Como é feito um triple A
A indústria de games nunca faturou tanto, mas está em crise. Motivo: a produção dos triple A (os jogos mais sofisticados) ficou cara demais. Entenda as razões, e veja como um estúdio da Microsoft aposta em uma nova técnica – que, além de reduzir custos, promete um salto de realismo.
S“Sinais de uma nova erupção provavelmente incluiriam aumento súbito de terremotos na área, aceleração da deformação e mudanças de pressão em poços. Os sinais de alerta podem ser inexistentes ou muito breves, possivelmente menos de meia hora”, diz o relatório do governo islandês em 7 de maio.
O chão do país vem tremendo, de forma quase imperceptível, desde o começo do mês – só na véspera os cientistas registraram 40 microssismos, de intensidade 1 na escala Richter. O temor das autoridades é que isso desperte o Sundhnúkur, um dos 130 vulcões espalhados pela ilha – e que a região de Grindavik, para onde vou amanhã, seja tomada por lava.
Mas o inglês Dan Attwell não parece preocupado; esta é sua quarta visita à Islândia. Estamos em Djúpalón, praia no oeste do país, cuja areia preta é salpicada pelos destroços de um pesqueiro inglês, o Epine, que aqui naufragou em 1948. Mar revolto, vento forte, chuva e neve se revezam na temperatura perto de zero.
Imperturbável, Attwell resolve pegar uma trilha. São só 700 metros – mas num morro perigoso, que não admite o menor descuido, e por isso a travessia leva quase meia hora. Vale a pena. A vista da enseada de Dritvík, com uma enorme pedra em formato de baleia encalhada, dá o que pensar.
A Islândia, com apenas 300 mil habitantes espalhados por 100 mil quilômetros quadrados – o tamanho de Portugal –, alterna lindas paisagens e um terreno hostil, no qual é dificílimo sobreviver (até hoje os historiadores não sabem ao certo por que os vikings decidiram se instalar aqui, no ano 874).
Essa dualidade também se aplica a algo totalmente diferente: a indústria de games. Ela nunca foi tão próspera –fatura US$ 180 bilhões por ano, o dobro de Hollywood –, e atravessa uma grande fase (2023 foi cheio de lançamentos memoráveis). Ao mesmo tempo, vive a maior crise em décadas.
Só nos últimos 12 meses, quase 20 mil desenvolvedores de games foram demitidos. A Sony informou, em seu último relatório financeiro, que não vai lançar nenhuma superprodução em 2024, e a Microsoft anunciou o fechamento de três dos seus estúdios (Arkane Austin, Tango Gameworks e Alpha Dog).
Os motivos específicos não foram divulgados. Mas estão ligados a um problema central, que ameaça o futuro dos games: o custo.
Ao contrário dos estúdios de cinema, que sempre divulgam os orçamentos de seus filmes como estratégia de marketing, as produtoras de jogos não costumam abrir esses dados.
Mas, em 2023, alguns deles finalmente foram revelados – por um deslize curioso. A Justiça dos EUA estava avaliando a compra da produtora Activision pela Microsoft. E a Sony, que era contra o negócio (ele acabou se concretizando, por US$ 69 bilhões), enviou uma série de documentos para as autoridades.
Eles continham informações confidenciais, incluindo os orçamentos da Sony. Antes de publicá-los na internet, junto com os demais documentos do caso, os profissionais da corte riscaram os dados com uma caneta preta. Porém, usando um scanner, dava para enxergar o que estava por baixo.
Aí o mundo descobriu que The Last of Us: Part II, lançado em 2020 para o PlayStation, custou nada menos que US$ 220 milhões, e Horizon Forbidden West consumiu US$ 212 milhões.
Alguns meses depois, um vazamento de dados revelou que a produção de Spider-Man 2 exigiu US$ 315 milhões – na mesma faixa de Cyberpunk 2077 (cujo orçamento, mais tarde, acabou chegando a US$ 441 milhões com as expansões e correções adicionadas ao game).
Os games são caros porque exigem anos de trabalho [veja no infográfico acima]. Isso resulta em jogos cada vez mais bonitos e profundos. Mas há uma crescente preocupação com o ritmo de gastos, que é visto como insustentável pela indústria – e também pode ser ruim para o público.
