O Kindle colorido – e a nova geração de e-readers
Quase 20 anos após chegar ao mercado, o leitor da Amazon finalmente ganhou uma versão com tela colorida. Entenda como ela funciona, veja como se comporta na prática – e conheça outros modelos com tecnologias igualmente interessantes.

S
“Se você olhar para trás, a paisagem está repleta de cadáveres de leitores de e-books”, disse Jeff Bezos em 19 de novembro de 2007. A Amazon não tinha nem de longe o tamanho de hoje (havia registrado lucro de US$ 78 milhões no segundo trimestre daquele ano, 233 vezes menos do que no mesmo período de 2025). E o leitor eletrônico Kindle, que Bezos apresentou ao mundo naquele dia, não parecia um sucesso certo.
“Você precisa ter muita coragem para lançar um e-reader em 2007″, escreveu David Pogue, colunista de tecnologia do New York Times, no primeiro teste do aparelho – em que se perguntou se a Amazon estava “totalmente doida”. Várias startups e a gigante Sony já haviam criado leitores de e-books; todos fracassaram no mercado.
Mas o Kindle (“acender”, em inglês) era diferente. Vinha integrado com a loja da Amazon, que já dominava a venda online de livros, e tinha sua própria conexão à internet – a Whispernet, uma rede 3G gratuita e ilimitada. Para comprar um livro no Kindle, bastava pegar o aparelho e dar poucos cliques. Por outro lado, ele era caro (US$ 399, o equivalente a US$ 620 em valores de hoje), pesado (292 g, quase o dobro do modelo básico atual) e a tecnologia de papel eletrônico, usada na tela, ainda era primitiva. Hoje é até meio difícil de imaginar, mas o Kindle nasceu como uma aposta arriscada.
Deu certo. A Amazon não revela os números, mas o mercado estima que tenha vendido até 90 milhões de unidades do leitor ao longo das últimas duas décadas.
E, agora, ele tem uma versão com tela colorida: o Kindle Colorsoft, que chegou ao Brasil em julho. A tela e-ink colorida é um feito tecnológico, a coroação de um esforço ainda mais antigo do que o Kindle – ele começa em 1997, quando a internet estava na Idade Média (a novidade do ano foram modems com o dobro da velocidade: permitiam navegar a 56 kbps, ou 0,05 megabit por segundo).
Eletrodos e bolinhas
As telas LCD e OLED precisam ser alimentadas com eletricidade dezenas de vezes por segundo, o que gasta bateria. E ambas são emissivas, ou seja, geram a própria luz. Isso pode ser uma vantagem em ambientes pouco iluminados, mas cansa os olhos após algumas horas de uso.
A tela de papel eletrônico (tecnologia também chamada de e-ink) é diferente. Usa microcápsulas preenchidas com tinta, e só gasta energia quando precisa movimentar essas partículas – ou seja, quando precisa acender ou apagar cada um dos pontos que formam a imagem. No resto do tempo, as partículas de pigmento ficam paradas, e a tela não consome nenhuma eletricidade.
É por isso que os leitores e-ink mantêm a tela “acesa” o tempo todo, inclusive quando não estão sendo usados (o Kindle, por exemplo, exibe imagens decorativas), e mesmo assim suas baterias duram muito. Além disso, a tela de papel eletrônico é refletiva, ou seja, ela só rebate a luz do ambiente (desde 2019, todos os Kindles têm também uma luz embutida, com LEDs que você pode acionar para ler no escuro).
Essas duas características, estabilidade e refletividade, dão às telas e-ink uma aparência parecida com a do papel. A tecnologia foi criada em 1996 pelos americanos JD Albert e Barret Comiskey, que tinham 21 anos e eram estudantes do MIT. No ano seguinte os dois (junto com seu professor, Joseph Jacobson) fundaram a E Ink Corporation para explorar a tecnologia.
O papel eletrônico também tinha uma limitação, era preto e branco. Isso não é problema para ler livros, mas compromete outros tipos de conteúdo. No começo dos anos 2000, várias empresas tentaram desenvolver telas e-ink em cores. O primeiro leitor com tela de papel eletrônico colorido foi o Flepia, lançado pela gigante japonesa Fujitsu em 2009. Custava US$ 1.000 (o equivalente a US$ 1.500 em valores atuais), e não fez sucesso.
Em 2010 a E Ink lançou a sua tela colorida, a Triton. Ela chegou a ser usada em alguns leitores de marcas pequenas, como o JetBook Color e o Pocket Book Color, mas não foi muito além. Talvez você esteja pensando: se o papel eletrônico colorido existe há 15 anos, por que não conquistou o mercado – e só agora o Kindle ganhou uma versão com tela em cores?
“A gente queria uma tela que fosse fidedigna às imagens coloridas no papel, e que entregasse a performance rápida que o Kindle já entrega”, diz Danielle Casotti, líder de Dispositivos Amazon para o Brasil. As primeiras telas e-ink coloridas eram ruinzinhas, com pouco brilho. Isso porque, para que fossem capazes de produzir cores, a Triton e similares usavam um filtro colorido.
Trata-se de uma placa com milhares de quadradinhos pintados de vermelho, verde ou azul (as três cores primárias de luz, cuja combinação gera todas as demais). Ela absorve parte da luz e isso reduz a refletividade da tela, que fica mais escura. Além disso, o filtro da tela Triton era impresso numa placa de vidro que ficava sobre as microcápsulas – e esse vidro também “comia” parte da luz, piorando ainda mais a imagem.
Esse problema foi amenizado em dezembro de 2019, quando a E Ink apresentou uma nova tela colorida, a Kaleido. Ela não tem a placa de vidro: seu filtro colorido é impresso numa fina película de plástico, que fica diretamente apoiada sobre as microcápsulas de pigmento. Com isso, a tela Kaleido absorve menos luz – e é mais brilhante. O Kindle Colorsoft usa a terceira geração dessa tela, com algumas modificações feitas pela Amazon (que aumentam o contraste da imagem e agilizam o “virar” das páginas).

