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O prédio secreto do Google

Dentro dele, estão os dados de bilhões de pessoas – e os computadores que fazem os principais serviços da internet funcionar. E nós fomos até lá.

Por Bruno Garattoni - de Pryor Creek, Oklahoma
Atualizado em 24 set 2019, 12h45 - Publicado em 5 jul 2017, 10h28

Fica no meio do mato, e de longe parece uma fábrica. Conforme você vai chegando mais perto, começa a ver que não é bem assim. Logo na entrada, tem de passar por uma bateria de corta- pneus: estacas afiadas que saem do chão, e podem ser acionadas em frações de segundo para impedir a entrada ou saída de qualquer veículo – inclusive os mais pesados, como o ônibus em que estou. Assim que ele recebe permissão para prosseguir, um homem todo de preto embarca e começa a dar instruções ao motorista – que ele mesmo curiosamente repete, via rádio, para outra pessoa (“agora o ônibus vai virar à esquerda, andar 50 metros, está tudo indo bem”). O motorista continua guiando, e o cenário vai ficando mais insólito. Passamos por torres que soltam um vapor misterioso, tanques de óleo do tamanho de caminhões, emaranhados de canos, algo que parece ser uma estação de tratamento de esgoto.

Vejo um desenho estilizado, uma pintura que cobre toda a lateral da fábrica e forma a palavra GOOG (assim mesmo, sem as duas últimas letras). Estamos prestes a entrar no centro nervoso da internet: o maior datacenter do Google. Aqui ficam os computadores que rodam os sites e serviços da empresa – e guardam os dados de mais de 1 bilhão de pessoas. O lugar é mantido sob extremo sigilo, e nunca foi aberto à imprensa. Até agora.

Na América profunda

A imagem do Google, e das outras empresas de tecnologia, é fortemente associada ao Vale do Silício: uma região ensolarada e pacata, na costa da Califórnia, onde todo mundo anda de bicicleta, come comida orgânica e leva uma vida meio hippie. Aqui não é assim. O datacenter do Google fica perto de Pryor Creek, um vilarejo de 10 mil habitantes no Estado de Oklahoma. Para chegar a ele, primeiro você tem de pegar um avião até Tulsa, cidade de 400 mil habitantes que até os anos 1970 se autoproclamava “capital mundial do petróleo”. O óleo minguou, a cidade sofreu uma forte recessão, e hoje é meio deserta e bem perigosa – chegou a ser considerada o lugar mais violento dos EUA. Também foi palco de um dos momentos mais terríveis da história do país: as revoltas raciais de 1921, em que 10 mil negros tiveram suas casas incendiadas e o centro da cidade foi bombardeado pela Força Aérea.

É aqui que um ônibus alugado pelo Google vem me buscar para ir até o datacenter. Comigo estão cinco jornalistas (dois dos EUA e os demais vindos de México, Japão e Coreia do Sul), mais uns dez empregados do Google, todos bem animados – visitar o datacenter é um privilégio concedido a pouquíssimos funcionários da empresa. No caminho, vários sinais deixam claro onde estamos: passamos por lojas como a pitoresca Casa do Queijo Amish (os amish são cristãos radicais que vivem em comunidades fechadas) e um outdoor com promoção de armas – o destaque são os revólveres fabricados pela brasileira Taurus, “a partir de US$ 220”. Uma hora de estrada depois, chegamos ao datacenter. 

Recebo um panfleto com instruções de segurança. A principal fala sobre os “abrigos antitempestade”, 20 minibunkers espalhados pelo complexo. Se uma sirene começar a tocar, é porque está vindo um tornado, e devemos correr até a toca mais próxima. Hoje a meteorologia diz que não há risco disso. Mas está bem frio e ventando bastante. “Isso não é vento”, desdenha a gerente de operações Brenda Standrige. Cabelo loiro bem curto, óculos escuros e jeito durão, Brenda é uma espécie de capataz do datacenter – e está nitidamente desconfortável com a presença de estranhos. Pergunto sobre os abrigos, e a resposta é lacônica: “Eles são usados, sim”.

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O vento pode ser uma ameaça. Mas o datacenter de Pryor Creek (o maior dos 13 que o Google tem espalhados pelo mundo) foi construído aqui, justamente, por causa dele. Segundo o Global Wind Atlas, um estudo do governo dinamarquês que mapeia os ventos do mundo todo, Oklahoma é o Estado onde mais venta nos EUA. E, a partir deste ano, toda a energia que o Google consome, no mundo, virá de fontes renováveis (80% eólica e 20% solar). A empresa assinou contratos com 20 fornecedores, e vai pagar US$ 3,5 bilhões anuais por 2,6 gigawatts/hora de eletricidade – o que fará dela a maior consumidora de energia limpa do mundo (seguida pela Amazon, com 1,2 gWh, e pelo governo dos EUA, com 0,6).

