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O controle dos mares pelos satélites

Pelo espaço, os oceanógrafos descobrem os segredos dos mares. As imagens e dados fornecidos por satélites mostram a temperatura da água, os lugares onde a vida marinha é mais rica e até como eram as praias 8 000 anos atrás.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h38 - Publicado em 31 jul 1992, 22h00

Paulo D’Amaro

Animado pelo sol de verão, o turista se prepara para um mergulho no mar de Copacabana. A ilusão de um gostoso banho em águas mornas se desfaz com as ondas ainda pela canela; nos primeiros passos dentro da água, um arrepio gelado lhe sobe pelo corpo. Os banhistas locais, habituados ao truque térmico pregado pela natureza, já não se assustam. Eles sabem que, conforme esquenta o tempo no Rio de Janeiro, esfriam as águas que banham a cidade. Esses veteranos da praia, no entanto, não são os únicos nem os mais bem informados sobre o fenômeno. A mais de 300 quilômetros dali, em terra firme, um grupo de pessoas é capaz de explicá-lo e até dizer a temperatura exata da água. São os oceanógrafos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos (SP), que se valem de espiões estrategicamente colocados no espaço para desvendar os segredos escondidos nos oceanos.

Com auxílio de satélites, o INPE está indo fundo nos mares brasileiros. Os bisbilhoteiros espaciais ajudam os oceanógrafos a encontrar os lugares da costa onde a vida marinha é mais intensa, a descobrir como se comportam as correntes marinhas e mesmo mapear as praias de 8 000 anos atrás, hoje submersas a 30 quilômetros da costa. “A vantagem é que, do céu, pode-se ter uma visão abrangente do mar, e não de alguns poucos locais isolados, como ocorre normalmente”, diz Carlos Leandro da Silva Júnior, um jovem carioca que há dez anos abandonou a prancha de surfe em favor de outra relação com o mar. Hoje, ele é um dos oceanógrafos da equipe do INPE, e já se tornou um aventureiro oceânico com quatro expedições à Antártida na bagagem.

Os satélites ajudaram os oceanógrafos a descobrir, por exemplo, que o esfriamento da água nos dias em que sopra o vento quente de nordeste — fenômeno conhecido como ressurgência — não é exclusividade dos cariocas. A mais de 800 quilômetros de altitude, o satélite norte-americano NOAA-9 fez imagens de todo o litoral fluminense, mostrando que a faixa de água fria se estende para o norte. Revelou também que o ponto mais gelado fica, não por coincidência, nas águas de Cabo Frio.

Essas imagens foram conseguidas com o sensor de radiometria do satélite, capaz de mostrar a temperatura da superfície do mar de acordo com a intensidade das radiações infravermelhas emitidas pela água. Quanto mais quente a água, maior a emissão de raios recebida pelo satélite, que registra isso na imagem em tons vermelhos Os locais onde a água é fria, como no Rio de Janeiro, aparecem em amarelo.

A ressurgência oceânica não é apenas uma curiosidade de banhistas friorentos. “Os locais onde ela ocorre são privilegiados pela natureza, com aumento do fitoplâncton e conseqüentemente dos peixes, que deles se alimentam”, diz o ex-surfista Carlos Leandro. Quando os ventos quentes de nordeste sopram na costa do Rio de Janeiro, empurram a camada superficial de água para alto mar, movimento que é reforçado pela rotação da Terra. Para repor a camada quente deslocada, uma grande massa de água fria, proveniente da região polar, sobe do fundo do mar. Essa água é riquíssima em nutrientes para o plâncton de origem vegetal.

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O fenômeno da ressurgência desperta ainda mais interesse porque só ocorre em alguns poucos lugares do mundo, geralmente nas costas a oeste dos continentes, o que torna o Rio de Janeiro uma exceção. Mais excepcional ainda é a falta de aproveitamento da riqueza biológica gerada pela substituição da água de superfície. A frota pesqueira brasileira, pequena e obsoleta, não aprendeu ainda a usar as descobertas feitas pelos oceanógrafos, e praticamente não existe previsão sobre onde estarão os grandes cardumes antes de os barcos ligarem seus motores rumo ao mar. Por isso, a produção anual, que poderia beirar 2 milhões de toneladas, de acordo com as estimativas da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe), não chega a 900 000 toneladas. No Peru, onde também existe ressurgência, a quantidade anual de pescado era sete vezes maior em 1988 (antes da epidemia de cólera), ultrapassando 6,5 milhões de toneladas. Isso para não falar dos pescadores do Primeiro Mundo, como os do Japão — os primeiros do ranking mundial, com 11,8 bilhões de toneladas anuais. Lá, é bastante comum os oceanógrafos passarem as dicas fornecidas pelos satélites aos comandantes dos pesqueiros, que então fazem a festa nas águas geladas.

