Bolsistas de ciência no Brasil: quem são e como sobrevivem?
“Bolsista não é nada no Brasil, hoje. Não tem férias, não tem 13º salário e não pode contar o período de pós-graduação no momento de se aposentar.”
*Fernanda faz mestrado em biologia animal na UFRGS e colaborou com a SUPER na apuração da reportagem.
Era o fim da tarde da última quinta (2) e eu entrei no perfil de Facebook de Franciela Soares para adicioná-la. Antes de enviar o convite de amizade, passei os olhos nos posts compartilhados recentemente. Encontrei uma notícia da BBC que bombou em julho: “Depois de pós-doutorado na Inglaterra, biólogo vira figurante e tenta bico de modelo nu para se sustentar no Brasil”.
Na chamada, Rodrigo Rios, o protagonista da matéria, comenta: “Uma subutilização de tanto investimento, dinheiro público, tempo e dedicação para formar um cientista que vai para outra atividade porque não tem inserção no mercado. É horrível pensar que todo esse investimento não serviu para nada.”
Soares entende melhor do que ninguém a situação do rapaz: a gaúcha também é cientista, e está no terceiro ano do doutorado em química na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “As pessoas acham que nós só estudamos, não entendem que é o nosso trabalho”, disse. “Bolsista não é nada no Brasil, hoje. Não tem férias, não tem 13º salário, não recebe adicional de insalubridade (no caso de químicos, como eu) e não pode contar o período de pós-graduação no momento de se aposentar.”
Eu estava conversando com Soares por causa de uma notícia do dia anterior que, naquele horário, já estava começando a aparecer em todos os jornais do Brasil: “Bolsas de estudos podem ser interrompidas em 2019, diz Capes. Entre alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado, 93 mil podem ser atingidos”
O resumo da ópera é o seguinte: Temer tem até 14 de agosto para sancionar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2019. Em bom português, ele vai bater o carimbo em um papel que define quanto dinheiro será dedicado a cada uma das despesas do governo em 2019. Uma dessas despesas é a Capes – cuja sigla, caso você já tenha se perguntado, significa Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. A Capes é uma de vários órgãos públicos que pagam bolsas mensais a estudantes de pós-graduação brasileiros.
Falando desse jeito, não fica muito claro o que está em jogo. Dá a impressão de que essas pessoas são só alunos comuns, que trabalham meio período. Então eu vou tomar a liberdade de ajustar o título da notícia: 93 mil cientistas brasileiros, com o currículo do tamanho de uma nota fiscal de compra do mês, correm o risco de ficar sem salário [atualização: após repercussão na imprensa, o presidente Michel Temer e o MEC já prometeram que os cortes não ocorrerão].
Um salário que já não era dos maiores: R$ 1,5 mil durante o mestrado, R$ 2,2 durante o doutorado. Os dois valores estão há 5 anos sem nenhum reajuste (nenhum mesmo, nem inflação). Em janeiro de 1995, a bolsa de mestrado era de exatamente R$ 724,52. De acordo com os cálculos do economista André Coutinho Augustin, disponíveis na Galileu, se ela tivesse sido reajustada de acordo com a inflação, estaria em R$ 3.276,74 em 2016.
O que essas pessoas fazem por tão pouco? Bem, eu vou deixar Soares explicar por mim: “eu trabalho com a síntese de compostos bioativos e candidatos a fármacos para o tratamento da doença de Alzheimer.” Sim, tem gente no Brasil do século 21 correndo atrás de remédios para Alzheimer por pouco mais de dois salários mínimos, sem direito a nenhum dos benefícios de um trabalhador com carteira assinada. E não é pouca gente: em 2014, o Brasil formou 50,2 mil mestres e 16,7 mil doutores, um aumento de 400% em relação a 1996. De lá até aqui, o grosso desses diplomas vem cada vez menos do tradicional eixo Rio-São Paulo: o investimento em instituições federais descentralizou e democratizou a pesquisa nacional.