“Isso é bom para o nosso negócio”, diz Joe Kava, vice-presidente de datacenters do Google. A empresa acredita que, investindo em energia limpa, ela acabará ficando mais barata que a convencional (gerada, nos EUA, por queima de carvão e gás natural). Os contratos do Google também vão financiar a construção de usinas que ainda não existem, para aumentar a produção. Isso terá uma consequência ambiental – e ela não é pequena. 

Em 2015, a internet já era responsável por 2% de todas as emissões de CO2 da humanidade, segundo um estudo da GeSI (Iniciativa Global de Sustentabilidade Eletrônica, associação que reúne as 40 maiores empresas de internet). É a mesma quantidade de CO2 emitida por todo o tráfego aéreo mundial – e, com o crescimento da internet, só tende a crescer. Se todos os datacenters fossem alimentados por energia limpa, seria possível reverter isso.

Corredor de servidores do Google no datacenter, em Pryor Creek (Tainá Ceccato | Montagem sobre Divulgação Google/Divulgação)

Eles gastam muita eletricidade porque processam muitos dados, e isso requer muitos computadores. “Nós temos oito serviços com mais de 1 bilhão de usuários cada um”, diz Joe, um senhor atarracado e bonachão que lembra os professores de educação física das comédias teen americanas. Os tais oito serviços são busca, Maps, Gmail, YouTube, Android, Chrome, Play Store e Google Cloud. Todos estão rodando aqui, neste exato momento, nos servidores deste datacenter – que Joe se recusa a me dizer quantos são.

“As empresas não querem que ninguém saiba qual é a quantidade [de máquinas] por uma questão de concorrência”, explica Pietro Delai, gerente de pesquisa da consultoria IDC. Você não fica sabendo, mas as gigantes da internet travam uma verdadeira corrida armamentista para criar datacenters mais e mais potentes, porque quem vencer esse jogo dominará a internet. Antes do Google, as ferramentas de busca só enxergavam uma pequena fração da rede.  Antes do Gmail, os serviços de email tinham pouquíssimo espaço para mensagens. Antes do YouTube, era difícil hospedar vídeos na internet. O Google se tornou o que é porque criou datacenters incrivelmente poderosos, numa escala jamais vista, e por isso conseguiu resolver esses problemas. Mas sempre há o risco de perder a liderança – ainda mais agora que a internet está dando um novo salto, com aplicativos de inteligência artificial e realidade aumentada, que vão exigir muito mais processamento.

Sabe aqueles clipes curtinhos, do Instagram, em que as pessoas aplicam máscaras virtuais sobre o rosto (e viraram mania nos últimos meses)? Eles podem parecer triviais, mas usam realidade aumentada – e seriam tecnicamente inviáveis um ou dois anos atrás. Só existem porque o Facebook (dono do Insta) turbinou seus datacenters.

Estamos na “área social” do complexo do Google, que fica na entrada e imita a sede da empresa na Califórnia, com paredes coloridas, cantina grátis, área de jogos e outras amenidades. Mas Brenda reaparece e diz, com expressão grave, que está na hora: vamos entrar no que ela chama de “Corredor Seguro”, e teremos acesso às entranhas do datacenter. 

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No corredor seguro – e além

A porta de aço parece ter 4 metros de altura e dá acesso a um corredor de aspecto austero e militar: lembra o Pentágono, como ele aparece em filmes. As paredes de concreto branco são cortadas por outras portas de aço, um pouco mais baixas que a primeira. Continuamos andando e chegamos a uma máquina estranha. É uma cabine de plástico, parece os scanners corporais dos aeroportos americanos (os polêmicos backscatter, que obtêm imagens do corpo nu). Somos barrados por um segurança, mas Joe o tranquiliza e vamos em frente – sem passar pela máquina. Entramos na primeira sala. 

