Quem são (e quanto ganham) os brasileiros que abastecem as Inteligências Artificiais
Trabalhando por menos de dois dólares a hora, homens – e principalmente mulheres – gastam horas para abastecer bancos de dados que serão usados para treinar IAs
Você já ouviu falar em “microtrabalho”? São trabalhos online feitos em plataformas digitais, que envolvem tarefas geralmente de baixa complexidade e repetitivas. Os microtrabalhos se tornaram comuns desde 2010, e no Brasil já existem 54 plataformas que empregam “microtrabalhadores”, uma função informal, sem proteção trabalhista.
Os serviços são diversos: categorizar imagens, transcrever áudios e vídeos; digitalizar documentos, responder pesquisas, testar apps e até navegar por sites para gerar tráfego e impulsionar mídias sociais – com seguidores, curtidas, comentários e inscritos falsos no Instagram, Facebook, Youtube, TikTok e Twitter.
Quem mais precisa dos microtrabalhos são as Inteligências Artificiais (IA). Para ensinar a uma IA o que é uma maçã, alguém teve que ver uma foto da fruta e identificá-la. Essa correlação imagem-palavra fica salva em um banco de dados. A IA “aprende” por meio de diversas correlações até que seja capaz de distinguir uma maçã por conta própria. É como uma criança que precisa primeiro saber o que é um giz de cera antes de poder identificar outros giz de cera.
Os trabalhadores que fazem essas correlações (entre outros microtrabalhos) costumam ser pessoas mal remuneradas, desempregadas, que dependem do dinheiro – particularmente mulheres.
É isso que mostra um relatório feito por pesquisadores do Laboratório de Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação da Universidade Estadual de Minas Gerais, e do DipLab, um centro do Instituto Politécnico de Paris.
“Ainda parece pouco conhecido no Brasil o fato de que a cadeia produtiva da Inteligência Artificial depende de uma multidão de trabalhadores precários, que trabalham em suas casas executando microtrabalhos sub-remunerados, que humanos fazem de forma mais eficiente que máquinas”, afirmam os pesquisadores em seu estudo.
Segundo relatório publicado em 2018 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), baseado em pesquisa com 3.500 pessoas de 75 países, a média de idade dos trabalhadores do mercado de microtarefas é 33,2 anos. Em países em desenvolvimento, um em cada cinco trabalhadores eram mulheres. 37% possuíam ensino superior completo e 20% concluíram uma pós-graduação. O valor/hora médio recebido era de US$ 4,43. Os trabalhadores dedicavam em média 18,6 horas semanais à atividades remuneradas nas plataformas. 32% tinham as plataformas como fonte primária de renda e 36% trabalhavam nas plataformas 7 dias por semana.
Os pesquisadores do novo estudo buscaram quais seriam os dados da realidade brasileira. Eles fizeram um questionário com 477 trabalhadores de microempregos para acessar o quadro estatístico dos interessados por esses trabalhos no país. Com os dados, eles descobriram que predominam pessoas com Ensino Superior (40%) ou Ensino Médio (40%) completos. Os trabalhadores têm entre 18 e 35 anos (70%) e 3 em cada 5 deles são mulheres. 28% são de São Paulo, 12% do Rio de Janeiro e 9% de Minas Gerais.
A proposta de trabalhar de casa e fazer o próprio horário pode parecer boa, mas a remuneração, nem tanto. A média de rendimentos mensais dos trabalhadores com a plataforma é de R$582,71. Em média, os microtrabalhadores dedicam 15 horas e 30 minutos por semana, com 31,9% deles trabalhando todos os sete dias. O valor médio por hora é US$1,80.
Somando o microcrabalho a suas outras fontes de renda, o rendimento médio desses trabalhadores fica em R$1866 mensais. Contudo, um em cada três questionados não tem outra fonte de renda, e 66% deles dependem de uma quantia de dinheiro mínima da plataforma para arcar com as contas do mês.
Trabalhos desgastantes
Os pesquisadores entrevistaram outras 15 pessoas envolvidas em microtrabalhos, e ouviram relatos das piores atividades que já pegaram nas plataformas. As mais mencionadas eram moderação de redes sociais – basicamente, a função de olhar posts denunciados por algum motivo e avaliar seu conteúdo. Muitas vezes, os trabalhadores se deparavam com conteúdos violentos e pornográficos, ao custo da própria saúde mental para nutrir as IAs moderadoras das plataformas.
“Eu trabalhava em um projeto do Facebook: tinha que verificar o anúncio pra avaliar se tinha sangue, violência, abuso, se continha arma. Muitas vezes, peguei anúncio pesado”, afirma Pedro, de 23 anos, aos pesquisadores. “Você precisa ter um psicológico forte pra trabalhar nisso. Precisa de um apoio psicológico, um amparo. Uma mulher que conheci teve que fazer tratamento. Ninguém consegue se acostumar com isso.”
Essa não é a única queixa dos microtrabalhadores. Eles também criticam a instabilidade e incerteza das tarefas, que são imprevisíveis e nem sempre claras; a falta de transparência e insegurança, já que muitos são repentinamente desligados de projetos. 67,6% dos trabalhadores que tiveram microtarefas rejeitadas (e, portanto, que não foram remuneradas) alegam não terem tido nenhum retorno ou justificativa.
Segundo os pesquisadores, a dificuldade em se manter no mercado de trabalho seria um dos motivos para a procura pelos microtrabalhos. Com 39 milhões de pessoas na informalidade, as microtarefas podem ser uma alternativa de renda viável.
Apesar da promessa de automatização, as Inteligências Artificiais dependem desse trabalho humano para treinar e aperfeiçoar seus algoritmos, e a necessidade de exemplos para modelos de linguagem é um dos principais impulsionadores da demanda por microtarefas no Brasil. “Relembremos que GPT de ChatGPT significa Generative Pre-trained Transformer, portanto se refere a algoritmos que geram conteúdos após serem “treinados” por humanos; e os trabalhadores do mercado de microtarefas desempenham um papel fundamental nesse desenvolvimento”, escrevem em seu relatório.
Esses trabalhadores são geralmente esquecidos quando se discute IAs. Enquanto as palmas são direcionadas às proezas artificiais, os esforços manuais que possibilitaram esse sucesso recebem centavos.