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Doutores da agonia: por dentro da ciência nazista

Eles utilizaram humanos como cobaias de pesquisas macabras. Mas há quem diga que os relatórios guardam informações valiosas para a humanidade.

Por Rodrigo Rezende, da Alemanha
Atualizado em 18 jan 2019, 18h06 - Publicado em 12 dez 2006, 22h00

“Camarada, por favor, peça ao oficial que acabe conosco com uma bala”, suplicou o soldado russo. Depois de 3 horas dentro de um tanque de água gelada, ele já não suportava mais a sensação de congelamento no corpo. “Não espere compaixão daquele cão fascista”, respondeu o colega que dividia o tanque com ele.

Quando o cientista responsável pelo experimento descobriu o significado das palavras de suas cobaias, retirou-se para o escritório. Voltou com um revólver na mão. Não para atender ao pedido do soldado, mas para ameaçar seus assistentes na experiência. “Não se intrometam. Nem se aproximem deles!” Passaram-se mais duas horas de agonia antes que o alívio da morte chegasse para os russos. Assim como eles, pelo menos outros 300 prisioneiros dos nazistas foram usados em experimentos destinados a entender os efeitos do frio no organismo – a hipotermia. A maioria não teve a sorte de um final rápido. Ao chegarem ao limite entre a vida e a morte, eram reanimados e expostos novamente a temperaturas baixas.

As descrições acima são apenas um exemplo de como alguns cientistas alemães se adaptaram ao ideário nazista. Eticamente, a ciência produzida na Alemanha entre as décadas de 1930 e 1940 foi repugnante. Os experimentos causaram dor, humilhação e mortes terríveis às pessoas confinadas em campos de concentração – fossem elas judias, ciganas, homossexuais ou qualquer tipo de inimigo do regime.

Acontece que os responsáveis por essas “pesquisas” podiam ser sádicos, mas não eram leigos. Muitos foram formados nas escolas mais tradicionais do planeta – antes da chegada dos nazistas ao poder, a Alemanha era um dos líderes mundiais em inovação científica. Metódicos como só pesquisadores alemães podem ser, eles sistematizaram as experiências, coletaram dados, chegaram a conclusões. E geraram informações que, além de inéditas na época, nunca mais foram reproduzidas em testes sérios – afinal de contas, e ainda bem, não é todo dia que aparece alguém propondo jogar ácido na pele de um ser humano para entender como nosso corpo reage à substância.

As pesquisas sobre hipotermia, por exemplo, além de matar centenas de prisioneiros do campo de Dachau, produziram dados que alguns cientistas gostariam de usar em pesquisas atuais. Robert Pozos, diretor do Laboratório de Hipotermia da Universidade de Minnesota, nos EUA, é um deles. Ele estuda como o corpo responde ao frio para descobrir a melhor maneira de reanimar pessoas que cheguem quase congeladas aos hospitais. Mas seu trabalho enfrenta um problema: muitas de suas pesquisas não podem ser concluídas, pois os voluntários podem morrer quando sua temperatura cai abaixo de 36 ºC. A única fonte conhecida de dados sobre pessoas nessas condições são os experimentos nazistas. É ético utilizá-los para salvar vidas? Pozos acha que sim. Mas o respeitado periódico médico New England Journal of Medicine se recusou a publicar a pesquisa.

Para enfrentar essa delicada questão, é necessário encarar o legado científico do nazismo, desconhecido até pouco tempo atrás. Estudos recentes, porém, lançaram nova luz em direção ao que sabemos sobre a ciência no período. Afinal, houve experimentos de qualidade no nazismo? O que acontece com a ciência sob um regime tão desumano?

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(Gjon Mili/Getty Images)

Ciência e nazismo

Planície de Ypres, fronteira entre Bélgica e França, 17 horas de 22 de abril de 1915, 1ª Guerra Mundial. Entrincheirados, soldados do Exército francês observam, atônitos, um inimigo desconhecido se aproximar. Alguns percebem que é impossível combatê-lo e fogem. Outros ficam parados, sem saber como lutar contra o oponente mais letal que já enfrentaram: uma nuvem verde-amarelada de 1,5 metro de altura.