A ciência é ciumenta
A remuneração é tão baixa que, a partir de 2010, estudantes de pós-graduação da Capes e do CNPq foram autorizados a ter uma fonte de renda paralela à bolsa. Mas ela precisa se enquadrar em critérios muito específicos: o emprego tem que ser na área de pesquisa do aluno, o salário não pode ser mais alto que a bolsa, e o orientador da pesquisa precisa autorizar a carteira assinada (veja a nota sobre acúmulo de bolsa e vínculo empregatício – Portaria Conjunta CAPES-CNPq n° 01/2010).
Pouquíssimos pesquisadores conseguem empregos que se enquadram nessas exigências. E os que conseguem dificilmente teriam tempo de exercer a atividade paralela: a vida no laboratório é em período integral. Na prática, o regime é de dedicação exclusiva. “Eu acho que, se as instituições de fomento não dão conta, a solução imediata seria adotar um regime de não-exclusividade”, explica a geóloga Renata Schaan, “Mas a carga horária é pesada, é difícil conciliar. E aí as pessoas acabariam passando mais tempo na pós-graduação por não conseguirem dedicar a atenção necessária à pesquisa.”
Em março de 2016, Schaan passou em segundo lugar no mestrado do Museu Nacional, operado pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela foi trabalhar com a preservação do patrimônio geopaleontológico – uma palavra comprida para dizer que ela cuidou de meteoritos como este aqui, que pesa mais que um elefante africano e você pode ver de pertinho se visitar a instituição.
A pesquisadora se mudou para a capital fluminense com um bebê de 2 anos e desde o começo contou com a ajuda dos pais para se sustentar – a bolsa paga pela agência de fomento estadual, a Faperj, não era muito maior que a bolsa federal de R$ 1,5 mil. Tentou inscrever o filho na creche da faculdade, mas havia apenas uma vaga e centenas de crianças concorriam ao sorteio. Como o período de inscrição em creches públicas já havia passado, o jeito foi matriculá-lo em uma particular – que, por si só, já consumia uma fatia considerável da bolsa.
Se houvesse bolsa, é claro: ela não caiu em abril. Nem em maio. Nem em junho. A Faperj não conseguiu arcar com o compromisso. Só em novembro, após quase um ano de trabalho sem remuneração, a Capes interviu e passou a pagar Schaan com dinheiro federal. Mas ela nunca foi ressarcida pelos meses anteriores. “Hoje já ocorrem muitos atrasos por falta de verba”, diz a geóloga. E não é só a vida pessoal dos pesquisadores que é afetada: “equipamentos estragam e levam meses para serem consertados. Falta material e falta verba para atividades de campo, que são muito frequentes na minha área”.
Depressão pós-paper
Se você abre o site da SUPER todos os dias – obrigado pela audiência –, você já percebeu que nossas notícias mais curtinhas tem uma estrutura simples: nós pegamos um artigo científico que relata uma descoberta e traduzimos ele em bom português, sem linguagem técnica: “fulano, da universidade tal, publicou um artigo na revista Nature que diz tal coisa”.
Para quem vê de fora, fica fácil ignorar a importância da palavra “publicar”. Se você é um cientista e fez uma descoberta, o único jeito de divulgá-la é emplacar um texto sobre ela em uma revista especializada. Essa tradição se tornou uma lei tácita: as universidades usam o número de artigos publicados e número de citações que esses artigos recebem como principal critério para avaliar o desempenho de seus alunos e funcionários.
Por exemplo: hoje, para um cientista brasileiro da área de Farmácia receber a classificação máxima (1A) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, ele precisa ter publicado 70 artigos científicos nos últimos dez anos. Em outras palavras, fazer um avanço científico a cada dois meses.
Nem precisa dizer que a meta é utópica. Trata-se de algo que não acontece. A solução é “picar” as descobertas, para cada experimento render o maior número possível de papers. Só que esses papers diluídos perdem relevância, é claro. Quantidade não é igual a qualidade. Um estudo feito por Sidney Redner, da Universidade de Boston, revelou que, dos 353 mil estudos publicados entre 1893 e 2003 no periódico Physical Review, apenas 2 mil (0,56%) tiveram mais de cem citações. Oitenta e quatro mil (24%) foram citados só uma vez. Você pode entender melhor essa história nesta reportagem da SUPER, publicada em dezembro do ano passado.
