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Em nome das Leis: o Universo explicado pela Matemática

As leis fundamentais da ciência servem para explicar o Universo. Mas não explicam se elas mesmas existiam antes de serem pensadas pelos cientistas- ou antes até de surgir tudo aquilo que elas descrevem com suas equações. Como é possível sair dessa enrascada?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 28 fev 1989, 22h00

Paul Davies

A ciência se baseia numa poderosa presunção, que diz respeito aos laços entre o mundo real e o mundo das teorias. De fato, os cientistas não conseguiriam ir a parte alguma se não acreditassem que o mundo real contém certas regularidades e que elas podem ser compreendidas, ao menos em parte, por um processo racional de pesquisa. Embora muitos modelos teóricos a respeito do mundo ou de alguns de seus aspectos sejam obviamente falhos e sujeitos a correção, os cientistas supõem que tais teorias espelham, mesmo que de forma imperfeita, alguma faceta da realidade. Assim, embora sejam inegavelmente invenções da mente humana, espera-se que as teorias científicas sirvam para captar pelo menos alguns elementos do mundo “lá fora”.

A presunção de que o mundo exterior sem traços sistemáticos ao alcance da pesquisa racional- e capazes de ser ordenados numa concepção coerente- provavelmente deve sua origem mais à teologia do que à ciência. As tradições judaicas, muçulmanas e cristãs propõem todas elas uma divindade racional que é o criador do Universo, mas do qual ele se distingue. Tal Universo, em seus mecanismos mais minuciosos, conteria a marca de um projeto racional. Essa crença estava implícita no trabalho de Isaac Newton e de seus contemporâneos ao surgir a ciência moderna no século XVII. E, embora a dimensão religiosa tenha esmaecido desde então, suas implicações para a ordem natural do mundo físico pouco mudaram.

É no âmbito da chamada Física básica que tais regularidades são mais impressionantes. As leis da Física encerram os traços sistemáticos mais generais que a natureza exibe. As leis verdadeiramente básicas, como a da gravitação (“matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado da distância”), são tidas como universais, absolutas e à margem do tempo. Ou seja, possuem certos atributos antes reservados a deus. Além disso, tais leis podem ser esculpidas na forma de enunciados ou equações matemáticas relativamente simples. A atordoante complexidade do mundo natural parece escorar-se ao nível da Física fundamental, num punhado de princípios matemáticos elegantemente singelos.

Poucos cientistas se detém para perguntar por que o mundo físico possui as regularidades que eles vivem explorando com tanto afinco.

Para explicar essa proposta, é preciso antes lembrar o que significa uma lei comum da Física- por exemplo, num jogo de beisebol, toda bola rebatida segue uma trajetória parabólica (sem considerar a resistência do ar e a curvatura da Terra).

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A lei é geral, mas não basta determinar precisamente a forma de cada trajetória. Há parábolas de vários desenhos. A lei determina o tipo de curvas, mas a curva real numa situação dada também depende das condições iniciais em que se dá o fato. Em beisebol, trata-se da posição do arremessador e do ângulo do arremesso. A partir daí, a trajetória é determinada de maneira absoluta.

Por sua própria natureza, leis se referem a classes de processos e são fixadas de uma vez por todas. Em contrapartida, condições iniciais devem ser determinadas segundo critérios adicionais; no caso do beisebol, por referencias à fisiologia e, afinal, à psicologia do arremessador. Mas quando o assunto é Cosmologia – o estudo do universo como um todo – o problema é outro. As condições iniciais que acompanharam o nascimento do Cosmo na grande explosão do Big Bang teriam de ser aceitas como dadas. Elas não podem ser explicadas a partir de processos anteriores pela boa e simples razão de que o Big Bang representa a origem do tempo: não havia processos anteriores.

