Ciência dos aromas: os segredos por trás do gosto da sua comida
Entenda como o seu paladar funciona. E conheça as novas técnicas da indústria dos sabores artificiais para satisfazê-lo.
Existe coisa mais nostálgica do que uma bala de cinamaldeído? E mais irritante do que ter o nariz invadido pelos terpenos de alguém que decidiu abrir sua sobremesa nas proximidades?
Não vai ser necessário entender de química orgânica para continuar a leitura. Basta saber que ela está por todos os lados. Quem nunca chupou uma bala de canela, ou descascou uma tangerina cujo cheiro era capaz de empestear até o maior dos latifúndios?
Todo mundo sabe que comida tem sabor, e que esse sabor vem dos ingredientes dela – não só de ingredientes de receitas (2 xícaras de farinha, 3 ovos…), mas da própria estrutura química que compõe tudo aquilo que você está ingerindo. Uma mordida numa maçã libera nada menos que 130 compostos orgânicos na sua boca. No mel, são mais de 200. O café é um exemplo ainda mais brutal: são 1.500 estruturas diferentes.
A ciência define “sabor” como uma mistura do que é detectado pelos receptores básicos de gosto e textura na boca, somados às informações que o cérebro recebe do nariz. Sim: sem o olfato, as estrelas Michelin dos mais premiados chefs não sobreviveriam.
Os compostos químicos que dão identidade a praticamente qualquer sabor conhecido são chamados de “voláteis”. Eles libertam-se na boca, por mastigação e interação com a saliva, e viajam até a sua cavidade retronasal. Não fosse pelos receptores que ficam atrás do seu nariz, não existiria sabor – ou melhor, tudo ficaria um tanto igual.
O gosto doce, por exemplo, é percebido primeiro na língua. Mas é só essa informação que ela registra: “doce”. Mel, caramelo, chocolate? Tudo a mesma coisa. Seria impossível até mesmo diferenciar um feijão de uma ervilha. É só pensar em como qualquer comida fica sem graça quando estamos com o nariz entupido.
(imh)
Na virada do século 20, quando o estudo da química por trás dos alimentos começou a ganhar corpo, surgiram os primeiros aromas sintéticos: tentativas de imitar, em laboratório, os voláteis mais marcantes no sabor e no odor dos alimentos. É provável que os primeiros aromas não naturais tenham surgido por acidente, com reações químicas que perfumavam o laboratório de cientistas com cheiros de frutas e flores toda vez que eles produziam compostos chamados ésteres e aldeídos – cadeias de carbono ligadas a moléculas de oxigênio e hidrogênio. Não demorou para que alguém visse nesses cheirosos acidentes uma oportunidade de negócio e começasse a obter aquelas reações de propósito, a partir de derivados de petróleo.
Nascia a profissão do aromista: o especialista em criar aromas (ou flavours, em inglês, termo que remete mais ao sabor em geral do que apenas ao cheiro). Eles alteram e intensificam o gosto de bases alimentares, de doces como biscoitos, gelatinas e chicletes e iogurte, a salgados como carnes – existe até o aroma sintético de fumaça para promover sabores defumados.
O aumento no consumo de alimentos processados, que precisavam manter o mesmo gosto e frescor após longos períodos de transporte e estoque, ajudou a indústria de aromas a se estabelecer. Mas um dos pontos-chave para a profissão foi a invenção, na década de 1950, das primeiras máquinas comerciais de cromatografia gasosa. Pela primeira vez, era possível simular o que acontece na boca e no nariz: “alimentavam” a máquina com pequenas doses de um produto e viam seus compostos aromáticos separados por meio de um gás neutro. Isso permitiu que cada estrutura fosse isolada das demais.
Um aroma artificial já não precisava imitar a natureza por meio de tentativa e erro: o aromista podia separar seus “ingredientes”, provar combinações e decidir quais misturas reproduziam de forma mais agradável o sabor que ele pretendia dar à comida.
Encontrar o aroma mais equilibrado, adequado e economicamente viável em meio a mais 3 mil ingredientes e fórmulas químicas exige bastante pesquisa, claro – motivo pelo qual as casas de aromas que dominam o mercado colecionam segredos industriais e fórmulas confidenciais. Apenas quatro empresas – duas suíças, Givaudan e Firmenich, a americana IFF e a alemã Symrise – produzem mais de 60% dos aromas presentes na comida que você compra.
