Céu privatizado: a nova corrida espacial
Descubra de que maneira empresas como a SpaceX e a Blue Origin estão abrindo as portas para a ocupação do espaço.
Se um dia pedirem para que a gente diga quando exatamente começou o futuro da exploração espacial, eu tenho um palpite: 6 de fevereiro de 2018. Foi nessa data que a empresa americana SpaceX lançou pela primeira vez seu foguete Falcon Heavy. Foi também a primeira vez que uma empresa, com recursos próprios, construiu um lançador capaz de levar uma nave tripulada à Lua.
O Falcon Heavy, neste momento, é o foguete mais poderoso em operação. Ele ainda apanha do clássico Saturn V, que podia empurrar até 45 toneladas na direção da Lua. Mas ele rivaliza com o ambicioso (e fracassado) N-1 soviético, sendo capaz de impulsionar cerca de 20 toneladas numa injeção translunar. E não fica tão longe assim do SLS, ao menos em sua versão inicial, projetada para carregar 26 toneladas. (Nas versões mais avançadas, esse número sobe para 37 e 45 toneladas, equalizando seu desempenho com o do Saturn V.) O que assusta é a diferença de preço. Enquanto o Falcon Heavy foi desenvolvido por US$ 500 milhões e seu custo de lançamento unitário é de US$ 90 milhões, o SLS já custou à Nasa mais de US$ 10 bilhões, começou a ser desenvolvido antes e ainda não terminou, e terá cada lançamento com custo estimado em US$ 1 bilhão.
Qual foi a mágica? Nesse caso, podemos dizer que realmente foi o olho do dono – Elon Musk. Ele era só um nerd sul-africano radicado nos EUA até ficar bilionário ao criar – e vender em 2002 – uma empresinha chamada PayPal, por US$ 1,5 bilhão. E aí o que ele fez com a grana? Investiu quase tudo na criação de uma empresa espacial, a SpaceX. (O que sobrou ele gastou na fabricante de carros elétricos Tesla.)
Se a SpaceX quisesse lançar em 2019 uma cápsula tripulada num voo ao redor da lua, ela já teria todos os elementos necessários.
Aplicando a cultura da revolução da internet e de engenharia de software, Musk criou um plano para desenvolver seus foguetes, começando pelo Falcon 1, um lançador de pequeno porte capaz de colocar umas poucas centenas de quilos em órbita terrestre baixa. Mas sua função principal era desenvolver o motor que impulsionaria um veículo maior, o Falcon 9. Os três primeiros voos do Falcon 1, em 2006, 2007 e 2008, fracassaram. Àquela altura, Musk só tinha dinheiro para mais um voo. Mas no quarto, em setembro de 2008, funcionou. E aí a SpaceX conseguiu um contrato com a Nasa para transportar carga até a Estação Espacial Internacional, com o Falcon 9 e uma cápsula criada para isso, a Dragon. O valor: US$ 1,6 bilhão.
O primeiro voo do Falcon 9 aconteceu em 2010, deu certo, e desde então a SpaceX já realizou mais de 70 lançamentos, com uma falha total, uma falha parcial e uma explosão feia na plataforma, dias antes de um voo. E, se o Falcon 9 é um derivado do Falcon 1, o Falcon Heavy é um derivado do Falcon 9.
Com essa família de lançadores, a SpaceX rapidamente se tornou uma campeã no mercado comercial de lançamento de satélites, cobrando um quarto do que a concorrência pelo mesmo serviço. Mas os rivais iam começar a arrancar os cabelos mesmo a partir de 2015, quando a empresa começou a tentar pousar suavemente o primeiro estágio dos dois que tem o Falcon 9 (o equivalente a 90% do custo do veículo) após o uso. O primeiro sucesso veio em dezembro daquele ano, abrindo caminho para reutilização – o santo graal da exploração espacial, já que os foguetes eram o único meio de transporte que (até então) só servia para uma única viagem para depois ser descartado. (Os ônibus espaciais tentaram mudar isso, mas adicionaram tanta complexidade que ficou mais caro do que se fossem descartáveis.)
Nesse mesmo espírito, o Falcon Heavy também é capaz de pousar seus propulsores (essencialmente três primeiros estágios do Falcon 9 reunidos lado a lado), como demonstrado em seu voo inaugural. No melhor estilo brincalhão de Musk, esse lançamento de teste disparou um carro (da Tesla, claro!) na direção de Marte.
