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Fábrica de foguetes

Sem as naves que o levaram até o espaço, o homem não saberia tanto sobre o Universo e a própria Terra. Construir foguetes para voar além da atmosfera, sob duras condições, requer eficiência e precisão.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 30 jun 1991, 22h00

Fátima Cardoso e GiselaHeymann

Ao saltar do Módulo Lunar Apolo e colocar os pés na Lua , o astronauta americano Neil Armstrong virou celebridade mundial. Ao vivo, pela televisão, 520 milhões de pessoas—então 15% da população do planeta—testemunharam na noite de 20 de julho de 1969 aquele histórico “pequeno passo para um homem, gigantesco salto para a humanidade”. Ao voltar para a Terra, o Módulo de Comando Apolo despencou sobre o Oceano Pacífico, completando a missão com sucesso. Hoje, as viagens dos ônibus espaciais tripulados, que não mais despencam do céu mas aterrissam comportadamente em pistas, como aviões, já não prendem telespectadores boquiabertos à frente do aparelho. Ir ao espaço se tornou uma viagem sem mistérios. 

Desde que os foguetes começaram a subir mais alto além da atmosfera, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, muito mais se soube sobre o espaço, os planetas e a própria Terra. Satélites em órbita, levados por foguetes lançadores, ajudam a navegação, o estudo do clima e a previsão do tempo, e transmitem sinais de comunicação. Foguetes de sondagem carregam instrumentos para realizar pesquisas científicas como a obtenção de dados sobre o Sol ou a radiação espacial. O espaço permeado por campos gravitacionais, radiação eletromagnética, raios cósmicos e campos magnéticos de distribuição desconhecida só pôde ser estudado com maior confiabilidade depois que os foguetes voaram acima da atmosfera terrestre, que tudo distorce.

Embora hoje seja comum subir ao espaço, construir um veículo para voar além da atmosfera não é tão simples quanto fabricar um aviso, embora alguns princípios sejam semelhantes. Sujeitos a duras condições, inexistentes na Terra, como o vácuo ou as extremas variações de temperatura, os foguetes e ônibus espaciais são projetados, construídos e testados em função das condições espaciais. Lá em cima, eles nem sequer se comportam como objetos terrestres. “No espaço, os foguetes obedecem às leis que regem os corpos celestes”, conta o engenheiro aeronáutico Jayme Boscov, chefe do projeto do Veículo Lançador de Satélites brasileiro, em construção no Centro Técnico Aeroespacial.

Da aprovação do projeto ao lançamento, a construção de um foguete pode durar oito anos. Esse é o tempo previsto para que fique pronto o primeiro dos nove da série Ariane 5, a ser lançado em 1995 pela Agência Espacial Européia. Uma fábrica de foguetes utiliza as mesmas ferramentas de base que uma de aviões, e não envolve muitos processos automatizados, sendo a maior parte do trabalho feita com instrumentos manuais. “A diferença é que existe muito menos margem de segurança na construção de um foguete do que na de um avião”, compara Patrick Eymar, chefe de estudos da Direção de Programas de Transporte Espacial francesa. A nave espacial funciona sempre no limite, como um carro de Fórmula 1 em relação a um carro comum—é mais eficiente, mas tem mais chance de falhar.Leveza e resistência são condições básicas em naves nascidas para atravessar os 160 quilômetros de atmosfera. chegar ao vácuo e ainda entrar em órbita, o que só conseguem quando atingem a velocidade de 27 000 quilômetros por hora. 

Até na hora do lançamento, os ônibus espaciais precisam ter força suficiente para agüentar as fortes vibrações provocadas pelos foguetes lançadores em plena propulsão. Um foguete como o Ariane, da Agência Espacial Européia, é feito em 98% de ligas de alumínio, mesmo material empregado nos ônibus espaciais.Não é o que de mais leve existe em disponibilidade nessa indústria—a fibra de carbono é mais leve e mais resistente. O problema é o custo pois a fibra de carbono é tão cara, que seria economicamente inviável construir um foguete inteiro com esse material, que só é empregado em lugares especiais, como o nariz e as partes mais altas do foguete. Além disso, materiais compostos não-metálicos não resistem tão bem a trabalhos pesados.