Dez minutos antes, uma tropa especial havia tomado a dianteira do Exército alemão. O Pionierkommando 36 era um batalhão de cientistas com uniforme militar e máscaras protetoras, liderados por um ganhador do Prêmio Nobel de Química, o alemão Fritz Haber. Ao sinal de Haber, foram abertos 730 cilindros, com 100 quilos cada um, de gás cloro. Assim nasceu a nuvem que castigou os franceses. O saldo: 10 mil mortos e 5 mil feridos.

Os cientistas envolvidos no projeto científico-militar alemão eram de primeira linha. Fritz Haber, por exemplo, foi responsável por uma descoberta que não só permitiu à Alemanha prolongar a 1ª Guerra, mas hoje nos permite produzir alimentos para 6 bilhões de pessoas: a técnica de fixação da amônia a partir do nitrogênio do ar serviu tanto à criação de explosivos quanto ao desenvolvimento de fertilizantes baratos.

Otto Hahn, outro ganhador do Nobel que liderou um ataque com gás, foi um dos descobridores do processo de fissão nuclear, usado em bombas atômicas e em usinas nucleares. “O Exército alemão se convenceu de que a ciência desenvolveria armas superiores, que compensariam as restrições à produção de armamentos impostas pelo Tratado de Versalhes”, diz Helmut Maier, pesquisador do Instituto Max Planck. “Após a guerra, a elite científica levou o país à liderança nos ramos de balística, química, aviação e construção de foguetes.”

Veterano da 1ª Guerra, Adolf Hitler conhecia o poder da ciência militar – ele foi internado com cegueira temporária após um ataque com gás. E sabia que, se chegasse ao poder, faria da ciência um dos pilares da Alemanha. Mas seu interesse trazia um problema. Ele admirava a ciência, mas não entendia nada do assunto.

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“Ele seguia seu instinto, seu feeling”, diz o historiador alemão Joachim Fest, um dos mais importantes biógrafos do líder nazista. Na cúpula nazista, a situação não era melhor. Heinrich Himmler, segundo homem na hierarquia, mandava cientistas investigar a relação entre os canhotos e a homossexualidade ou pesquisar a genealogia dos cavalos dos antigos reis nórdicos. “Himmler era a verdadeira encarnação da pseudociência”, diz Michael Kater, autor de Doctors Under Hitler (“Doutores de Hitler”, sem tradução em português).

Hitler não via nenhum problema nessas idéias. Na verdade, ele se considerava um cientista de vanguarda – era um entusiasmado adepto da eugenia, doutrina “científica” levada à sério na época, que visava melhorar a qualidade genética de uma população incentivando a reprodução de seus indivíduos mais aptos (e impedindo a reprodução dos indesejáveis).

Em Mein Kampf (“Minha Luta”), de 1925, ele ajudou a disseminar uma metáfora muito útil para o progresso da doutrina: “O povo alemão é um só corpo, mas sua integridade está ameaçada. Para manter a saúde do povo, é preciso curar o corpo infestado de parasitas”. Os parasitas eram os judeus. O que há de científico nisso? Nada. Mas, às vésperas da ascensão de Hitler, já estava difícil discernir o que era ou não ciência.

“Desenvolveu-se uma relação simbiótica entre ideologia e ciência. A ciência, nessa época, começou a funcionar como legitimação das idéias racistas do nazismo”, diz Helmut Maier. E era essa mistura insólita que os cientistas teriam de enfrentar, se quisessem permanecer na Alemanha após 10 de janeiro de 1933, dia em que Hitler tomou o poder.

(ullstein bild/Getty Images)

Hitler domina a ciência

Em 6 de maio de 1933, um dos mais importantes cientistas da Alemanha bateu à porta do escritório de Hitler. O führer ouviu com atenção sua tentativa de abrandar a perseguição a pesquisadores judeus: “Há diversos tipos de judeus, alguns valiosos e outros inúteis para a humanidade”, argumentou o pesquisador. Hitler respondeu: “Se a ciência não pode passar sem judeus, teremos de nos haver sem a ciência!” E começou a berrar, falando cada vez mais rápido e tremendo de raiva. O visitante se calou e despediu-se, desapontado. Naquele dia, Max Planck, pai da física quântica e presidente do Kaiser Wilhelm Institute (hoje Instituto Max Planck), não conseguiu o que queria: evitar a demissão do amigo judeu Fritz Haber, aquele que comandara a primeira tropa de gás da história.