A SpaceX também ganhou um contrato com a Nasa de US$ 2,6 bilhões para desenvolver uma versão tripulada de sua cápsula Dragon, a fim de transportar astronautas até a Estação Espacial Internacional. Um voo de teste, sem tripulação, já transcorreu com sucesso, e espera-se que entre 2019 e 2020 o primeiro voo tripulado ocorra. (Nisso, ela está numa corrida contra a Boeing, que também recebeu contrato similar, de US$ 4,2 bilhões, para fornecer os mesmos serviços de transporte. A ideia da Nasa é ter sempre pelo menos duas opções para seus astronautas não ficarem à beira da estrada se alguma das empresas tiver problemas.)
Empresas estão sendo contratadas pela Nasa para fornecer serviços de transporte até a Lua.
Mas isso é apenas o começo.
Agora, sabe quanto pesa uma cápsula Crew Dragon, carregada? Coisa de 16 toneladas. Isso significa que, usando apenas seus próprios sistemas, hoje, a SpaceX em princípio poderia lançar gente num voo ao redor da Lua. Por isso, o mundo se surpreendeu quando, na véspera do primeiro voo do Falcon Heavy, Musk anunciou que havia desistido de certificar o seu foguete mais poderoso para voos tripulados, o que deixaria na estrada um cliente privado que já havia contratado um voo circunlunar desse tipo. E sabe por quê? Porque o projetista-chefe da SpaceX já estava de olho no desenvolvimento de seu próximo foguete, que será capaz não só de ir à Lua como também orbitá-la e alunissar. A empresa já está construindo protótipos desse veículo, batizado de Starship-Super Heavy.
O objetivo final de Musk é viabilizar uma colônia em Marte. Então, em tese, os sistemas que a SpaceX está desenvolvendo devem ser mais do que suficientes para ir à Lua. Mas, mesmo que esse novo projeto acabe não dando certo, o impulso já está dado. A Nasa já aprendeu que pode obter serviços espaciais a um custo final muito menor, e o setor privado já entendeu que terá de inovar para permanecer competitivo.
Empresas tradicionais no mercado de foguetes estão tendo de inovar e desenvolver modelos ao menos parcialmente reutilizáveis. A Arianespace, gigante francesa que dominava o mercado comercial até a SpaceX estragar a brincadeira, já percebeu isso, e o mesmo vale para a United Launch Alliance, consórcio da Boeing e da Lockheed Martin. Ambas estão pensando em ter partes recuperáveis e reutilizáveis em seus próximos lançadores.
E ainda há os recém-chegados, como a Blue Origin, fundada por Jeff Bezos, dono da Amazon e homem mais rico do mundo, que está desenvolvendo um lançador de alta capacidade quase tão potente quanto o Falcon Heavy, o New Glenn. A companhia já demonstrou sua capacidade com o foguete suborbital New Shepard, que começará a fazer voos de passageiros até a borda do espaço ainda neste ano. E depois do New Glenn, que deve voar a partir de 2021, a empresa planeja um foguete ainda maior, o New Armstrong.
Em maio deste ano, Jeff Bezos organizou uma apresentação para mostrar ao mundo o Blue Moon, um módulo de pouso lunar inicialmente destinado a transporte de carga, mas que pode ser adaptado para levar tripulações. Ele afirma que a Blue Origin está pronta para ajudar a Nasa a cumprir seu objetivo de colocar humanos no solo lunar em 2024, como parte do recém-anunciado Programa Artemis. Na outra ponta, o administrador da Nasa, James Bridenstine, anunciou pequenos contratos para 11 empresas, a fim de que elas submetam projetos de módulos lunares capazes de transportar astronautas do Gateway, estação orbital lunar planejada pela agência, para a Lua. Entre as companhias selecionadas estão Boeing, Lockheed Martin, Northrop Grummam, SpaceX e Blue Origin. Só gente que não brinca em serviço.
Estimulando também missões não tripuladas, a Nasa adotou o modelo comercial para transporte de pequenas cargas úteis à superfície da Lua. Três empresas farão “carretos” entre 2020 e 2021, levando até 23 experimentos a diferentes regiões do satélite natural por um custo total de US$ 253,5 milhões. E a ideia é expandir o ritmo nos anos seguintes.
Ou seja, a corrida espacial ganhou uma nova versão, só que agora é entre empresas. E do mesmo modo que, nos anos 1960, a Nasa viabilizou a indústria de circuitos integrados ao comprar uma penca deles para as missões Apollo, ela agora estimulará o transporte espacial ao contratar esses serviços diretamente das empresas. Depois, as companhias estarão livres para vender os mesmos serviços para outros clientes.
E é por isso que a volta à Lua parece inevitável. A atual conjuntura torna muito difícil acreditar que simplesmente tudo que está em andamento vai dar errado. No fim das contas, pode até demorar mais uma década ou duas, mas quando os historiadores do futuro colocarem a Apollo 17 em contexto, ela não será mais vista como é hoje, a etapa final da exploração lunar tripulada. Ela terá sido meramente o fim do começo.