Amputação ritualística de dedos pode ter sido comum na pré-história
Uma análise de pinturas rupestres mostra que faltavam dedos a seres humanos de várias etnias – e argumenta que eles não foram perdidos por acidente.
Na caverna de Cosquer, localizada em Morgiou, na França, é possível encontrar pinturas rupestres que datam de até 27 mil anos atrás. Nelas, há centenas de figuras de mãos humanas com dedos faltando.
Por que? Essa dúvida vem sendo debatida nos últimos anos – e, como não temos registros escritos dessa época, trata-se de um debate altamente especulativo –, mas uma hipótese vem ganhando cada vez mais espaço dentro da comunidade científica.
De acordo com pesquisas lideradas pelo arqueólogo Mark Collard, da Universidade Simon Fraser, no Canadá, as amputações nos dedos não teriam nada a ver com doenças ou machucados. É mais provável, na verdade, que elas fossem propositais.
Pinturas rupestres similares espalhadas por vários lugares no mundo indicam que amputação dos dedos (ou de algumas falanges, apenas), fazia parte de rituais religiosos e sociais, como forma de agradar divindades ou fortalecer laços sociais.
Segundo Collard, em entrevista ao jornal britânico The Guardian, “há evidências convincentes de que essas pessoas podem ter tido seus dedos amputados deliberadamente em rituais destinados a obter ajuda de entidades sobrenaturais”.
Por muito tempo, acreditou-se que essas lesões eram causadas por problemas de saúde comuns na época ou pelo congelamento dos dedos em meses de clima muito frio. Mas, com o artigo publicado em 2018, Collard e sua equipe demonstraram a solidez dessa hipótese social-religiosa.
Na época, o principal argumento da comunidade científica contra a hipótese foi a ideia de que esse tipo de amputação atrapalharia a caça, a coleta e outras atividades cotidianas essenciais para a sobrevivência. Isso levou Collard e sua equipe de volta às pesquisas, de forma a encontrar mais evidências para embasar a ideia. E deu certo.
A equipe apresentou uma nova série de dados recentemente em uma conferência da Sociedade Europeia de Evolução Humana, no final de 2023. O artigo científico ainda não foi publicado. O que esses novos achados mostram é que a prática de amputação de dedos não é algo exclusivo dos habitantes das cavernas na França.
Collard e companhia descobriu que as amputações eram praticadas por mais de cem culturas e povos diferentes, em diversos lugares do globo. Os pesquisadores encontraram evidências em pelo menos quatro locais na África, nove na América do Norte, três na Austrália e seis na Ásia.
Tais evidências não se limitam ao registro arqueológico. O povo Dani, um grupo étnico que vive nos planaltos isolados da Nova Guiné, tem a prática de amputação dos dedos ritualística presente em sua sociedade até hoje (para não falar em casos famosos, como o corte de mindinho típico da Yakuza, a máfia japonesa).
Nada disso serve de prova cabal a favor da hipótese, mas a onipresença das amputações em tantos contextos diferentes torna difícil argumentar que ela seja culpa de problemas restritos a certas regiões, como doenças endêmicas ou temperaturas baixas.
“Mulheres dani às vezes têm um ou mais dedos cortados após a morte de entes queridos, incluindo filhos ou filhas. Acreditamos que os europeus estavam fazendo algo semelhante nos tempos paleolíticos, embora os sistemas de crenças precisos envolvidos possam ter sido diferentes. Esta é uma prática que não era necessariamente rotineira, mas ocorreu em várias épocas da história, acreditamos”, diz Collard.