Se você joga, já deve ter notado que os games mais ambiciosos e superproduzidos (os chamados triple A, um termo que foi emprestado do mercado financeiro e significa “de alta qualidade”) estão cada vez mais parecidos e previsíveis.
É que os produtores tentam minimizar o risco, apostando em repetições de coisas que já deram certo – como os custos envolvidos são altíssimos, um lançamento malsucedido pode gerar perdas monumentiais.
Exemplo: a Warner Brothers anunciou que Suicide Squad: Kill the Justice League, lançado este ano, deu US$ 200 milhões de prejuízo. Um flop já pode ser o suficiente para quebrar um estúdio.
Mas talvez haja outro caminho. Em 2014 o afegão Tameem Antoniades, fundador e diretor do estúdio inglês Ninja Theory, propôs o conceito de “triple A independente”: criar games tão avançados quanto as maiores superproduções, só que gastando muito menos.
Em 2017, o estúdio provou isso lançando Hellblade: Senua’s Sacrifice, um jogo de ação que impressionou pelo visual sofisticado – mas foi produzido por apenas 15 pessoas, com US$ 10 milhões (sem truques ou técnicas especiais, só com a garra mesmo).
Hellblade fez sucesso, e em 2018 o Ninja Theory foi comprado pela Microsoft por US$ 117 milhões (uma pechincha) e começou a produzir Hellblade II. Após alguns anos de trabalho – e a saída de Antoniades da empresa –, foi lançado em maio para Xbox e PC.
O game se passa na Islândia. Por isso o inglês Attwell, que é o diretor de arte do estúdio, a roteirista do game, Lara Derham, e eu estamos aqui: rodamos mais de 700 km pelo país, durante dois dias, para visitar cinco locais que aparecem no jogo – a costa de Djúpalón, os morros de Rauðhólar, as fontes geotérmicas de Krýsuvík, as paisagens de Indjánahöfði e Valahnúkamöl (para chegar às duas últimas, atravessamos a área mais crítica de Grindavik, classificada como “alto risco” devido à previsão de erupções).
A expedição pode parecer, e é, uma ação para tentar impressionar a mídia e divulgar o jogo. Mas também tem uma justificativa técnica.
Hellblade II é o primeiro game de ação feito com fotogrametria: um método que usa imagens reais para construir os gráficos do jogo. “Você tira fotos de uma área ou de um objeto, por muitos ângulos, e aí você pega todas essas imagens, coloca no computador e ele reconstrói aquilo em 3D”, explica Attwell.
Em 2020, a Microsoft e o estúdio francês Asobo usaram fotogrametria para construir o Flight Simulator: ele empregou 2 petabytes (2 milhões de gigabytes) de imagens de satélite, capturadas pelo serviço Bing Maps, para reconstruir 100% da superfície do planeta.
Em Hellblade II, as imagens de satélite serviram apenas como ponto de partida – cada pixel delas cobria 2 metros de área, ou seja, a resolução não era suficiente.
Então o Ninja Theory enviou uma equipe de seis pessoas para o país, onde elas passaram 11 dias capturando imagens com drones – que são controlados por um software especial e voam sozinhos, varrendo as áreas desejadas e tirando fotos [veja quadro abaixo].
O pulo do gato é que, ao capturar cada uma das imagens, o drone também registra suas coordenadas exatas. É com essa informação que o computador consegue, mais tarde, sobrepor e fundir os arquivos, transformando as fotos 2D em cenários 3D (da mesma maneira que o cérebro humano combina imagens planas, capturadas pelos olhos, para formar o mundo tridimensional que você enxerga).
O resultado é surpreendente: tirando as fontes de Krýsuvík, que não encontrei no game, os demais cenários reproduzem muito bem os lugares reais. Têm um nível de detalhes altíssimo, inédito nos games – cada metro quadrado do espaço virtual contém centenas de microelementos, como reentrâncias, fissuras, texturas e cores das formações rochosas islandesas.
“Você consegue um nível de detalhes mais alto do que se fizesse à mão [desenhando no computador], e captura nuances que não perceberia, ou que tomariam tempo demais”, explica Attwell, tocando num ponto crítico – além de incrementar o visual, a fotogrametria reduz os custos de produção.