“No programa do qual eu faço parte são exigidos dois artigos científicos”, explica Franciele Soares. “Eles são o mínimo para poder defender a tese e receber o diploma de doutorado. Sem artigo, não há de defesa.” Na prática, porém, quem se contentar só com os dois artigos obrigatórios fica para a titia. Em um concurso recente, um candidato a bolsa de pós-doutorado que emplacou seis artigos ficou apenas com o sexto lugar. O primeiro tinha dez.
“Se você não publica, acaba sendo passado para trás”, resume a química. “No ritmo que a coisa anda, a quantidade de alunos de pós com depressão e com ansiedade, tomando remédios fortíssimos para conseguir sair de casa, só tende a aumentar. Sei de grupos aqui na UFRGS em que todos os alunos tiveram ou tem algum problema de depressão ou ansiedade.”
Futuro?
Depois que um pesquisador termina o doutorado (e, de preferência, faz alguns pós-doutorados, inclusive no exterior), ele pode tentar prestar concurso para um dos únicos cargos públicos que garante estabilidade e um salário razoável para um cientista: o de professor universitário – que, vale lembrar, também é pesquisador.
Mas não é tão simples assim. Por exemplo: segundo a própria USP, a maior universidade do país, o número de professores efetivos trabalhando lá caiu de 6137 em 2014 para 5796 no começo deste ano – uma redução de 341 professores, ou 5,9% do total. Mas mesmo as universidades e outros órgãos públicos que contratam mais professores do que perdem não são, nem de longe, suficientes para absorver toda a mão de obra qualificada. E o setor privado normalmente não está disposto a contratar alguém com doutorado, mas sem experiência CLT.
“Como você vai ter experiência profissional se nem um estágio você pode fazer?”, questiona o biólogo Marcos Dums. Ele deixou um emprego efetivo no Paraná para fazer mestrado em taxonomia – a ciência que identifica, descreve e classifica os seres vivos. Hoje vive em Porto Alegre, e a bolsa não é suficiente para as despesas. “Os créditos que precisamos cumprir poderiam ser distribuídos em horários flexíveis, e as empresas também poderiam ser mais flexíveis.”
Resumo da ópera? Após 10 ou 15 anos vivendo de bolsa e se dedicando à ciência, quem termina o doutorado não está em uma posição melhor do que um recém-graduado no mercado de trabalho. Pelo contrário: o tempo passado na universidade pode ser um tiro no pé, visto com maus olhos nos processos seletivos. Desse jeito, fica difícil convencer alguém a abraçar a carreira acadêmica – e pessoas inteligentes e cheias de potencial, que poderiam mudar a ciência do país, acabam trocando o laboratório pelo escritório.
“Tanto a sociedade quanto o governo têm que parar de nos tratar como estudantes, como se essa bolsa fosse um benefício”, afirma a bióloga Fernanda Almerón. Ela faz mestrado em biologia animal na UFRGS, e ajudou a SUPER a coletar os depoimentos incluídos nesta reportagem – além de incontáveis outras histórias que não couberam aqui. “Na verdade, nós fazemos um trabalho árduo para o país e sim, devemos ser tratados como trabalhadores”.
Almerón ainda está no começo da carreira, mas já foi autora de uma descoberta importantíssima: a carne vendida sob a alcunha de “cação” nos supermercados brasileiros na verdade provém de mais de 20 espécies diferentes de raias, tubarões e outros peixes – das quais 40% estão em extinção (veja a matéria completa). No futuro, a descoberta pode contribuir com uma regulação mais eficiente da pesca no País, que beneficie tanto os consumidores quanto a fauna marinha. De fato, praticamente toda medida anunciada pelo governo se baseia ou pelo menos é justificada por pesquisas feitas por economistas, sociólogos, pedagogos, psicólogos etc. – muitos dos quais, por ironia, dependem de bolsas. O Brasil precisa da ciência. Se não, será para sempre o país do presente.