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Como os gatos veem o mundo

Para eles, o dono é líder do bando, todo dia é de caça e cada sala é uma selva. Enxergue o mundo com olhos felinos: em azul e amarelo. E sempre alerta

Por Alexandre Rodrigues
Atualizado em 2 jul 2019, 14h56 - Publicado em 23 nov 2014, 22h00

Os homens pensaram que haviam domesticado os gatos. Como eles mantinham os ratos longe, nós lhes demos rações. E depois lares. Nomes. Camas. Banhos. Tosas. Brinquedos. Arranhadores. Colos. Cafunés. Capas siliconadas para unhas. Estima-se que hoje existam 600 milhões de gatos vivendo com humanos, contra 800 milhões de cachorros – mas a distância do campeão para o vice vem diminuindo. Desde 1985, os felinos são os animais mais numerosos dos EUA, e o Brasil segue o mesmo rumo. Na internet, então, eles são os reis, seja ilustrando frases bizarras ou protagonizando vídeos fofos.

Diante de tanto investimento financeiro e emocional, muitos veem em seus bichanos características humanas. Pois se enganam. Diferente dos cachorros, que querem ser gente, os gatos não querem ser outra coisa. E acham que a gente é que é gato: aos olhos felinos, seus donos são gigantes amáveis da mesma espécie, responsáveis por sustentá-los e protegê-los.

Protegê-los do quê? Para o gato, cada sala é uma selva – que ele só é capaz de enxergar em dois tons: amarelo e azul. Por trás de cada cortina e por baixo de cada almofada pode haver uma ameaça. Nascem, morrem e geram predadores. “Ele descende de um felino territorial e solitário que aceitou a coexistência com outros gatos e ainda está se adaptando à vida de animal de estimação”, diz John Bradshaw, autor de Catsense – The Feline Enigma Revealed (“Sentido de gato, o enigma felino revelado”), best-seller de 2013 sem edição brasileira.

Ou seja, o que ratos sabiam e pufes suspeitavam, a ciência agora confirma: o gato doméstico ainda é selvagem. Essa é uma descoberta fundamental para começar a decifrar o seu comportamento, sua personalidade e sua complexa relação com o homem – um relacionamento que começou por interesse.

DOMÉSTICO NAQUELAS

O gato foi o primeiro vigia de estoque. Foi assim: há 10 mil anos, as primeiras colheitas atraíram ratos pela primeira vez. Para sorte dos primeiros agricultores, no rastro dos roedores veio seu predador, o Felis silvestris. O gato selvagem era um bicho meio arisco, mas mantinha os ratos longe dos celeiros, e o contrato foi fechado. Aos poucos, a relação deixou de ser somente profissional: em 9500 a.C., um homem e seu gato foram enterrados juntos no Chipre. E, após milênios de bem-bom, criamos uma subespécie, Felis silvestris catus, o chamado gato doméstico. Que não é tão doméstico assim. O autor de Catsense explica: “Para ser eficaz contra os ratos, os gatos precisaram manter muitos de seus instintos selvagens.”

Caçar ainda é parte fundamental da vida de qualquer gato, mesmo os de apartamento. Quando filhotes, as brincadeiras, além de engraçadinhas, estão ligadas ao desenvolvimento de habilidades de caça, como velocidade e precisão do golpe. Seus cinco sentidos evoluíram para torná-los uma peluda maquininha de matar. Tão eficiente que alguns até acusam os felinos pelo desaparecimento de pássaros e roedores. (Calma, gatófilos: a maioria dos ambientalistas diz que mudanças no clima estão por trás dessas extinções.)

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O encontro com outros gatos e o acesso à rua contribuem para que os gatos continuem meio ferozes. Mas o fator mais importante para a manutenção da selvageria é justamente uma prática para deixar gatos mais calmos: a castração. Quando castramos os gatos domésticos antes que eles se reproduzam, estamos tirando do jogo justamente os exemplares mais dóceis e amigáveis. Resultado: 85% dos acasalamentos são organizados pelos próprios felinos, entre gatas domésticas e gatos selvagens. Nossa seleção artificial parcial perpetua as características mais agressivas da espécie. No mínimo, perpetua fotos compartilhadas por amigos com a mensagem “gatinhos lindos precisando de um lar”.

MANHAS E MIADOS

Qualquer um acostumado a observar gatos diariamente sabe: eles são metódicos. Tomam banho da mesma maneira, escolhem o mesmo lugar para dormir e desenvolvem hábitos repetitivos. Um dos meus gatos, Olavo, um persa de 4 anos, só participa de brincadeiras de briga depois de correr por toda a casa, se refugiar no sofá e então ir até o canto oposto, onde é atacado. Julieta, uma vira-lata peluda de 9 anos, só sobe no colo pelo lado esquerdo. Mesmo que o lado direito esteja livre, ela saltará para a minha esquerda e então se acomodará.

Santino, um dos gatos mais marcantes que tive, era um poço de manias. Não podia ver um copo ou balde com água que o derrubava, e transformava pias em camas. Nenhuma surpresa de acordo com pesquisas recentes: gatos têm personalidades definidas.

Um estudo de 2008 da Universidade de Central Missouri, realizado com 196 donos de gatos, apontou quatro grandes perfis: sociáveis, afetuosos, mal-humorados e tímidos. O gênero não se associa a nenhum componente: machos e fêmeas podem entrar em qualquer categoria. A idade sim: gatos idosos são mais introvertidos e menos curiosos.