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Planck foi um dos cientistas que optaram por continuar na Alemanha, mesmo não concordando com os ideais do novo regime. O físico Max von Laue, que costumava sair de casa com um embrulho debaixo de cada braço para não ter de fazer a saudação nazista, tomou a mesma decisão. Acreditando em dias melhores, Planck e Laue encorajavam colegas a ficar no país. Mas nem todos compartilhavam da mesma opinião.

“A conduta dos intelectuais alemães como grupo não foi melhor que a de uma ralé”, afirmou o judeu Albert Einstein a respeito da reação de seus pares ao nazismo. Ele foi criticado por Laue quando decidiu ir para os EUA em 10 de março de 1933 – um mês antes de uma lei expulsar todos os descendentes de judeus do funcionalismo público, fazendo cerca de 1 000 cientistas de elite perder o emprego. Passariam-se mais 30 dias até que universitários alemães saíssem às ruas para aplaudir a queima de mais de 10 mil livros em praças públicas.

Se alguns cientistas foram culpados por silenciar, outros não hesitaram em aderir ao ideário racista. Um ramo em especial aceitou com bons olhos a limpeza dos “parasitas” judeus: a medicina. Em 1933, 44,8% dos médicos alemães eram filiados ao partido nazista. Era a maior proporção de representação entre todas as profissões. Além de anti-semita, a classe médica alemã era, em geral, favorável às políticas da higiene racial.

Mas nem todos tiveram estômago para embarcar no projeto do führer. Max Planck, por exemplo, não suportou o clima no país e pediu demissão em 1937. Já não estava na Alemanha quando seu filho Erwin foi executado por envolver-se num plano para matar Hitler. Seu amigo Fritz Haber teve um enfarto e morreu em 1934. Muitos de seus parentes seriam mortos pelo gás que ajudou a desenvolver. Na iminência das batalhas da 2ª Guerra Mundial, em 1939, apenas os cientistas considerados “mais fortes” pelos nazistas ficaram no país. Se você quer continuar lendo esta reportagem, também precisará ser forte.

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Laboratórios do inferno

“Escutem, colegas, já que vocês vão matar toda essa gente, pelo menos arranquem o cérebro deles”, disse, em 1939, o professor de medicina Julius Hallervorden aos encarregados da eutanásia de doentes mentais, um programa que exterminava quem recebesse dos médicos o diagnóstico de lebensunwertes leben, ou “vida indigna de viver”. Foi assim que Hallervorden formou uma coleção que, em 1944, contava com 697 cérebros. Entre seus favoritos, estava o de uma menina cuja mãe fora envenenada acidentalmente com gás enquanto estava esperando o bebê..

August Hirt, médico da Universidade de Estrasburgo (então na Alemanha, hoje na França), não queria só cérebros, mas cabeças inteiras. E tinham de ser cabeças de judeus. Logo percebeu que, se conseguia cabeças sem problemas, por que não pedir corpos inteiros? Encomendou 115 prisioneiros a Auschwitz, que foram prontamente executados. Em agosto, recebeu mais 80 cadáveres para estudos sobre a superioridade anatômica do povo ariano.

Mas médicos como Hirt e Hallervorden ainda não tinham as mesmas possibilidades que Sigmund Rascher, responsável pelo campo de concentração de Dachau: usar cobaias humanas vivas. “Sou, sem dúvida, o único que conhece por completo a fisiologia humana, porque faço experiências em homens e não em ratos”, dizia. Rascher era admirado e protegido por Himmler, entusiasta das pesquisas a ponto de assistir aos terríveis experimentos em câmaras de baixa pressão. Das cerca de 200 cobaias que passaram pelas câmaras até maio de 1942, 80 morreram durante os testes. Algumas tiveram o cérebro dissecado enquanto estavam vivas para que o médico observasse as bolhas de ar que se formavam nos vasos sanguíneos. Em seguida, Rascher começou a pesquisar a hipotermia. Era ele o responsável pelo experimento do início desta reportagem.