Outro espião ajudou a descobrir as áreas do oceano privilegiadas pelo acúmulo do fitoplâncton: o satélite Nimbus-7. Seu sensor óptico analisou a coloração das águas marinhas, revelando a quantidade de clorofila, nelas contida. “Quanto mais clorofila, maior a concentração de fitoplâncton, os pequeníssimos vegetais que são a base da cadeia alimentar no oceano”, diz Alexandre Cabral, outro jovem cientista do INPE. Ao lado do experiente oceanógrafo Márcio Vianna — conhecido mundialmente por suas pesquisas em mares tropicais — ele passa os dias debruçado sobre os computadores analisando as imagens dos satélites.A presença da clorofila indica boas áreas pesqueiras, o que pode favorecer economicamente várias regiões. “Ao mesmo tempo, a varredura de cores revela focos de poluição da água”, diz Cabral. Nas áreas poluídas, o fitoplâncton — cuja fotossíntese é comprovadamente o mais importante processo renovador do oxigênio na atmosfera — é escasso. Isso fez do Nimbus7 uma arma a favor dos ecologistas na década de 1980. Nas imagens recebidas pelo INPE, a foz do rio Amazonas aparece como área privilegiada em clorofila, enquanto o Mar do Norte, próximo à Escócia, denuncia altos índices de poluentes. A partir de 1993, os protetores dos mares terão ainda mais apoio em sua guerra contra a poluição com o lançamento de um satélite mais moderno, o Sea Wifs, que vai substituir o Nimbus-7.

Os detetives orbitais não se contentam em investigar se a água está fria ou quente e se abriga muitoplâncton. Outro satélite, o Landsat-5, a mais de 700 quilômetros de altitude, permitiu a Vianna e Cabral descobrirem que as praias do Rio Grande do Norte já foram 25 quilômetros mais longas, e vêm sendo engolidas pelo mar ao longo do tempo. Mas isso não significa uma catástrofe iminente. “A linha de praia sob a água é de 8 000 anos atrás. Hoje o nível do mar está estabilizado”, tranqüiliza Márcio Vianna. Para descobrir as antigas feições do litoral brasileiro, os cientistas recebem no computador imagens perfeitas do fundo do mar, mostrando dunas e desfiladeiros. Apesar da nitidez, essas imagens não são fotografias, mas apenas um mapeamento do assoalho marinho. “Com a dificuldade do radar de penetrar na água, criou-se outro modo de perceber o relevo, pela análise das deformações causadas pelo fundo na superfície do mar”, explica Alexandre Cabral.

Além de fornecer imagens, os satélites também funcionam como um canal de transmissão de dados coletados por bóias em alto-mar. Essa é uma das formas que os pesquisadores do INPE vão utilizar para estudar um fenômeno intrigante: os vórtices frios, redemoinhos de água gelada carregados por uma corrente quente. Sabe-se que eles nascem na altura do Rio de Janeiro, quando a Corrente do Brasil esbarra nas águas frias da ressurgência, engolindo porções dela. O vórtice recém-nascido é levado tal qual uma canoa na correnteza de um rio. Pelas imagens térmicas dos satélites NOAA-11 e 12 é fácil identificá-lo, na forma de uma bolha amarela, em meio a uma faixa alaranjada. “Sabemos pouco ainda sobre os vórtices, mas é possível que sejam ótimos locais para a pesca do atum”, afirma Carlos Leandro. A suposição se justifica porque esses peixes adoram passear na água fria — não pela temperatura em si, mas pelos nutrientes ali presentes. Conforme essa água é cercada por uma corrente quente, dando origem a um vórtice, sua temperatura aumenta de fora para dentro. O vórtice frio, que nasce com dezenas de quilômetros de diâmetro, vai ficando cada vez menor. É provável que os cardumes prefiram se espremer, em vez de abandonar a rica água gelada, o que tornaria os vórtices frios verdadeiros currais aquáticos.

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Para desvendar esse mistério biológico e outros físicos e meteorológicos, o INPE se uniu ao Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP) em um projeto que vai usar tanto os satélites que fornecem imagens como os que retransmitem dados colhidos por uma dezena de bóias oceânicas, lançadas pelo navio oceanográfico Professor W. Besnard. O Coroas — estudo de Circulação Oceânica na Região Oeste do Atlantico Sul — vai pesquisar, a partir de 1993, a temperatura, velocidade e direção das águas e dos ventos na costa brasileira, sobretudo entre São Paulo e Rio Grande do Sul. “A intenção é ter uma visão geral da física oceânica na Bacia do Brasil e trocar esses dados com pesquisadores de outros países, para descobrir seus efeitos no clima”, diz Yoshimine Ikeda, professor do IOUSP, que desde 1970 estuda e ensina a física dos mares. A dimensão do projeto pode ser medida pelo seu orçamento: 400 000 dólares, financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Em janeiro de 1993, o Professor W. Besnard vai partir de Santos, no litoral paulista, para uma viagem até o canal de Vema — um vale submarino a mais de 1 200 quilômetros da costa —, largando todo tipo de engenhos oceanográficos pelo caminho. Entre os mais sofisticados estão as bóias que se comunicam com os satélites. Em fase de acabamento no INPE, elas são de dois tipos: fixas e derivadoras. As fixas vão ajudar a compreender como se comportam as águas e os ventos na região mais próxima da costa, enquanto as derivadoras, que vagam livremente pelo mar, vão revelar a trajetória e o ciclo de vida dos vórtices frios e da própria Corrente do Brasil. Ambas enviam ao espaço os dados colhidos por censores de temperatura, direção e velocidade da água e dos ventos. Os satélites, então, repassam as informações para a estação receptora de Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo. Assim, os oceanógrafos podem receber diariamente informações que só conseguiriam se tivessem uma frota de navios.