“Você não precisa criar cada asset [elemento do jogo], porque está capturando uma coisa real. Isso acelera bastante o trabalho, pois meio que elimina vários processos. Não é preciso fazer esboços, elaborar várias versões. Você simplesmente vai até o que quer escanear, escaneia e coloca no jogo.” O estúdio também usou a técnica para capturar objetos e trajes históricos da Islândia [veja abaixo].
A fotogrametria torna o desenvolvimento de um jogo mais parecido com a produção de um filme. De certa forma, é a extensão natural de um método que a indústria de games já adota faz tempo: a captura de movimentos (mocap, em inglês).
Sabe aqueles “filminhos” que, em muitos jogos, aparecem entre as fases ou sequências de ação? Costumam ser gravados com atores e atrizes, cujas expressões faciais e corporais são capturadas – e inseridas no computador, que usa esses dados para desenhar tudo.
Em The Last of Us, a protagonista Ellie é vivida pela atriz americana Ashley Johnson; em Horizon, a guerreira Aloy é a holandesa Hannah Hoekstra. Em Hellblade II, Senua é interpretada pela alemã Melina Juergens (que, ao contrário das outras, não é atriz; é editora de vídeo do Ninja Theory).
No primeiro Hellblade, a captura de movimentos foi feita na sala de reuniões do estúdio, que teve de ser forrada com papel. “Nós só tinhamos aquela sala”, lembra Lara Derham, que além de escrever o roteiro também dirigiu o mocap.
No primeiro jogo, a captura exigiu dois dias de trabalho; em Hellblade II, foram 69 dias, dentro de um galpão construído para isso na sede da empresa, em Cambridge, com 42 câmeras. Resultado do dinheiro da Microsoft.
O orçamento de Hellblade II não foi divulgado, mas o número de desenvolvedores sim: 80. Cinco vezes mais do que no primeiro jogo, mas uma fração da quantidade envolvida nas superproduções tradicionais, que exigem 200 a 300 desenvolvedores. Apesar do investimento, Hellblade II ainda saiu barato.
E foi bem recebido. Ganhou elogios da imprensa (alcançando nota 81 no agregador de reviews Metacritic) e chamou a atenção dos assinantes do serviço Xbox Game Pass, no qual foi lançado.
Mas a mídia especializada também criticou sua curta duração, em torno de 6h, e outras duas limitações: não dá para explorar os cenários, pois o jogador é forçado a seguir um caminho muito linear, e a mecânica dos combates é simples demais, sem grandes variações ou desafio.
Visualmente, Hellblade II parece mesmo um filme. Mas também é assim no gameplay, ou seja, fica devendo um pouco mais de interatividade.
Essas questões criaram certa polêmica em torno do game – e, dado o momento delicado da indústria, alimentaram rumores sobre o destino do Ninja Theory. Tanto que em 20 de maio, quando o CEO do estúdio publicou um tuíte agradecendo sua equipe e dizendo que “fazer games é difícil”, houve quem visse ali um mau presságio.
O próximo jogo do Ninja Theory, com nome provisório de Project Mara, é um terror psicológico que se passa dentro de um apartamento – que foi capturado com fotogrametria, e promete gráficos ultrarrealistas.
Mas ele ainda não tem data de lançamento, e não foi sequer citado no Xbox Showcase: um evento, em junho, no qual a Microsoft mostrou 30 jogos que sairão para seu console em 2024, 2025 e além. Então há alguma incerteza sobre o futuro do Ninja Theory. Não é o único caso.
O chão, na Islândia e na indústria, continua se mexendo.
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Gerados por IA
Algoritmo da Nvidia cria personagens para games – e pode baratear sua produção.
A Nvidia já é a terceira maior empresa do mundo em valor de mercado, com US$ 2,9 trilhões (as duas maiores são a Microsoft, com US$ 3,2 trilhões, e a Apple, com US$ 3 trilhões).
O valor da Nvidia, que domina o setor de placas de vídeo para games, disparou nos últimos 18 meses porque ela lidera a produção de chips de inteligência artificial.
Agora, a empresa tenta juntar as duas coisas com o Avatar Cloud Engine (ACE), um conjunto de ferramentas de IA capazes de gerar “personagens não-jogáveis” – ou seja, todos exceto o protagonista do game.
A IA é alimentada com o roteiro do jogo e descrições dos personagens (escritas por humanos), e faz o resto: cria diálogos e gera as animações. A produtora francesa Ubisoft, de Assassin’s Creed e Far Cry, já está testando o ACE.