Rascher foi um dos pioneiros entre os 350 médicos que oficialmente se envolveram em experiências nos campos de concentração. Se considerarmos o número de pacientes assassinados, ele não foi páreo para o mais sanguinário de todos: Joseph Mengele, cujas experiências foram responsáveis pelo extermínio de 400 mil pessoas em Auschwitz.

Mengele injetou tinta azul em olhos de crianças, uniu as veias de gêmeos, jogou pessoas em caldeirões de água fervente, amputou membros de prisioneiros, dissecou anões vivos e coletou milhares de órgãos em seu laboratório. Depois da guerra, fugiu e viveu escondido no Brasil até morrer, em 1979. Oficialmente, comprou sua fuga com anéis de casamento e dentes de ouro roubados dos cadáveres.

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Se você chegou até aqui, deve estar se perguntando: “O que se passava na cabeça desses médicos?” O psiquiatra Robert Lifton tem uma teoria a respeito: um processo psicológico que chamou de doubling. “O doubling é a dissociação do eu, que leva à formação de uma espécie de segundo eu”, diz.

Professor de Harvard e autor de The Nazi Doctors (“Os Doutores Nazistas”, sem tradução em português), Lifton percebeu as características do doubling em muitos dos “doutores” que entrevistou para seu livro. Na rua, eram éticos e respeitadores. Nos campos de concentração, monstros. “Eles falavam do que fizeram sem envolvimento emocional, como se estivessem narrando os atos de outra pessoa”, diz.

O horror nazista transformava a mente dos médicos. Mas e as vítimas? Na tentativa de entender o trauma causado pelas experiências, a SUPER procurou em São Paulo a judia polonesa Bluma Reicher, de 83 anos. Ao ouvir um pedido para descrever as cirurgias a sangue-frio pelas quais passou em Auschwitz há mais de 60 anos, a única resposta que Bluma deu foram lágrimas.

Karl Hoellenrainer, um cigano, respondeu de outra forma. Ao encontrar no tribunal de Nuremberg o homem que o obrigou a tomar água salgada por 4 semanas e depois arrancou pedaços do seu fígado, sacou uma adaga e partiu para cima de seu algoz. Queria matá-lo ali mesmo. Não conseguiu e foi sentenciado no mesmo dia, 27 de junho de 1947, a 3 meses de prisão.

A exposição de tantos atos desumanos deixa a impressão de que, em pleno século 20, o nazismo levou a ciência de volta à idade das trevas. Até recentemente, era essa a visão que a maioria dos historiadores tinha. Novos estudos, porém, revelam a realidade muito mais complexa que se escondia sob um manto de atrocidades e absurdos científicos.

(Hulton Archive/Getty Images)

Outra visão

Naquela cidade, o fumo estava banido de todas as áreas públicas, incluindo escritórios e salas de espera. Trens e automóveis também eram territórios proibidos para fumantes. Apesar da semelhança com as metrópoles atuais, a cidade em questão é a Berlim da década de 1940. As medidas antitabagistas foram implementadas pelos nazistas, os únicos que tinham acesso ao conhecimento necessário para desenvolvê-las.

“Os nazistas foram os primeiros a fazer estudos estatísticos rigorosos que provaram a relação entre o hábito de fumar e o câncer de pulmão”, afirma Robert Proctor, historiador da ciência e professor da Universidade Stanford, nos EUA, e autor de The Nazi War on Cancer (“A Guerra Nazista contra o Câncer”, sem tradução em português). É uma ironia que a origem de uma das maiores descobertas do século 20 esteja relacionada a um efeito da doutrina de higiene racial. A esse efeito Proctor deu o nome de paranóia homeopática. “Os nazistas tinham pavor de agentes minúsculos que poderiam corromper o corpo alemão. Eram obcecados por ar limpo, comida natural e um estilo de vida saudável.” Essa obsessão empurrou os alemães em direção aos mais avançados estudos anticâncer.

Proctor não é uma unanimidade no mundo científico. Pesquisadores experientes contestam os resultados de seus estudos. “Proctor afirma que os nazistas fizeram boa ciência, ainda que com propósitos malignos. Isso é uma bobagem. Tenho estatísticas em meus livros que mostram que os nazistas não chegaram nem perto de derrotar o câncer. Na época em que as publiquei, Proctor ainda era um bebezinho recém-saído das fraldas”, diz o historiador Michael Kater.

