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A polêmica da fosfina (e da vida) em Vênus

A descoberta dessa substância química no planeta foi encarada como indício da presença de algum ser vivo. Mas a questão é bem mais complicada do que parece.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 18 Maio 2023, 11h23 - Publicado em 7 out 2020, 10h40

O mundo da astrobiologia foi chacoalhado no dia 14 de setembro, quando astrônomos da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, anunciaram a detecção de fosfina na atmosfera de Vênus. O composto em si não tem nada de especial: três átomos de hidrogênio, um de fósforo. Mas, segundo o grupo, nenhuma das formas conhecidas de produzi-lo funcionaria nas nuvens venusianas – exceto vida. Os pesquisadores alegaram ter testado todas as possibilidades para tentar explicar a presença da fosfina, que foi encontrada numa camada da atmosfera entre 53 e 62 km de altitude, onde o ambiente venusiano é relativamente benigno, na faixa de 27 graus Celsius e metade da pressão atmosférica terrestre. Um contraste enorme com a situação encontrada na superfície do planeta, com temperaturas acima de 460 graus e pressão atmosférica 90 vezes maior que a nossa.

O possível indício de vida em Vênus teve enorme repercussão na imprensa e até na geopolítica: a Roscosmos, a agência espacial russa, se apressou em dizer que a URSS foi a primeira a enviar sondas para lá, e por isso “Vênus é um planeta russo”. O país também anunciou, sem dar detalhes, que irá reiniciar a exploração do local. Mas a ideia de vida em Vênus não é nova.

O primeiro a falar dela foi o astrônomo Carl Sagan, num artigo científico publicado em 1962 – mesmo ano em que a sonda americana Mariner 2 sobrevoou, pela primeira vez, o planeta (as missões soviéticas tiveram problemas e não chegaram lá). Ao longo das décadas seguintes, outros pesquisadores também evocaram essa possibilidade, mas sempre como uma especulação distante. Sua lógica é que, a despeito do ambiente hoje completamente inóspito, Vênus é o planeta geologicamente mais similar à Terra. E modelos cosmológicos sugerem que, há 3 ou 4 bilhões de anos – na mesma época em que a vida surgiu aqui –, Vênus pode ter tido uma superfície habitável. Isso porque o Sol era bem menos brilhante, emitindo 70% da radiação que produz hoje.

Em linhas gerais, os cientistas imaginam a seguinte história para Vênus: nasceu habitável. Aí o Sol foi se tornando mais brilhante, isso evaporou os antigos oceanos venusianos, e toda a água na atmosfera produziu um efeito estufa tão grotesco que faz o atual parecer fichinha. Na alta atmosfera, as moléculas de água foram quebradas pela luz ultravioleta. E aí o hidrogênio e, em menor escala, o oxigênio foram varridos para longe pelo vento solar.

E as coisas foram ficando ainda piores com a evolução geológica do planeta. Sem os oceanos, sumiu o tectonismo do planeta. Sem ele, o ciclo do carbono foi interrompido (aqui na Terra, as erupções vulcânicas liberam carbono, mas parte dele acaba enterrado de volta no solo quando as placas tectônicas se movem). Ou seja, tudo que saía de dentro do planeta para a atmosfera ficava nela. Resultado: um ar 90 vezes mais denso que o da Terra, em que predomina o dióxido de carbono. E um planeta superseco.

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Essas são as condições hoje. Agora, imagine que a vida tenha conseguido surgir no Vênus paradisíaco do passado. Talvez – apenas talvez –, conforme o planeta foi evoluindo rumo a seu futuro infernal, alguns dos micróbios venusianos tenham conseguido se estabelecer na

alta atmosfera, que ainda hoje é relativamente benigna, a despeito de ter baixíssima quantidade de água e imensa acidez, com gotículas de ácido sulfúrico por toda parte.

É aí que entra em cena a descoberta da fosfina. Aqui na Terra, esse composto é muito associado ao metabolismo de micróbios anaeróbicos (que sobrevivem sem oxigênio). Mas não só a eles. Fosfina é o feijão com arroz da indústria de fertilizantes, por exemplo. E conhecemos diversos processos químicos naturais que poderiam produzi-la por aqui ou mesmo em outros planetas, como Júpiter e Saturno (onde a fosfina é gerada pelo ambiente de alta pressão e pelo hidrogênio abundante da atmosfera).

Mas, em Vênus, o problema é mais delicado. A atmosfera extremamente ácida e a forte radiação solar tendem a degradar as moléculas de fosfina – que durariam de meros minutos a um ano, na melhor das hipóteses. Só que a substância, como os pesquisadores ingleses revelaram em seu novo estudo, foi detectada em 2017 pelo telescópio James Clerk Maxwell, no Havaí, e confirmada em 2019 pelo Alma, no Chile. Isso sugere não se tratar de um fenômeno passageiro. Algo estaria constantemente reabastecendo a fosfina na atmosfera. E, convenhamos, nada funciona tão bem para explicar grande presença de moléculas fora de equilíbrio químico no ar quanto a vida – basta ver a enorme quantidade de oxigênio em nossa atmosfera, que deriva da fotossíntese.

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Os pesquisadores analisaram várias possibilidades (atividade geológica, reações promovidas por relâmpagos, impacto de asteroides, dentre outras) e, ao longo de cem páginas, descartaram cada uma delas. Mas, mesmo assim, não afirmaram que haviam detectado vida em Vênus: só indicaram que não sabiam explicar a detecção e que micróbios seriam uma possibilidade viável.

E aí, no dia 21 de setembro, apenas uma semana depois, uma dupla de pesquisadores da Universidade Cornell, nos EUA, submeteu um artigo à revista Astrobiology dizendo que a fosfina podia ser explicada por atividade vulcânica. Pois é. Ngoc Truong e Jonathan Lunine sugeriram que a fosfina de Vênus pode ser o produto da interação entre lava vulcânica, hidrogênio e ácido sulfúrico na atmosfera. De acordo com eles, a coisa para em pé se Vênus produzir algo como 93 km3 de lava por ano – o que é um número grande até para os padrões terrestres (média de 20 a 25 km3 por ano).

Os dados mais recentes sugerem que o vulcanismo ainda existe no planeta, mas os cientistas estimam a produção de lava em Vênus em 3 quilômetros cúbicos por ano. Três. Não 93. O planeta pode até ser geologicamente mais ativo do que isso, como sugerem informações coletadas pelas sondas Venus Express e Akatsuki. Mas ainda não dá para cravar que seus vulcões produzam 93 km3 de lava por ano – e, portanto, a explicação para a fosfina esteja neles, e não em uma forma de vida. E também não dá para afirmar o contrário.

Eis o grande drama da astrobiologia. A descoberta de vida extraterrestre, se e quando acontecer, dificilmente será um momento “eureca”. Será um longo rastejar, com a ciência levantando e descartando hipóteses de forma exaustiva, até que não reste mais o que concluir, exceto que se trata de vida. Não será rápido e não será fácil.

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