O aparelho tem duas versões: a padrão, que custa R$ 1.499 e oferece 16 GB de capacidade de armazenamento (suficiente para milhares de livros), e a Signature Edition, que custa R$ 1.649, tem 32 GB e vem com um sensor de luz ambiente, que ajusta automaticamente, se você quiser, o brilho da tela. Fora isso, eles são idênticos. Seus preços são praticamente iguais aos cobrados nos EUA – e cerca de 50% superiores ao do Kindle Paperwhite, preto e branco.
Ao pegar o Colorsoft pela primeira vez, duas coisas saltam aos olhos. Fisicamente, o aparelho é quase idêntico ao Paperwhite; a única diferença real está na tela. Ela é um pouco mais escura e seu fundo não é perfeitamente branco, mas um cinza levemente azulado. Trata-se de um efeito colateral dos filtros coloridos.
Você consegue resolver o problema aumentando o brilho do Colorsoft: isso aciona um conjunto de 25 LEDs (12 brancos e 13 amarelos) embutidos sob as laterais da tela. Para ler revistas e outros documentos coloridos, obtive os melhores resultados com o brilho no nível máximo, 24, e o controle de cor (que dosa a luz dos LEDs amarelos) no nível 2 ou 3. Só que isso consome energia – e não é pouca.
Com os LEDs desligados (e, consequentemente, a tela mais acinzentada e escura), o Kindle Colorsoft gastou apenas 1% da bateria a cada hora que passei lendo um livro. Ou seja, ele suportaria 100 horas de uso antes de precisar ser recarregado. Já com o brilho no máximo, o consumo disparou para 10% por hora – reduzindo, portanto, a autonomia do Kindle para apenas 10 horas. Um meio-termo, com o brilho ajustado para a metade da escala, estendeu a autonomia para aproximadamente 90 horas.
Esses números se referem à leitura de livros. Ao ler revistas o consumo de bateria aumenta, por uma razão simples: elas quase sempre são grandes demais para a tela do Colorsoft, de 7 polegadas. Isso significa que, para lê-las, você precisa ficar dando zoom em pedaços da página (com os dedos, como se o Kindle fosse um smartphone) e ir rolando para ler o resto. Isso obriga a tela e-ink a trabalhar muito mais, e gasta mais energia. Lendo revistas, com o brilho no máximo, a bateria do Colorsoft durou aproximadamente 8h20.
As cores da tela são esmaecidas, mas razoáveis. Parece que você está lendo algo impresso em papel-jornal, não em papel de revista. O Colorsoft se revelou ótimo para histórias em quadrinhos – a imagem fica bonita, e a tela comporta uma página inteira de cada vez. Já com revistas de informação, o resultado não foi tão bom. Publicações que costumam trazer textos escritos sobre fundo colorido, como a Super (que está disponível para baixar no Kindle), às vezes têm a legibilidade prejudicada.
Mas o grande porém das revistas no Colorsoft é que, quando você amplia ou arrasta um pedaço da página (o que precisa fazer, já que ela não cabe inteira na tela), o aparelho precisa atualizar o estado das microcápsulas de pigmento. Esse processo é meio lento, leva de 1 a 2 segundos – e faz a tela piscar, perturbando um pouco a leitura.
Em suma, o Kindle Colorsoft é ótimo para ler HQs e livros, aos quais adiciona recursos úteis (exibe as capas em cores e permite grifar passagens de texto em quatro tons diferentes). Mas ele ainda não é o “santo Graal” do papel eletrônico: um leitor e-ink colorido que seja bom para todos os tipos de conteúdo.