Lançar um novo olhar sobre a ciência alemã no período nazista foi exatamente o objetivo do mais ambicioso projeto histórico já feito pela Sociedade Max Planck, que controla 80 dos mais importantes institutos de pesquisa da Alemanha. O resultado do estudo, que consumiu mais de 6 anos de trabalho, foi divulgado em 2005 e chacoalhou tudo que sabíamos a respeito da ciência nazista. A tese de que os laboratórios eram controlados por monstros impiedosos e desumanos, que não produziram nenhum conhecimento valioso para a humanidade, caiu por terra.

A nova pesquisa revelou que muitos dos então melhores cientistas da Alemanha viram o regime nazista não como uma ameaça, mas como uma oportunidade de adquirir status pessoal e financiamento para seus estudos. Para isso, eles procuraram fazer ciência sobre os temas que mais interessavam aos chefões nazistas e se engajaram em experimentos antiéticos que seguiam as regras dos métodos científicos mais avançados da época. O estudo da Sociedade Max Planck provou que as fronteiras que separaram os cientistas comuns dos torturadores nos campos de concentração não são tão claras e ressuscitou um dilema que permanece em aberto na comunidade científica internacional: o que fazer com os resultados obtidos nas experiências?

(ullstein bild Dtl/Getty Images)

Dados da discórdia

“Eu não queria ter de usar os dados nazistas. Mas não existem outras opções para a minha pesquisa. Nem nunca existirão num mundo ético”, diz o médico John Hayward, da Universidade de Victoria, no Canadá, que estuda os efeitos do frio no corpo humano. Apesar da defesa contundente de Hayward, a validade científica dos experimentos que ele usou é criticada por alguns pesquisadores.

“Os dados são péssimos. Não havia livros de controle, métodos estatísticos nem repetição de experimentos em condições similares. Eles não têm uso nenhum para a ciência”, afirma Michael Kater, uma das maiores autoridades mundiais no assunto. Robert Lifton, que entrevistou os doutores nazistas, também diz ter razões para duvidar da validade das experiências. Mesmo assim, defende sua utilização pela ciência. “Os médicos nazistas usavam como assistentes prisioneiros do campo, gente muito mais preocupada com a própria sobrevivência do que com a acuidade das pesquisas”, diz. “Mas qualquer dado que sirva para poupar sofrimento humano deve ser usado.”

Mas afinal, que dados são esses? Robert Proctor dá um exemplo: “Todos os coletes salva-vidas hoje em dia são desenhados para aquecer o pescoço justamente porque os nazistas provaram que isso aumenta as chances de sobrevivência dos náufragos em água gelada”.

Outro caso polêmico envolveu a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA). Em 1989, seus especialistas foram chamados a definir regras para a utilização do fosgênio, um gás tóxico usado na fabricação de plásticos e pesticidas. Mas não havia estudos detalhados sobre o efeito do fosgênio em humanos – os únicos dados conhecidos foram produzidos pelos nazistas. Entre utilizar essas pesquisas e arriscar a vida da população americana com uma legislação perigosa, a EPA escolheu a segunda opção.

Mas há razão para descartar os dados? Segundo um editorial da revista científica Nature, não deveríamos decidir precipitadamente. “O estudo da Sociedade Max Planck descobriu que grande parte das pesquisas mais criminosas conduzidas pelos nazistas não era pseudociência – na verdade, elas seguiam métodos científicos tradicionais e estavam na vanguarda dos estudos produzidos no período.”

Até as pesquisas do sanguinário Mengele devem ser revistas. “Agora ficou claro o que os relatos macabros que demonizaram Mengele tendiam a encobrir: seus experimentos não eram baseados só em sadismo, e sim em interesses científicos que, levando-se em consideração os conhecimentos da época, não eram totalmente implausíveis”, afirma a alemã Susanne Heim, líder do estudo da Sociedade Max Planck. É difícil buscar algo de positivo do período mais desumano da ciência (se é que este algo existe). “Não há ciência no inferno de Dante”, diz Kater. Mas talvez valha a pena superar asco – e olhar mais de perto os cadernos nazistas.