Apesar de tecnologicamente complexas, as bóias são velhas conhecidas dos técnicos do INPE, que já construíram várias outras desde o início da década de 1980, quando o Brasil passou a explorar cientificamente o continente antártico. Nessa época, eles foram encarregados de medir as correntes marinhas nas imediações da Ilha Rei George, onde estava sendo instalada a primeira base brasileira na Antártida. Não houve maiores problemas para projetar o casco e os censores de temperatura, direção e velocidade de corrente.O grande desafio foi montar os circuitos eletrônicos responsáveis pelo armazenamento dos dados e transmissão para os satélites. “Na época, a importação de componentes eletrônicos era proibida, o que nos deu muitas dores de cabeça”, lembra Carlos Leandro. Por isso, técnicos e oceanógrafos partiram da estaca zero. De importado, apenas uma parte essencial do projeto: o professor Merrit Raymond Stevenson, um especialista em imagens de satélite, que há doze anos trocou suas pesquisas no Instituto Oceanográfico de San Diego, nos Estados Unidos, pela oportunidade de estudar os mares tropicais e antárticos. Desde então ele coordena a árdua tarefa de construir as bóias do INPE, lançá-las e recolher seus dados.

Veterano de seis expedições antárticas no navio oceanográfico da Marinha, o Barão de Teffé, Stevenson criou, durante uma das viagens, um hábito pitoresco entre os oceanógrafos: batizar as bóias com nomes de esposas ou namoradas. “O motivo foi a saudade de casa e o frio”, afirma. “Nos mares gelados, virou costume derramar licor sobre as bóias antes de lançá-las, e depois beber o resto da garrafa para esquentar.” Outra razão que explica esse carinho é o árduo trabalho que se tem para construí-las. “Elas levam meses para ser feitas, e chegam a custar 15 000 dólares. Por isso mesmo, têm que funcionar”, justifica Stevenson.Vilma, Audrey e Fátima foram as bóias pioneiras, passeando por semanas nos mares antárticos. As duas primeiras voltam às águas geladas em janeiro de 1993, quando o Barão de Teffé parte de novo para o extremo sul do Atlântico, com os cientistas do INPE a bordo. Fátima, por sua vez, sumiu no gelo durante a última expedição. Sua bateria terminou antes do esperado, interrompendo o contato com o satélite NOAA-11, que perdeu seu rastro.

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Os dados obtidas no Coroas serão integrados aos que estão sendo coletados em todos os outros oceanos do planeta para o World Ocean Circulation Experiment (WOCE), um estudo em escala mundial que está alvoroçando os oceanógrafos. Esse programa quer descobrir como funciona a máquina oceânica global e como ela interage com a atmosfera. Dois lugares são vitais para o estudo. Um deles é a Bacia do Brasil, que tem papel fundamental nas trocas de calor entre a água e o ar por conduzir cinco correntes importantes — duas quentes e três frias —, coisa que não ocorre em nenhum outro lugar do planeta. O outro é o Mar de Weddell, na Antártida, para onde os cientistas do INPE partem em janeiro de 1993, a bordo do Barão de Teffé e do navio oceanográfico alemão Polar Stern — o mais moderno do mundo. É nesse mar que se origina a mais importante massa de água gelada do planeta — a Água de Fundo Antártica.

Os resultados do WOCE devem ir muito além do interesse puramente científico dos oceanógrafos. Para Yoshimine Ikeda, do IOUSP, eles vão ajudar as pessoas comuns, como os banhistas friorentos de Copacabana, a entender melhor como os mares influem na vida deles, mesmo longe da areia. “Atualmente, a Meteorologia prevê o tempo para os próximos três ou quatro dias. Quando desvendarmos a dinâmica dos oceanos em escala global, será possível prever secas, enchentes e outras variações com meses de antecedência”, afirma o animado Ikeda.

Para saber mais:

A vida na pista de alta velocidade

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(SUPER número 2, ano 8)

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