O Paper Pro, da empresa norueguesa ReMarkable, dá um passo nessa direção. Tem tela colorida de 11,8 polegadas, grande o bastante para ler revistas com tranquilidade. Vem com uma caneta eletrônica, que permite escrever à mão e fazer anotações em PDFs (também dá para usar o aparelho como um caderno digital), e sua tela é mais sofisticada: trata-se da Gallery 3, que também foi desenvolvida pela E Ink Corporation e contém quatro tipos de pigmento [veja acima], dispensando a necessidade do filtro colorido sobre a tela. As partículas de pigmento têm pesos ligeiramente diferentes – e isso permite que a tela Gallery determine, variando a intensidade da corrente elétrica, qual dos quatro tipos será exibido em cada pixel.

O aparelho, que custa US$ 750, ainda não é vendido no Brasil. Esse também é o caso do Kindle Scribe (US$ 400), que tem 10,2″ e vem com uma caneta. Ele se parece em tudo ao ReMarkable – exceto pela tela, que é preto e branco.
Tanto o ReMarkable quanto o Scribe, bem como todas as outras versões do Kindle e qualquer outro leitor e-ink, têm em comum uma limitação: as telas de papel eletrônico são naturalmente mais lentas do que os LCDs e OLEDs, porque demoram um pouquinho para atualizar os pixels. Essa característica as torna inadequadas para navegar na internet, usar aplicativos ou ver vídeos (pois a imagem fica “pulando”).
Isso faz com que, até hoje, não exista nenhum leitor desse tipo que seja realmente universal, e sirva para consumir todos os tipos de conteúdo. Ou melhor: existe. Só que ele não tem tela de papel eletrônico. É outra coisa – mas que, na prática, se assemelha bastante a uma e-ink.
Esse aparelho é o tablet Nxtpaper 11, da marca chinesa TCL. Na caixa dele (que é vendido no Brasil por R$ 1.800, em média), vem escrito full-color electronic paper display. Na verdade, a tela Nxtpaper é uma LCD, com modificações. Só que essas alterações são bastante engenhosas; o resultado, espantoso.

Ao usar o Nxtpaper 11, realmente parece que você tem nas mãos um leitor de papel eletrônico. A tela, fosca, reflete a luz ambiente do mesmo jeito que o papel eletrônico. O branco é muito mais branco do que em qualquer tela LCD ou OLED. Parece papel de alta qualidade, como numa revista de luxo. E as cores saltam da página: são muito mais intensas do que nas telas e-ink coloridas.
O segredo está numa combinação de truques desenvolvidos pela TCL, que incluem um processo de nano-etching (a superfície da tela é microesculpida, dando a ela textura similar à do papel) e a polarização da imagem. As telas LCD e OLED comuns funcionam com polarização linear, ou seja, elas geram ondas eletromagnéticas (que os nossos olhos interpretam como luz) oscilantes numa única direção.
Só que fora das telas, na vida real, a luz ambiente se comporta de outra forma. Conforme ela bate e reflete nos objetos, suas ondas acabam oscilando em mais de uma direção, assumindo a chamada polarização aleatória.
A tela Nxtpaper trabalha com polarização circular: emite ondas que giram ao se propagarem até os seus olhos. Ou seja, imita a polarização aleatória da luz ambiente. Por isso ela se assemelha a uma superfície impressa; não a uma tela eletrônica. O efeito impressiona, tanto com livros (baixados pelo app Kindle) quanto com revistas, que se encaixam bem na tela de 11 polegadas.
A tela também é ótima para navegar na internet: a imagem muito estável, parecendo papel, torna a leitura dos sites mais agradável. Como o “coração” da Nxtpaper é um LCD, ela consegue exibir qualquer tipo de conteúdo, sem os problemas de lentidão das telas e-ink. A tecnologia Nxtpaper é um avanço notável, que merece reconhecimento; se tivesse sido inventada pela Apple ou pela Samsung, já estaria sendo celebrada como um feito revolucionário.
O tablet da TCL tem hardware modesto (chip Mediatek MT8788 e sistema Android 13, ambos já meio antigos, e apenas 4 GB de memória RAM), porém suficiente para ler e navegar sem engasgos. Ele também vem com uma caneta eletrônica, a T-Pen, que funciona bem para escrever à mão e fazer anotações em PDFs.
O Nxtpaper 11 não compete diretamente com o Kindle, pois é bem maior e mais pesado do que ele (tem 462 g, contra 219 g do leitor da Amazon). É outro tipo de dispositivo, com outra proposta. Não é um aparelho para ler livros, como o Kindle; é um tablet para quem gosta de ler.
Mas, cada um a seu modo, tanto o Colorsoft quanto o Nxtpaper 11 apontam na mesma direção. O vídeo, por meio do Instagram, do TikTok e do YouTube, parece dominar o consumo de informação pela sociedade. Mas a leitura, ajudada por uma nova geração de telas, continua viva – e melhor do que nunca.