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Mas também pode ser porque gatos e humanos influenciem uns aos outros. Contra o estereótipo que mostra os felinos desinteressados por seus donos, um grupo de veterinários mexicanos mostrou, em 2007, que o apego entre humanos e seus bichanos é parecido com o que se vê com crianças pequenas. Na companhia de um estranho, miam menos e passam mais tempo em alerta, próximos da porta e prontos para uma fuga. E ficam mais relaxados, passeadores e brincalhões com seus donos.

Gatos aprendem até a sincronizar seus hábitos com os dos humanos. Um estudo da Universidade de Messina, na Itália, mostrou que, com o tempo, os padrões de alimentação, atividade e sono ficam parecidos com os dos donos. Até mesmo a hora de ir ao banheiro se tornou a mesma para os dois. Já os gatos criados livres mantêm os hábitos noturnos. “Há gatos extremamente apegados aos seus donos, que passam o tempo todo ao seu lado, como uma sombra felina”, diz Daniela Ramos, especialista em comportamento animal da USP. “Depois de um período de convivência intensa, a ausência do dono pode trazer sintomas de ansiedade.”

Isso, claro, sem nunca atender quando é chamado. O curioso é que uma pesquisa da Universidade de Tóquio constatou que eles reconhecem a voz do dono, mesmo quando está misturada à de outras pessoas. Mas poucos obedecem. “Gatos, diferentemente de cães, não foram domesticados para obedecer ordens”, explica Atsuko Saito, um dos autores do estudo. “Eles preferem ter a iniciativa no relacionamento com humanos.” O que eles ganham com isso? Não sabemos. Mas, se a relação com o homem ainda é nebulosa, entre eles é que a coisa complica. Em grupo, todos os gatos são pardos.

SEM MANDA-CHUVA

Nenhum estudo se aprofundou ainda na dinâmica social entre gatos domésticos. Ainda que os donos falem em líder do grupo ou macho alfa, entre os felinos não há hierarquia rígida. Não há papéis definidos. Gatos dominantes em um contexto são submissos em outros. Enquanto um gato tem privilégios sobre a comida, outro pode ter preferência por um canto do sofá – canto que pode ter outro dono, dependendo do horário. Em outras vezes, parece não haver acordo claro: ganha preferência quem chega primeiro – ou quem vence a briga.

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Essa interação negociada é novidade na evolução desses caçadores solitários, e costuma deixá-los estressados e doentes. “Os donos acham que quanto mais gatos, melhor. Mas não”, diz Daniela, a veterinária da USP. “Um macho até é capaz de formar uma aliança com uma parente próxima. Mas, quando um grande número de gatos vive junto, todos se tornam mais agressivos.” Ausência de líderes não significa ausência de grupos: o dono pode achar que tem dez gatos, quando na verdade possui quatro de uma facção e seis de outra.

Apesar das descobertas recentes, o que não falta é coisa para aprender. Ainda não se sabe por que são loucos por catnip, aquela ervinha aromática e medicinal que os faz entrar em transe. Nem porque a fêmea move seus recém-nascidos um a um, com todo o zelo, mesmo prestes a abandoná-los. O ronronar, vibração sonora produzida na laringe, é outro mistério desses felinos. Também não há resposta definitiva para a mania de querer abrir portas. Nem para o código presente na maneira como movimentam suas caudas – sabe-se, no entanto, que mantê-las erguidas costuma ser um sinal amistoso.

Será que no futuro nossa relação será mais próxima? “Até agora, eles evoluíram apenas o suficiente para a amistosidade. São capazes de viver conosco”, diz Bradshaw. “Nas próximas décadas, provavelmente chegarão à amizade.” Importante: não é verdade uma notícia que correu o mundo ano passado, dizendo que gatos não gostam de contato físico. Daniela participou da pesquisa comandada pelo veterinário inglês David Mills e esclarece: a maioria dos gatos gosta de carinho do dono. Abrace o seu para comemorar. Mas com cuidado.

Sete vidas

[10.000 a.C.]

Empregam gatos para proteger seus estoques contra ratos.

[3.500 a.C.]

Trabalho reconhecido: gatos são adorados no Antigo Egito.

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[200]

O Império Romano espalha gatos pela Europa.

[1200]

Considerados satânicos, são perseguidos. População de ratos explode e vem a peste negra.

[1850]

Após séculos demonizados, começam a se popularizar como animais de estimação.

[1950]

Criação de novas raças.

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[1985]

Superam a população de cães nos EUA. Em 2022, eles devem superar cães no Brasil.

Sentidos felinos

1. Sua AUDIÇÃO é muito mais ampla que a nossa. O gato escuta o que, por estar além da capacidade humana, denominamos infra e ultrassom.

2. Graças a uma superfície reflexiva atrás da retina, têm VISÃO excelente no escuro. Mas só enxergam tons de duas cores: azul e amarelo.

3. O TATO dos gatos é tão poderoso que aciona um sentido adicional: a vibração de seus bigodes gera um radar de curto alcance.

4. Seu OLFATO é hiperdesenvolvido: são capazes de identificar a distância uma série de cheiros que surjam simultaneamente.

5. Os gatos não precisam nem gostam de vegetais: seu PALADAR evoluiu para ser 100% carnívoro.

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