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No foguete de sondagem brasileiro Sonda IV, a estrutura que aloja o motor e o propelente é feita em aço de alta resistência, porque precisa agüentar as enormes pressões e temperaturas causadas pela queima do combustível. Já no VLS, o quarto estágio, aquele que carrega o satélite até o momento da entrada em órbita, é feito de kevlar e resina epóxi, materiais muito leves, mas que sofrem mais deformações do que os metálicos. Há risco de descolamentos e fissuras no bloco de propelente (combustível sólido, uma mistura à base de resina, perclorato de amônio e pó de alumínio), causando assim a explosão do propulsor. Mesmo mais frágil, vale a pena utilizá-lo ali, porque cada quilo a menos no último estágio do foguete significa 1 quilo a mais de carga útil que ele pode levar. É por essa razão que os foguetes e ônibus espaciais nunca chegam lá em cima do mesmo jeito que saíram: os estágios mais pesados, com mais combustível e motores poderosos, são desconectados do ônibus ou do estágio que leva a carga útil assim que cumprem seu papel de empurrá-los acima da atmosfera.

Em pontos críticos das naves. onde o calor é muito forte, as ligas de alumínio não dão conta do recado. É quando entram em cena as cerâmicas, capazes de resistir a temperaturas muito maiores. Nos foguetes Ariane, a cerâmica é empregada especialmente nos cilindros externos do fundo do motor do foguete principal. No lançamento, os gases expelidos na queima do combustível (hidrogênio e oxigênio líquidos) pelo motor estão a temperaturas muito elevadas, em torno de 3 000°C. Para evitar que esses gases subam e atinjam a parte posterior da nave, um escudo com cerâmica é instalado para protegê-la.

O calor da queima também deve ser mantido apenas dentro do compartimento do motor, para não se espalhar pelo resto da estrutura da nave. Por isso o compartimento é revestido de materiais resistentes e isolantes. Nos foguetes brasileiros, tecidos de amianto silício e carbono impregnados com resinas fenólicas (originárias do fenol, um derivado de petróleo), fazem esse serviço. Apesar de resistentes, os tecidos são consumidos aos poucos quando submetidos a altas temperaturas, e devem portanto ser projetados numa espessura que dure até acabar a queima. Porém, no bocal de exaustão não pode acontecer esse consumo de material, pois o foguete sobe justamente em reação à força com que os gases são expelidos pelo bocal. Alterando-se as características do bocal, a propulsão fica comprometida. Na parte mais estreita do bocal, denominada garganta da tubeira, são usados então grafites especiais de alta densidade, e carbono-carbono, materiais que resistem mais tempo à ação do calor.

Além da temperatura interna, as naves espaciais têm que enfrentar também alguns, problemas quentes do lado de fora. E o coquetel explosivo que acontece quando se misturam atmosfera e velocidade. Conforme os foguetes aceleram, o choque com as moléculas que formam o ar é cada vez mais violento e produz mais calor. Para foguetes como os lançadores, que sobem largando os estágios mais pesados pelo caminho— apenas entre 2 e 5% da massa total do foguete no momento da decolagem entram em órbita—e atingem a velocidade máxima já muito acima da atmosfera, o problema não é tão grave. Complicada mesmo é a vida dos ônibus espaciais, que atravessam a atmosfera na ida e na volta.

Num ônibus espacial como o Discovery, só entra em órbita a nave propriamente dita. Os outros três componentes na hora do lançamento—um gigantesco tanque de combustível e dois foguetes lançadores—são deixados para trás. Os lançadores participam apenas dos dois minutos iniciais do vôo. Depois são separados do tanque externo, a uma altitude de 45 quilômetros, e caem no mar, em pontos predeterminados, para poderem ser recuperados. O tanque, carregado de hidrogênio e oxigênio líquidos, acompanha a nave até poucos segundos antes de sua entrada na órbita, quando se separa e volta à atmosfera. O impacto com o ar e o calor provocado pelo atrito destroem o tanque, cujos escombros se espalham por uma área até 18 500 quilômetros do local de lançamento.

