De quantas piscinas você precisa para detectar um raio cósmico?
Conversamos com o físico brasileiro Edivaldo Moura, que participou de umas das descobertas mais importantes já feitas sobre raios cósmicos
Edivaldo Moura – que usa óculos discretos e tem o cabelo bem mais penteado que o meu – não me deu a impressão de ser um cara excêntrico durante nossa videoconferência, nessa quinta (21). Ledo engano: para começo de conversa, a principal ferramenta de trabalho do físico da USP é um terreno aberto de 3 mil quilômetros quadrados – em que estão distribuídos, em intervalos de 1,5 quilômetro, 1,6 mil “piscinas”, cada uma com 12 toneladas da água mais pura imaginável.
Não, ele não dá aulas de natação. Essa rede de tanques imensos – instalados no sopé dos Andes, no oeste da Argentina – na verdade é um dos maiores experimentos científicos do mundo, chamado observatório Pierre Auger, e serve para para detectar chuvas de partículas microscópicas de alta energia. Essas chuvas, por sua vez, são evidências do impacto de raios cósmicos com as camadas mais altas da atmosfera da Terra.
Explico: soltos por aí no espaço, alguns núcleos de átomos (lembra dos núcleos, com prótons e nêutrons?) viajam muito rápido e contém uma energia imensa. Eles são as balas perdidas do espaço sideral, e recebem o nome de raios cósmicos.
Alguns raios cósmicos, como os produzidos pelo Sol, têm relativamente pouca energia, e atingem a Terra com muita frequência. Por causa disso, eles são bem conhecidos pela ciência. Sabemos a partir de qual elemento da tabela periódica eles se formaram, como são as explosões que os produzem, e também como eles podem afetar o nosso cotidiano – confundindo, por exemplo, satélites de telecomunicações que estão em órbita.
Outros raios cósmicos, que têm um bilhão de vezes mais energia que os made in Sistema Solar, são mais raros. Cada quilômetro quadrado da atmosfera terrestre é atingido em média uma vez por ano por um desses – o que é muito, muito pouco.
Essas partículas mais raras e rápidas são verdadeiros tiros de canhão. Apesar de serem do tamanho de um átomo, carregam uma quantidade de energia equivalente a 1 ou 2 joules (J). Entenda assim: Joule é uma unidade de medida que costuma ser usada em situações macroscópicas, visíveis a olho nu – como a força que você faz para tirar um bebê do chão, por exemplo.
Já um átomo é muito pequeno e tem bem menos massa que um bebê – um átomo de oxigênio tem 2,67 x 10-26 kg. Ou seja: impulsionar um átomo com um joule é como levantar um bebê do chão usando três turbinas de avião. Ele vai muito, muito, rápido. Quase na velocidade da luz.
Quando um “papa-léguas” desses, perdido pelo espaço, bate aqui na atmosfera da Terra, ele dá uma bela pancada nas partículas que já estão aqui. Isso gera uma reação em cadeia, e aí uma “chuva” de partículas superaceleradas cai na Terra – inclusive sobre os tanques d’água do Pierre Auger, na Argentina, onde, além de Edivaldo Moura, trabalham outros 400 físicos de 18 países.
A luz, no vácuo, se move a mais ou menos 1 bilhão de quilômetros por hora. Nada pode ir mais rápido do que isso. Em outros meios, porém, ela não é assim tão apressada – na água, por exemplo, ela é 25% mais lenta. Por causa disso, as partículas dessa “chuva”, quando entram na água, acabam indo mais rápido do que a luz, o que gera um tipo de radiação especial que é detectada por sensores. E é assim, de maneira simplificada, que cientistas terráqueos sabem que um raio cósmico nos atingiu. É só ele mergulhar na piscina certa.
O que a ciência quer saber agora é qual tipo de evento cataclísmico é suficiente para injetar esse tanto de energia em um único núcleo atômico – um bilhão de vezes mais energia do que uma explosão solar é capaz de fornecer. “Se você descobrir a fonte astrofísica que está produzindo os raios é possível estudá-la e chegar ao mecanismo de aceleração”, explica Moura.
O único jeito de encontrar a fonte desses raios é ficar de olho no céu – ou melhor, na água – e, com base nessas chuvas de partículas de frações de segundo, calcular de qual direção os raios cósmicos que as causaram vieram. E é exatamente isso que Moura e seus 400 colegas fizeram em um artigo científico inédito, que será publicado na Science nessa sexta-feira.
“Analisamos 30 mil dessas partículas. Com isso você consegue olhar para a distribuição das direções de chegada na esfera celeste. Nos notamos que ela não é homogênea”, explica Moura, pacientemente. “Se você olha numa direção, há um fluxo mais intenso, mas na direção oposta o fluxo é o menos intenso possível. Há uma direção particular no céu onde o fluxo é máximo”.
Em outras palavras, há um pedaço de céu de onde vem os raios cósmicos mais intensos. E ele não está na Via Láctea. Essas balas perdidas, descobriram os pesquisadores, vêm literalmente de outras galáxias. Um mistério de 25 anos que chega ao fim. “Estamos agora consideravelmente mais próximos de resolver o mistério de onde e como essas partículas extraordinárias são criadas”, explica Karl-Heinz Kampert, da Universidade de Wuppertal. “Nossas observações fornecem fortes evidências de que os locais de aceleração se encontram fora da Via Láctea.”
Agora que nós sabemos de onde vêm os raios cósmicos, resta uma última questão: o que os gerou. Pode ser muita coisa – inclusive um buraco negro supermassivo, no centro de alguma galáxia muito, muito distante. Então vamos ligar o telescópio. E apontá-lo para o cantinho certo do firmamento.