Braço robótico que coleta e destrói discos rígidos com defeito (Tainá Ceccato | Montagem sobre Divulgação Google/Divulgação)

Ela é coberta por estantes, lotadas de discos rígidos tirados de servidores. Eles estão com defeito, não prestam mais – mas ainda contêm dados dos usuários do Google. Para evitar que alguém os roube, a empresa criou um método robótico para se livrar deles. Os discos vão andando por uma esteira e são capturados por um braço mecânico, que joga os HDs dentro de uma máquina estraçalhadora de metal. “Nós temos centenas de milhares de HDs no datacenter. Talvez mais”, diz Joe, dando uma pista do tamanho do complexo. Viro para o lado e vejo, por uma janela de vidro grosso, os servidores propriamente ditos. São pequenos, parecem caixas de sapatos, e ficam empilhados em blocos do tamanho de geladeiras, com cem servidores cada um. O Google não entra em detalhes sobre as máquinas, limitando-se a dizer que elas usam peças “iguais ao computador que você tem em casa”.

Nem todos. Sabe-se que uma parte dos servidores utiliza o processador TPU (Tensor Flow Processing Unit), que o Google desenvolveu para rodar softwares de inteligência artificial – e supostamente é até 30 vezes mais rápido, nessa tarefa, do que os chips comuns.

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Área de backup, com cartuchos de dados manuseados por um pequeno robô (centro) (Tainá Ceccato | Montagem sobre Divulgação Google/Divulgação)

Em alguns momentos, os engenheiros são tão evasivos que chega a ser engraçado. “Eu não lembro”, responde Chris Malone, o projetista dos servidores, quando pergunto certos detalhes técnicos. Tímido, de fala baixinha e vesgo de um olho, Malone é mestre em engenharia pelo MIT e está no Google há dez anos. Ele dá risada e eu também, pois ambos sabemos que está escondendo coisas (já havia dito, pouco antes, que não sabia exatamente o que “poderia me contar”).

Um zumbido forte e misterioso encobre as vozes de todos. Entramos na sala elétrica, onde ficam os transformadores que alimentam o datacenter. São blocos de 2 metros de altura, espalhados às dezenas por um recinto imenso, cujas paredes nem dá para ver. O zumbido é gerado pela vibração dos circuitos dos transformadores – eles também ressecam o ar, que fica com cheiro de queimado.

Chegamos a dois motores gigantescos, do tamanho de uma turbina de avião cada. São geradores a diesel, e estão lá para imprevistos: se por algum motivo faltar eletricidade, o Google tem como se virar sozinho durante vários dias. “Nós só tivemos uma emergência”, conta o engenheiro Mike Edwards, que trabalha no datacenter desde que abriu, em 2011 (antes de ir para o Google, passou 12 anos na IBM). Ele me leva até o que talvez seja a parte mais impressionante do prédio inteiro: o sistema de refrigeração. Lembra quando, no começo do texto, passamos pelo que parecia ser uma estação de tratamento de esgoto? Pois bem, era mesmo.

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Detalhe do sistema de refrigeração do datacenter, que usa esgoto coletado de cidades vizinhas (Tainá Ceccato | Montagem sobre Divulgação Google/Divulgação)

O Google coleta o esgoto de Pryor Creek e cidades vizinhas, trata e usa para refrigerar seus computadores, bombeando o líquido por uma rede de canos. Por isso, diz ele, seu datacenter consome 50% menos energia que os dos concorrentes. A água entra a 21 graus, esquenta, e vai parar em torres de evaporação do lado de fora: as “chaminés” que tínhamos visto ao chegar ao local. São 12 torres bem altas, que ficam lado a lado e fazem barulho de cachoeira, só que com um tom metálico. Ao subir numa das torres, e chegar perto da saída de vapor, a sensação é de estar numa sauna – mesmo a céu aberto, com a temperatura ambiente a zero grau. A empresa não diz quanta água o datacenter consome, limitando-se a dizer que é “o mínimo possível”, e que o fluxo é controlado por inteligência artificial.

A visita está terminando, e peço a Mike para tirar uma foto do mural (aquele com a inscrição GOOG) do lado de fora. Ele deixa, mas faz questão de me acompanhar. Dou a volta no prédio e vejo uma fileira de galpões, igualmente gigantes e cheios de canos, espalhados à distância no horizonte. (O Google não informa o tamanho do complexo, mas mais tarde, consultando fotos de satélite, calculo que ele tem cerca de 1,4 milhão de metros quadrados – o equivalente ao parque do Ibirapuera.). Pego o panfleto de segurança que recebi, com um pequeno mapa, e pergunto a Mike em qual prédio estamos. Sua reação é intrigante.   

“Deixa eu ver quantos eles falam para você que tem aqui”, responde, pegando o papel da minha mão.

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Mike o examina muito devagar, por quase um minuto inteiro, e só então responde:

“Ah. Certo”, diz, abrindo um sorriso enigmático.

Quanto mais o Google revela, mais esconde também. 

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