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O problema maior das naves com a resistência do ar ocorre na faixa entre 10 e 30 quilômetros de altitude. Abaixo disso, embora a densidade do ar seja grande, a velocidade ainda é baixa. Acima, em altíssima velocidade, a densidade do ar é mínima. Na zona crítica, são grandes tanto a velocidade quanto a densidade. O ônibus Hermès, projeto da Agência Espacial Européia com o primeiro vôo orbital previsto para 1998, deverá reentrar na atmosfera a uma velocidade de 20 Mach (vinte vezes a velocidade do som, ou cerca de 25 000 quilômetros por hora).

O impacto provocará temperaturas de até 2 000°C no bico e nas extremidades das asas, as partes mais expostas à resistência do ar. Para que esses pedaços da nave não derretam, o Hermès, a ser construído essencialmente em alumínio, será protegido por carbono-carbono inoxidável. O resto do ônibus leva uma cobertura de “mantas” de fibra de quartzo na parte superior e carbono-silício na parte inferior. Os ônibus espaciais americanos mais novos, como o Endeavour, já não são mais revestidos com cerâmicas, mas são cobertos com carbono-carbono, especialmente no bico. Ainda que enfrentar altíssimas temperaturas seja inevitável, é sempre possível diminuir a resistência do ar dando aos veículos formas aerodinâmicas, como num avião.”O ônibus espacial é basicamente um avião atracado a um foguete”, compara o engenheiro da NASA Karl Kristoíferson. Difere em concepção o desenho da nave, feito para que ela deslize no espaço sem precisar de nenhum motor poderoso, ao contrário do avião, projetado para ter força. 

Os testes aerodinâmicos das naves espaciais realizados no ONERA (sigla em francês de Agência Nacional de Estudos e Pesquisas Aeroespaciais) são exatamente iguais aos efetuados em aviões, com a diferença de que, nos túneis de vento, a velocidade é muito maior do que a empregada em testes de maquetes de aviões.Uma das formas mais comuns de testar a aerodinâmica é por analogia hidráulica. “A baixas velocidades, o comportamento da água é idêntico ao do ar”, explica o assessor de comunicações do ONERA, Serge Baume. Uma maquete exatamente igual à nave é colocada dentro de um túnel vertical, no anal se faz passar uma massa de água. Pequenos tubos colocados em locais específicos da nave soltam fios de líquidos coloridos. A água carrega esses líquidos e mostra o comportamento do ar em volta da carcaça da nave. Num teste com o Ariane 5 e o Hermès, as duas naves foram recobertas com uma tinta sensível ao calor. Com a velocidade do vento no túnel, a resistência do ar aquece, como numa situação real, o bico e as extremidades das asas, que escurecem. Quanto mais escura a tinta, maior a temperatura à qual está submetida a carcaça da nave.

Vencido o problema da atmosfera, tudo o que foi concebido em sua função, como a aerodinâmica perde a validade. Um satélite, por exemplo, não lembra nem em sombra o formato de um avião. A questão a ser resolvida, lá em cima, é a falta de ar—o vácuo. “É preciso, primeiro, que todos os instrumentos que foram concebidos aqui embaixo na presença de ar funcionem lá em cima da mesma forma”, afirma Patrick Eymar, da AEROSPATIALE. Qualquer bolha de ar dentro de um aparelho tenderá a explodir, por causa da menor pressão dentro de uma nave em órbita do que na superfície.Por isso são feitas as chamadas qualificações no solo, ou a demonstração ainda em Terra de que tudo funcionará fora da atmosfera. São feitas de duas formas: por cálculo, inclusive com simulações por computador, ou por testes, realizados com materiais idênticos aos que vão voar em caixas de vácuo. 

Fora da atmosfera. o calor também preocupa, embora de forma diferente de quando há presença de ar. Na Terra, um aparelho submetido a alta temperatura troca calor com a atmosfera; é o que se chama de conveção natural do ar, como se ele “levasse” o calor.Isso cria dificuldades quando o ônibus espacial fica exposto à radiação solar. O lado da nave exposto ao Sol pode atingir 200°C, enquanto o outro lado, na sombra, pode descer abaixo de zero grau. Não só os materiais precisam suportar a variação de temperatura, como às vezes é preciso provocar um esfriamento da nave, se o calor for muito forte. A radiação solar, fonte muito poderosa de vários tipos de raios, como os raios X pode também perturbar a vida dos aparelhos eletrônicos a bordo, sobretudo dos computadores. “Esses aparelhos são muitas vezes blindados antes do embarque, para que a radiação não mude, por exemplo, os bits de uma calculadora”. diz Patrick Eymar.