Linha de montagem
Marcel Miasiro Silva, aromista sênior da Firmenich, conversou com a SUPER e forneceu vislumbres sobre a lógica de produção de um aroma. Eles são, tradicionalmente, divididos em dois grupos: os aromas naturais e os sintéticos. Os naturais não precisam vir totalmente prontos da natureza. Vale fermentar, destilar, concentrar óleo. Só não pode transformar o ingrediente com reações químicas em laboratório.
O extrato de baunilha, por exemplo, é obtido a partir da fava seca da flor de uma orquídea. Mas só 2% de uma fava natural pode ser convertida em extrato. Acontece que uma única molécula é a principal responsável pelo aroma característico da baunilha: a vanilina.
E ela é facilmente produzida em laboratório. A partir do cravo-da-índia, isola-se uma substância chamada eugenol. Oxidado, ele se torna vanilina, a baunilha sintética. Sintética. Mas não exatamente “artificial”. Essa classificação vale só para a produção de moléculas impossíveis de encontrar na natureza.
É o caso da etilvanilina, uma criação 100% humana. Ela dá gosto de baunilha por um terço do preço da vanilina – o que explica por que você encontra, a cada esquina, um sorvete de casquinha de baunilha… a preço de banana. “É por isso que a fava de baunilha comprada no supermercado fica na faixa de R$ 45, e a essência de baunilha no vidrinho é muito mais barata”, lembra Marcel. Mas não basta um único ingrediente para fazer o trabalho. Um composto isolado sempre traz uma experiência sensorial mais linear e menos complexa do que um extrato totalmente natural.
O aromista, então, precisa criar camadas com a sua matéria-prima. “Um bom aroma de melancia não pode ser feito só de matérias-primas presentes na polpa. A fruta cresce fechadinha, e seus aromas concentram aspectos de cada um dos seus elementos: polpa, sementes, casca. Um aroma autêntico precisa ter tudo isso.”
Modulação de sabor
Manipular “camadas” de aromas exige que o aromista entenda muito bem os thresholds – concentrações mínimas e máximas para o uso de cada aroma. “Você começa com um ingrediente, e uma solução de água com açúcar. Vai pingando e provando, até começar a sentir o efeito do aroma na água. Esse é o threshold mínimo dessa substância”, explica Marcel.
Certas matérias-primas têm thresholds baixíssimos. Uma só gota de concentrado de pimentão saboriza um volume de água equivalente a cinco piscinas olímpicas inteiras. Já aromas com intensidade excessiva podem estragar tudo. O endol, em pequena quantidade, tem um perfume floral de jasmim. Acima da concentração ideal, cheira a estábulo – um misto de fezes e urina.
Se concentrações altas demais produzem efeitos tragicômicos, saber manipular as concentrações mínimas também é útil – especialmente em uma nova área na indústria: a modulação de sabores.
Sabe quando lançam uma versão zero açúcar ou zero gordura de algum iogurte grego? Então. O fabricante busca na indústria de aromas uma forma de recuperar o sabor jogado fora junto com as calorias.
Dá para fazer isso trabalhando com aromas abaixo do threshold mínimo. Em um iogurte sem açúcar, por exemplo, é possível usar o aroma de mel, mas abaixo da concentração necessária para que ele seja perceptível como mel. “Posso combinar uma série de aromas doces para formar um perfil doce, encorpado, mas sem dar o gosto desses ingredientes todos no produto final.”
O caso da gordura é ainda mais surpreendente. Afinal, a ausência dela muda drasticamente a textura do produto. Mesmo assim, aromas de laboratório ajudam a recompor essa experiência tridimensional.
“Imagine todo o universo de alimentos que dão a sensação de ‘encher a boca’. Manga, pêssego, manteiga. Usamos aromas ligados a essas matérias-primas – sempre abaixo da concentração mínima – para promover a mesma sensação tátil”, conclui. Por mais rebuscada que seja a ilusão, porém, é claro que a experiência de comer um iogurte integral – ou qualquer outro alimento saboroso – segue impossível de reproduzir por completo. Afinal, o seu paladar, que evoluiu por milênios, não vai ceder tão fácil à alquimia dos aromistas. Pelo menos, por enquanto.