A partir do momento em que as condições cósmicas iniciais são tratadas como dadas, ficam em pé de igualdade com as leis da Física. Assim, em vez de tratá0las como se estivessem fora do âmbito da ciência, pode-se imaginar certos enunciados ou formulações matemáticas simples capazes de descrever essas condições iniciais. Ou seja, em vez de desprezar as condições iniciais, porque ou seriam casuais ou arbitrárias ou determinadas por um ente sobrenatural, pode-se argumentar que deveriam ser a manifestação de um simples elegante esquema matemático. Da mesma forma como ocorre com as leis da Fisica, não se pode provar de antemão que determinado esquema é o certo; a validade de qualquer proposta deve ser julgada a partir da observação.

Hartle e Hawking propõem uma específica “lei das condições iniciais”. Eles a formularam no contexto da teoria quântica da Cosmologia; por isso se exprime em termos de uma função de onda para o Universo. Não precisamos nos preocupar com os detalhes. O ponto essencial é que qualquer lei das condições iniciais deve ter a propriedade da transcendência. Essa é outra herança da teologia. Um Deus transcendente é aquele cuja existência independe logicamente do Universo. Leis transcendentes são aquelas que têm existência independente; elas estão “lá fora”, em algum reino abstrato. Elas dependem de haver um Universo físico para sua manifestação- mas não para sua existência.

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O enigma de “onde” tais leis se localizam é desconcertante. Como os enunciados são matemáticos, a questão da localização das leis da Física se reduz ao problema de localizar o campo de Matemática. Platão acreditava que um enunciado matemático, como, por exemplo, “existe um número infinito de números primos”, é uma verdade transcendente que independe do tempo. Números primos (ou suas propriedades) não existem em parte alguma do espaço ou do tempo; ainda assim se pode dizer seguramente que existem de alguma maneira. Muitos matemáticos modernos compartilham dessa imagem platônica da Matemática. Por outro lado, há quem argumente que a Matemática não tem vida própria. Ou seja, os matemáticos não descobrem a Matemática- eles a inventam. Portanto, do ponto de vista filosófico, um enunciado como o que se refere aos números primos se equipara ao enunciado “Romeu ama Julieta”; é verdadeiro, mas só por causa de uma idéia de Shakespeare.

Poucos cientistas aceitariam supor que as leis da Física são meras invenções humanas. É claro que são formuladas por humanos, mas o que motiva o físico é a convicção de que aquelas leis refletem algum aspecto da realidade. Sem essa ligação com a realidade, a ciência vira uma charada sem sentido.

Ainda assim, a maioria dos físicos também reluta em admitir que as leis da física têm uma existência independente. Um belo exemplo desse dilema é o caso da lei de Ohm (em homenagem ao físico alemão Georg Simon Ohm, 1787-1854). Trata-se de um enunciado sobre a relação entre corrente, voltagem e resistência num circuito elétrico. A idéia de que a lei de Ohm tem uma existência transcendente, à margem do tempo, e que estava “lá fora”, esperando pacientemente ao longo dos milênios alguém construir um circuito elétrico – essa idéia é sem dúvida cômica.

E, não obstante, é também difícil acreditar que a lei de Ohm veio a surgir quando o primeiro circuito foi construído. Uma saída seria dizer que a lei de Ohm é uma lei secundária e que as leis básicas às quais ela poderia ser reduzida (como as leis da Eletrodinâmica) são, essas sim, transcendentes e independentes do tempo. Mas não é tão simples assim. Nem todos os físicos acreditam que leis como a de Ohm, que se referem às propriedades coletivas de grandes conjuntos de partículas, possam ser completamente reduzidas a leis mais fundamentais. Tome-se um exemplo extremo- as leis da Genética. Não há como imaginar que derivem apenas das leis fundamentais da Física, mesmo em principio.

