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Caderno com a mais célebre anotação de Darwin foi roubado de Cambridge

O bloquinho B, usado por Darwin em Londres no ano de 1837, contém seu primeiro esboço de uma árvore da vida – e retrata os pensamentos do naturalista na época em que lhe ocorreu a seleção natural.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 12 fev 2021, 17h20 - Publicado em 26 nov 2020, 15h00

Em julho de 1837, aos 28 anos, Charles Darwin fez os primeiros rabiscos em um bloco de notas com capa de couro marrom, de 280 páginas, pouco maior que um celular – ideal para carregar no bolso do paletó. Batizou o caderninho de B, e há um pedaço de papel com a letra colado na capa até hoje.

Darwin decidiu dedicar B às anotações sobre o tabu da transmutação. Esse era o nome que se dava, na época, à ideia de que os seres vivos passam por mudanças ao longo das eras geológicas, e não são uma obra definitiva e intocável do Criador. Nesse bloco de notas – e no C, D, E e F que se seguiram –, o jovem naturalista anotaria a sequência de pensamentos e dúvidas que o levaram à teoria da evolução por seleção natural.

A Universidade de Cambrige admitiu na última terça (24) que os cadernos B e C estão desaparecidos há duas décadas. As duas peças saíram do acervo em 2000 para digitalização. O trabalho foi concluído em novembro daquele ano. Essa foi a última vez que qualquer um tocou nos artefatos com autorização da instituição.

Em janeiro de 2001, durante uma checagem de rotina, os bibliotecários perceberam que a caixa azul onde ficavam armazenados os dois bloquinhos não estava na prateleira correta. De fato, não estava em nenhuma prateleira. Mas todos pensaram que alguém havia arquivado o item no lugar errado acidentalmente.

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20 anos e muitas buscas depois, a biblioteca se convenceu de que os bloquinhos foram roubados – a polícia local foi notificada em 20 de outubro deste ano e acionou a Interpol. Agora, a história veio a público em um apelo publicado pela assessoria de imprensa de Cambridge no próprio site da instituição.

“Este apelo público pode ser crítico para a devolução segura dos cadernos, para o benefício de todos, e eu gostaria de convidar qualquer um que acredite ser capaz de ajudar a entrar em contato”, disse Jessica Gardner, diretora da biblioteca desde 2017.

Darwin, que na época dos cadernos era um jovem sem barba com costeletas loiras, viveu em Londres entre 1836, quando voltou da viagem do HMS Beagle, e 1842, quando se mudou com a esposa Emma Wedgwood (sua prima) para um subúrbio ruralizado. Nesse período, teve um bocado de caderninhos. Não saia de casa sem um. Se tivesse uma discussão filosófica com colegas bêbados, anotava. Observações em um jardim, anotava. Na biblioteca, anotava.

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Ao contrário do que se imagina, Darwin não idealizou o mecanismo da seleção natural durante a passagem do Beagle pelo Atlântico Sul. A viagem ganhou um status quase mitológico graças aos livros didáticos e aos diários do naturalisa, mas não foi à bordo que ele teve suas grandes ideias. O jovem Charles foi (e voltou) criacionista, ainda que com uma pulga atrás da orelha.

Foi em Londres que tudo aconteceu. Enquanto ele e seus colegas pensavam nos espécimes coletados na viagem – incluindo os famosos tentilhões e tartarugas das Galápagos –, Darwin percebeu que as diferenças entre duas espécies animais aparentadas refletiam com precisão o afastamento geográfico entre elas: “Os animais diferem em diferentes regiões, na exata proporção do tempo que passaram separados”, anotou no caderno B. Outro trecho, este no caderno D, diz: “Quanto mais tempo as regiões passam separadas, maiores as diferenças.”

A página mais célebre do caderno B é a que você vê abaixo. Nela, Darwin esboçou uma árvore da vida ramificada, em que vários organismos descendem de um ancestral comum – uma proposição revolucionária na época, em que o entendimento geral era de que Deus havia criado as espécies da maneira como são. Acima do desenho, escreveu I think (“eu acho”). Embaixo, espremeu observações mais técnicas sobre as diferenças e semelhanças entre as espécies representadas por letras no diagrama.

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(Charles Darwin, Universidade de Cambridge/Domínio Público)

Algumas páginas depois, deixou um aviso para si próprio: “Só Deus sabe se isso está de acordo com a natureza: cuidado.” A palavra cuidado foi grafada em português ou espanhol.

O biólogo Ernst Mayr sistematizou a contribuição de Darwin à biologia em cinco afrontas às teorias vigentes no século 19. O desenho da árvore, sozinho, exibe três delas:

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1. Darwin defendeu que as espécies não eram constantes e mudavam ao longo do tempo, em oposição ao essencialismo platônico.

2. Darwin defendeu que todas as espécies descendem de um mesmo ancestral, em oposição ao criacionismo bíblico, em que Deus cria cada espécie separadamente.

3. Darwin defendeu que duas espécies podiam surgir onde antes havia uma só, ou seja: que a árvore da vida se ramifica.

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Assim, o caderno B foi o trampolim para Darwin concluir o raciocínio alguns meses depois. Ele escreveu em sua autobiografia:

“Em outubro de 1938, isto é, 15 meses depois de ter começado minha pesquisa sistemática, eu calhei de ler, por lazer, o livro População, de Malthus, e, estando bem preparado para apreciar a luta pela existência que por toda parte se dá, graças a minha longa e contínua observação dos hábitos de animais e plantas, de uma só vez me ocorreu que sob estas circunstâncias variações favoráveis tenderiam a ser preservadas, e as desfavoráveis, a ser destruídas. O resultado disso seria a formação de novas espécies.” Eis os dois itens que faltavam:

4. Darwin defendeu que a evolução biológica se dá pelo acúmulo lento e gradual de mudanças, em oposição aos saltacionistas, que afirmavam que uma nova espécie podia surgir de uma tacada só.

5. Por fim, Darwin defendeu que tudo isso acontece por causa de um processo de causas puramente mecânicas, que não demanda nenhuma explicação esotérica: a seleção natural (em oposição a doutrinas como a do finalismo, que reivindicam uma força esotérica que guia o ser vivo rumo a perfeição).

O caderno B, portanto, é mais do que um mero registro do fluxo de pensamento de Darwin. Ele marca um momento de virada para a espécie humana como um todo. Nas palavras de Richard Dawkins: “Os seres vivos já existiam na Terra há mais de 3 bilhões de anos, sem ter a menor ideia do porquê, antes que a verdade finalmente ocorresse a um deles. O seu nome era Charles Darwin.”

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