A ciência sob Hitler

Química

Não existia rival à altura da química alemã antes das guerras. O país inventou a aspirina e a novocaína (anestésico usada por dentistas) e desenvolveu fertilizantes, corantes e microscópios muito mais baratos e eficientes. O setor foi um dos que mais se envolveram com o nazismo – a ponto de o maior conglomerado farmacêutico do mundo na época (e que depois da guerra se dividiria nas empresas Bayer, Hoechst e Basf) instalar uma fábrica dentro do campo de concentração de Auschwitz.

Matemática

Sob o regime de Hitler, o raciocínio matemático abstrato foi associado aos judeus e substituído pela “verdade empírica concreta” e a “intuição nórdica”. Perguntado certa vez sobre quanto a matemática havia sofrido, o alemão David Hilbert, um dos matemáticos mais importantes do século 20, respondeu: “Sofreu? Não sofreu, não. Ela simplesmente deixou de existir”.

Biologia

Entre 1933 e 1938, o financiamento para pesquisas aumentou em 10 vezes. Biólogos trabalhavam com relativa tranqüilidade – apenas 14% deles foram perseguidos. Mas a profunda ligação dos nazistas com a genética faz o ramo ser visto com reservas até hoje na Alemanha. “Uma perseguição completamente irracional à genética ainda existe”, afirma o cientista Benno Müller-Hill.

Física

A Alemanha foi o berço das idéias mais revolucionárias da física teórica: a mecânica quântica e a relatividade. Mesmo assim, esse foi o ramo da ciência mais prejudicado pela ascensão do nazismo: 25% do total de físicos deixou o país – entre eles 6 vencedores de Prêmios Nobel.

O mapa da insensatez

Para os cientistas de Hitler, campos de concentração eram fábricas de cobaias humanas

1. Auschwitz-Birkenau (abril de 1940 a janeiro de 1945)

Número de mortos – 1,1 milhão a 1,5 milhão.

Experiências – Pesquisas com gêmeos e anões; infecção com bactérias e vírus; eletrochoque; esterilização; remoção de partes de órgãos; ingestão de veneno; criação de feridas para testar novos medicamentos; operações e amputações desnecessárias.

2. Buchenwald (julho de 1937 a abril de 1945)

Número de mortos – 56 mil.

Experiências – Operações e amputações desnecessárias; contaminação com febre amarela, cólera e tuberculose; ingestão de comida envenenada; queimaduras com bombas incendiárias.

3. Ravensbrück (maio de 1939 a abril de 1945)

Número de mortos – Mínimo de 90 mil.

Experiências – Pesquisas fisiológicas, com remoção e transplante de nervos, músculos e ossos; esterilização; fuzilamento com balas envenenadas.

4. Dachau (março de 1933 a abril de 1945)

Número de mortos – Mínimo de 30 mil.

Experiências – Testes de hipotermia com exposição ao frio; câmaras de baixa pressão; infecção com vírus da malária; privação de líquidos com ingestão de água salgada.

5. Sachsenhausen (julho de 1936 a abril de 1945)

Número de mortos – 100 mil.

Experiências – Inalação e ingestão de gás de mostarda; infecção forçada pelo vírus da hepatite; fuzilamento com munição envenenada.

6. Natzweiller-Struthof (maio de 1941 a setembro de 1944)

Número de mortos – 25 mil.

Experiências – Utilização de prisioneiros como “viveiros” de bactérias e vírus como os de tifo, varíola, febre amarela, cólera e difteria.

Para saber mais

Doctors from Hell – Vivien Spitz, Sentient Publications, EUA, 2005

Os Cientistas de Hitler – John Cornwell, Editora Imago, 2003

The Nazi Doctors – Robert Jay Lifton, Basic Books, EUA, 2000

The Nazi War on Cancer – Robert N. Proctor, Princeton University Press, EUA, 2000

Murderous Science – Benno Müller-Hill, Cold Spring Harbor Lab Press,?EUA, 1988

Site do United States Holocaust Memorial Museum (Museu Memorial do Holocausto dos EUA) – https://www.ushmm.org

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