Como pássaros se guiam pelo campo magnético da Terra? A física quântica pode explicar
A Super conversou com o cientista Peter Hore, referência nos estudos da magnetorecepção, para entender esse superpoder das aves.

Todos os anos, quando o inverno chega, milhares de passarinhos conhecidos como pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula) migram do norte da Europa para o Mediterrâneo, onde as temperaturas são mais amenas. Meses depois, quando é hora de voltar para casa, eles retornam ao exato ponto de onde partiram, com precisão de GPS.
Os piscos não são os únicos pássaros migratórios. Várias outras aves vão e vêm para locais específicos, usando estratégias diversas para não se perderem – como se guiar pela posição do Sol ou das estrelas no céu, por exemplo. Mas alguns animais, como os piscos, possuem ainda outro superpoder: conseguem detectar o campo magnético da Terra, e por isso possuem uma espécie de bússola interna. Essa é chamada de magnetorecepção.
Uma questão intriga cientistas há décadas: se o campo magnético gerado pelo núcleo da Terra é tão fraquinho (entre 30 e 70 microteslas na superfície, cerca de um centésimo da força de um ímã de geladeira), como esses animais conseguem detectá-lo? Em tese, o campo precisaria ser mais forte para ter algum papel em mecanismos bioquímicos conhecidos.
Ainda não desvendamos todo o mistério da magnetorecepção, mas a resposta mais aceita pela ciência atualmente envolve fenômenos da mecânica quântica, a área da física que descreve a natureza na escala microscópica – dos átomos e das partículas ainda menores que os compõem.
Para entender esse super-poder dos pássaros, a Super conversou com Peter Hore, professor e pesquisador da Universidade de Oxford, que pesquisa o tema. Ele esteve no Brasil para a Escola de Biologia Quântica, evento realizado pela IDOR Ciência Pioneira em Paraty (RJ).
Uma bússola quântica
Experimentos feitos com pássaros em gaiolas nas décadas de 1960 e 1970 comprovaram que pássaros migratórios ficavam desorientados quando expostos a campos magnéticos, mesmo muito fracos. Esses testes também mostraram que a bússola das aves depende da presença de luz.
Em 1978, o cientista Klaus Schulten propôs que a explicação para a magnetorecepção poderia ser o mecanismo do par radical, um tipo de reação química que é muito sensível a campos magnéticos e que havia sido descoberta poucos anos antes. Foi uma proposição puramente teórica – e “muito perspicaz”, diz Hore. Afinal, ela é provavelmente a explicação para essa bússola biológica.
O mecanismo do par radical funciona mais ou menos assim: dentro do olho da ave, há uma proteína chamada criptocromo, que é formada (entre outras coisas) por duas partes: um aminoácido triptofano e uma molécula flavina-adenina dinucleotídeo, apelidada de FAD. Quando a luz azul incide sobre o criptocromo, seus fótons (as partículas de luz) transferem energia para o sistema, fazendo com que um elétron “salte” do triptofano para o FAD.
Essa transferência de elétrons resulta na formação de dois radicais livres, ou seja, de moléculas que possuem elétrons solteiros, sem um par.
Agora entra em cena a primeira particularidade da história: o elétron que mudou de lado na proteína tinha um par próprio antes de o fóton chegar. E, mesmo depois da separação, esse casal continua conectado pelo chamado emaranhamento quântico, fenômeno bizarro do mundo quântico em que duas ou mais partículas podem estar vinculadas, de modo que o que acontece com uma afeta a outra imediatamente – mesmo que elas estejam separadas no espaço.
Os radicais, então, estão emaranhados, conectados, mesmo que separados.
A segunda parte quântica tem a ver com o chamado spin dos elétrons. O spin (“giro”, em inglês) é uma propriedade que dita como aquela partícula interage com campos magnéticos – assim como a carga elétrica rege as interações com campos elétricos. Não há um análogo óbvio para essa propriedade no nosso mundo newtoniano.
Costuma-se representar o spin como uma bolinha girando, com dois valores possíveis (para um lado ou para o outro, usando setinhas para representar). Mas, apesar de útil, essa não é a melhor metáfora: não há, de fato, algo girando. O jeito mais correto, talvez, seria pensar que há pequenos ímãs colados na partícula, ou que a própria partícula é um ímã minúsculo.
Voltando para nossa explicação: os radicais livres formados podem ter spins opostos que se cancelam (↑↓), um estado conhecido como singleto, ou spins iguais (↑↑), situação que cientistas chamam de tripleto.
Quando um par radical é criado no olho do pisco, os spins dos elétrons passam a se alternar. A estrutura fica indo e vindo entre tripleto e singleto (na verdade, essa também é uma superposição, ou seja, uma combinação dos estados ao mesmo tempo, mas vamos considerar que há uma variação).
Acontece que campos magnéticos, mesmo os fraquíssimos como o da Terra, influenciam a probabilidade de atingir um estado ou outro. A proporção de singleto e tripleto varia dependendo de onde a ave está no planeta. Essa variação, por sua vez, altera as reações químicas que vão ocorrer nos olhos do pisco.
De algum modo que ainda não está claro, o desbalanceamento entre os estados tripleto e singleto causado pelo campo magnético da Terra gera um sinal que é enviado ao cérebro do pássaro e lhe diz em qual direção está o polo magnético mais próximo. É possível (mas não confirmado) que os piscos literalmente vejam o caminho em seus olhos, por meio de colorações distintas aplicadas como filtros sobre o céu à frente.
O caso dos piscos é o mais emblemático da chamada biologia quântica, um campo de estudos emergente que busca entender como fenômenos quânticos afetam diretamente os seres vivos.