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A segunda geração da eletrônica embarcada nos ônibus espaciais americanos subiu a bordo há poucos anos. É um novo sistema de computação, o AP101S, da IBM, que pesa a metade dos anteriores, é muito mais fácil de operar e processa em velocidade três vezes maior. São cinco computadores a bordo, quatro para o controle de vôo e um para tarefas domésticas. Todas as decisões tomadas pelos astronautas são calculadas pelos quatro computadores. Em seguida, comparam o resultado para certificar que todos chegaram ao mesmo resultado. Caso um deles apresente uma conclusão diferente, os outros não perdoam o erro: não só rejeitam sua decisão, como também o expulsam do processo de julgamento. Quando isso acontece, o computador que antes cuidava das tarefas domésticas é intimado a participar do controle de vôo.

Antes que qualquer nave seja lançada ao espaço, é feita uma série de testes para controle de qualidade, uma preocupação maior desde que a Challenger explodiu segundos depois do lançamento, em 1986. No projeto do Ariane 5, só o motor do primeiro estágio deverá passar por 500 testes antes de ser acoplado à nave, totalizando 90 000 segundos de funcionamento, quando em vôo só trabalhará por 600 segundos. A maioria dos testes, porém, é realizada por computadores, que permitem a visualização das forças de pressão e temperatura atuantes sobre as naves. Nos Estados Unidos, sob orientação da NASA, a Martin Marietta, fabricante do tanque externo dos ônibus espaciais, desenvolveu um protótipo de sistema de inspeção de solda computadorizado, em que cada milímetro do tanque é testado com raios X sob controle de um computador. Tudo em nome da máxima eficiência e da segurança. “Não pode existir mais de uma chance em 10 milhões de que uma máquina dessas mate um homem”, diz Patrick Eymar.

 

 

 

 

 

Para saber mais:

A conquista européia

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(SUPER número 2, ano 4)

 

A casa do espaço

(SUPER número 12, ano 6)

 

 

 

 

Corrida contra o destino

Na corrida espacial, além do desafio tecnológico, o Brasil precisa vencer os concorrentes pouco interessados nas suas conquistas. Em mais de vinte anos de pesquisa e desenvolvimento desses veículos, o país domina a área de foguetes de sondagem, que levam como carga útil equipamentos para experiências científicas. O passo seguinte, a construção do Veículo Lançador de Satélites, está parado em dois obstáculos: as restrições impostas pelos países desenvolvidos, que se recusam a cooperações tecnológicas, e as dificuldades econômicas do próprio país. O projeto do VLS começou há seis anos, mas ninguém tem idéia de quando estará concluído.Desde a Guerra do Golfo, uma situação que já vinha complicada piorou ainda mais. Receosos de que a tecnologia de fabricação de foguetes possa ser usada para fins militares, países como os Estados Unidos chegaram ao boicote contra o VLS brasileiro. 

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Lá, por um contrato, vinha recebendo tratamento térmico o aço de alta resistência usado no revestimento dos propulsores. Seguindo orientação governamental, as empresas que prestavam serviços como esse simplesmente não vão mais cumprir os contratos.Mesmo com todos os reveses, o projeto VLS continua sendo desenvolvido no Instituto de Aeronáutica e Espaço do Centro Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos, São Paulo. “Não podemos jogar fora vinte anos de trabalho com pesquisas espaciais”, defende o chefe do projeto, engenheiro aeronáutico Jayme Boscov. Continuar na corrida espacial não é capricho de país terceiro- mundista. A tecnologia de ponta que ela exige melhora a qualidade das indústrias que trabalham para ela. Só no VLS, há 130 indústrias nacionais envolvidas. “O programa espacial desenvolve tecnologia de ponta, recursos humanos de alto nível e tem inclusive aplicação industrial” afirma Boscov.

 

 

 

 

 

 

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