a 7 metros de comprimento, o que obviamente limita seu raio de ação.
Sustentada por um helicóptero, a câmara tem muito mais liberdade, explica Steger. “Ela pode passear sobre a cena ou ao lado dela, mesmo se o ambiente for restrito ou se o objeto a ser filmado estiver em movimento, como um barco no mar.” O aparelho de Steger e De Santi terá um rotor principal de 2,5 metros para sustentar duas câmaras num total de 20 quilos de carga. Embora previsto para ficar pronto no final do ano, já fazem fila as agências de publicidade e produtores de cinema interessados em usar o helicóptero. E filmagens não são suas únicas aplicações possíveis. De acordo com Steger, helicópteros em miniatura também são usados no Japão para pulverizar defensivos agrícolas em jardins e pequenas plantações. “Uma vantagem é que a turbulência causada pelo rotor faz com que o defensivo se espalhe por baixo das folhas, onde geralmente as pragas preferem ficar.”
Foi com um aeromodelo agrícola que o piloto privado Hildefonso Cavalheiro da Silva conseguiu tornar mais eficiente a pulverização de defensivos em seu sítio em Jundiaí, no interior de São Paulo. Em 1986, ele mesmo projetou e construiu uma espécie de teco-teco de 3 metros de envergadura, movido por um motor de moto-serra. Em estágio experimental, o avião pôde pulverizar num vôo rasante 10 quilos de defensivo sobre uma faixa de 1 000 metros de comprimento por 7,5 de largura. “Como não precisa carregar piloto a bordo, o aeromodelo torna a operação mais barata que a executada por um avião de grande porte. Também não o expõe ao risco de prejuízos à sua saúde.”
Embora inconveniente para grandes extensões, como as vastas culturas de soja ou cana, Silva acredita que o aeromodelo é perfeito para o trabalho em pequenas e médias propriedades. Os aeromodelos também estão à procura de emprego em atividade bélicas — e já parecem ter feito um bom serviço durante a Guerra da Golfo, em 1991. Pelo menos é o que sugerem as cenas que os Estados Unidos exibiram ao mundo para exaltar seus feitos de batalha. Entre elas, estava a rendição de um grupo de soldados iraquianos filmada a partir de um “zangão”. Este é o apelido que se dá a uma família de aeromodelos gigantes, com 3 ou 4 metros de envergadura, geralmente usados como espiões ou rebocadores de alvos para treinamen–to da pontaria de canhões antiaéreos.
Fabricados nos Estados Unidos, os zangões, ou “drones”, em inglês, fizeram sua prova de fogo na Guerra do Yon Kipur, em 1973, no Oriente Médio. “Eles foram usados pelo exército de Israel para espalhar filipetas de metal no ar e confundir os radares do Egito”, conta o coronel Descartes Francisco Pereira Nunes de Andrade, comandante do II Grupo de Artilharia Antiaérea, sediado em Osasco, na Grande São Paulo. Quando criança, o coronel ganhou intimidade com aeromodelos construindo modelos com varetas de madeira, revestidas de papel, cujas hélices giravam à força de elástico. Hoje, Andrade tem sob seu comando uma unidade inteira de aeromodelistas profissionais: o tenente Eduardo Mário Fasano e o sargento Artemio Bueno Rosa Júnior, pilotos, e o soldado Paulo Roberto dos Santos, mecânico. Todos artilheiros.
A equipe opera uma esquadrilha de aviões monomotores a hélice, com asa em delta, fabricados no Rio Grande do Sul. São menores e mais leves que os ancestrais drones importados e rebocam pipas de alumínio. Elas servem de alvo para canhões em terra, explica o sargento Bueno, o piloto mais antigo do grupo. “O aeromodelo deve simular os procedimentos de ataque de um avião enquanto o radar da bateria antiaérea segue o alvo puxado por um fio de 100 metros. Um computador examina a trajetória, coloca os canhões em posição e, no momento certo, dispara uma rajada de 1 100 tiros por minuto.” Só um avião invisível ao radar consegue escapar desse chuveiro de projéteis de 35 milímetros.
Os exercícios de tiro real são feitos numa praia desabitada do litoral paulista e o treinamento de vôo acontece num aterro amplo e abandonado no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, um dos poucos lugares da região com suficiente espaço e segu-rança para o vôo de modelos contro-lados pelo rádio.
Mas não se deve pensar que as funções “sérias” reduziram o sucesso dos aeromodelos como brinquedos. Prova disso é o telefone do engenheiro mecânico Celso De Santi, que aos 36 anos é um dos mais requisitados construtores de aeromodelos do país. De sua oficina saem safras limitadas de nobres modelos de competição — como os esguios torpedos voadores do piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna. Em relação a De Santi, o tricampeão está no extremo oposto da atual tendência do aeromodelismo: é um amador puro. Desde a infância, no bairro de Santana, em São Paulo, eles faziam aeromodelos juntos. Aos poucos, o kart ocupou o coração e a vida do amigo. Mas hoje os brinquedos voadores voltam a uni-los nas raras ocasiões que se vêem, na sede de uma fazenda em Tatuí, no interior paulista. Aí, Senna mandou construir um kartódromo cuja reta principal serve também de pista de pouso. Entre os últimos aparelhos que De Santi lhe destinou estão os da modalidade FAI-F3A — não por acaso uma espécie de Fórmula 1 entre as modalidades da Federação Internacional de Aeromodelismo. “Como não podia deixar de ser, Senna prefere o que há de mais veloz.”
Para saber mais:
O cinema vai à ciência
(SUPER número 5, ano 4)
O impossível so medida (SUPER número 3, ano 4)
Imagens muito especiais (SUPER número 3, ano 5)