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Na minha experiência, os físicos que estudam problemas fundamentais costumam aceitar a existência transcendente das leis básicas da Física. A rigor, eles são obrigados a isso. Pois lei alguma da Física pode explicar como surgiu o universo- a menos que a lei existisse desde antes. Se as leis da Física viessem a existir junto com o Universo, não poderiam explicar como o Universo veio a existir. E, por definição, uma lei das condições iniciais não pode surgir depois da origem do Universo. Os físicos muitas vezes falam das “leis corretas”, em cuja direção eles trabalham. A impressão é de que modelos muito em voga hoje em dia, como a teoria das supercordas (SUPERINTERESSANTE n.º 9, ano 2), são vistos como passos na longa estrada rumo à identificação correta de um conjunto de leis já existentes.
Assim, a pesquisa cientifica se destinaria a proporcionar uma seqüência de aproximações cada vez melhores da “verdade”, ou seja, das leis “reais” do Universo. Supõe-se que essas leis apenas esperam ser descobertas- e que não sejam mera invenção humana destinada a ajudar a organizar os dados da experiência. Nessa visão do mundo, há uma curiosa inversão. A Física clássica buscava a realidade no estado do Universo a cada momento. Na Física moderna, a realidade se fundamenta em leis e construções teóricas: o estado atual do Universo não é levado em conta.

Todo o entendimento dos fenômenos físicos se baseia na separação entre leis à margem do tempo, de um lado, e estados que mudam, de outro. Será que isso se justifica? Será que as leis têm de existir como que alheias ao que se passa no Universo? Enquanto se achar que sim, a descrição matemática dos fenômenos físicos permanecerá muito limitada. O problema piora quando se leva em conta a existência de leis emergentes – aquelas que se tornam relevantes em alguma época da história do Universo, quando emergem os sistemas aos quais se referem. É o caso de todas as leis biológicas. Elas só fazem sentido quando o mundo físico deu origem a estados específicos, aqueles que contêm organismos vivos. Não é possível separar a natureza de tais leis da natureza dos sistemas aos quais se referem.

Suspeito que a maioria dos físicos dirá serem “verdadeiras” apenas aquelas leis cuja existência se dá à margem do tempo- sendo as outras rebaixadas a condição de leis secundárias ou derivadas.

Mas isso não resolve a difícil questão da procedência dessas leis eternas. Muitos físicos já fizeram observações sobre a eficiência da Matemática em descrever o mundo físico. Por que sempre parece possível exprimir as leis fundamentais do Universo em simples e elegantes enunciados matemáticos? Será que há alguma razão lógica pela qual o Universo deve ser construído dessa maneira? Alguns cientistas chamaram a atenção para o fato de que a existência de estruturas complexas em geral e de organismos conscientes em particular depende muito delicadamente da precisa forma matemática das leis da Física.

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Se o mundo teve de ser do jeito que é, nossa existência é inevitável – está escrito nas leis da Física. Mas, e se as leis pudessem ter sido diferentes? Uma possibilidade de respostas é o principio antrópico, segundo o qual existe uma infinidade de realidades paralelas, cada qual com suas próprias variantes das leis da Física. Apenas num minúsculo subconjunto desses Universos simultâneos haveria circunstâncias adequadas ao surgimento da vida.

Só nesses mundos tão especiais surgiriam observadores a comentar quão notavelmente arranjado seu mundo parece ser. Ou pode haver um único Universo: um nível mais profundo de realidade abaixo das leis, talvez uma espécie de lei das leis, um princípio da seleção capaz de ter dado origem a leis especialmente talhadas a produzir a vida e a consciência. Se a seleção ocorreu por acidente ou por desígnio é assunto de convicção pessoal: não vejo como a ciência possa um dia responder a essa suprema questão.


“Leis da Física não são meras invenções do cérebro humano. Mas nem por isso elas existiram à margem daquilo que pretendem explicar, como uma espécie de deus criador de tudo que há”

“Se o mundo teve de ser do jeito que é, a existência de vida é inevitável. Mas podem-se imaginar leis diferentes. Ou uma infinidade de universos paralelos, cada qual com regras próprias”

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