A ciência por trás do déjà-vu
O maior mistério da sua cabeça tem ótimas explicações científicas.
VVocê está tranquilo, andando por aí. Olha para o lado e vê uma menina de chapéu azul e saia de bailarina enchendo um balão. Uma cena sem nada de mais. Mesmo assim, BOOM: você sabe que já viu aquilo antes. Os gestos da menina, a bexiga crescendo, a posição exata do chapéu… Tudo parece se repetir igualzinho aconteceu antes. Mas você sabe que nunca viu aquilo na vida, ou seja, está tendo um déjà–vu (“já visto”, em francês).
A sensação é mágica: você consegue prever cada “frame” da cena, como se estivesse dentro de um filme que já assistiu. Está ciente de tudo o que vai acontecer. Presente e futuro se transformam numa coisa só. Então… C’est fini. Acabou o déjà–vu.
A familiaridade com a cena vai para o ralo. Tudo fica tão frugal e imprevisível quanto antes. E o que sobra é a lembrança de uma experiência quase mística. Mas que não tem nada de única: estudos nos EUA e na Europa indicam que até dois terços das pessoas tiveram déjà–vu pelo menos uma vez na vida. Ainda assim, ele é um tema árduo para a ciência – especialmente pela dificuldade em se provocar déjà-vus em laboratório.
Mas existe um atalho para elucidar esse mistério: os campeões de déjà–vu. Morton Leeds, um estudante americano dos anos 1940, foi um deles. O rapaz tinha a extraordinária média de 1 déjà–vu a cada 2,5 dias. E passou um ano registrando as ocorrências num diário, com precisão científica: hora, descrição da cena, sensação.
Com essa base de dados, Morton concluiu que a maior parte dos déjà-vus acontecia em momentos de stress. Já era alguma coisa. “Os resultados das nossas pesquisas, com pacientes que respondem questionários sobre seus déjà-vus, mostram exatamente isso – embora não saibamos a razão. Eles também deixam claro que os mais jovens e viajados são os mais propensos a senti-los”, diz o psiquiatra Chris Moulin, da Universidade de Leeds, na Inglaterra.
Moulin é um dos poucos especialistas que se dedicam ao assunto. Para buscar respostas, garimpou clínicas psiquiátricas atrás de gente com déjà-vus ainda mais frequentes que os de Morton Leeds. Conheceu pacientes que vivem num déjà–vu eterno, num mundo surreal, onde tudo parece já ter acontecido. Tiririca assumiu a presidência? “Eu sabia, vi isso antes.” A seleção tomou de 7×1? “Sempre soube disso.”
Não é exagero. Um dos pacientes achava que já sabia tudo o que aparecia nos jornais. Outro parou de jogar tênis porque “sabia o resultado de cada jogada”. Mas, não, eles não veem o futuro. Tomografias no cérebro dessas pessoas mostram que sua massa cinzenta atrofiou no lobo temporal, justamente a parte que governa a formação de memórias.
A tese é que essas mentes acessam as lembranças na mesma fração de segundo em que elas são gravadas. E isso causa uma ilusão perene: o presente fica parecendo uma memória. É como se você vivesse o tempo todo no seu passado.
Moulin e outros pesquisadores imaginam que a chave para os déjà-vus esteja aí. Se nos casos crônicos a falta de timing do lobo temporal é permanente, nos mais moderados ela só acontece de vez em quando. Às vezes uma única vez na vida.
Mas essa não é a única explicação. Outra corrente defende que o déjà–vu estaria relacionado aos porões mais escuros do cérebro, onde ficam as memórias do que você não viu. Para comprovar essa tese, dois pesquisadores americanos tentaram provocar momentos déjà-vus.
Em 2004, psicólogos da Universidade Metodista de Dallas e da Universidade Duke, nos EUA, colocaram seus alunos para ver fotos dos dois campi universitários dessas faculdades. A tarefa era encontrar pequenas cruzes que eles sobrepuseram às imagens. Os estudantes não tinham mais de um segundo para ver cada fotografia. Eles esperavam que os alunos se concentrassem na busca pelas cruzes, sem prestar atenção nas imagens.
Uma semana depois, chamaram os alunos de volta e mostraram as mesmas imagens. Agora eles tinham de dizer quais daqueles lugares já tinham visitado. Bingo: alunos da Duke que nunca tinham ido à Metodista disseram já ter estado em cenários de lá, e vice-versa. Conclusão: enquanto procuravam as cruzes, eles guardavam as imagens dos lugares desconhecidos no inconsciente sem se dar conta, o suficiente para que elas desencadeassem “mínis déjà-vus”.
Por essa linha, ter um déjà–vu significa acessar memórias nunca antes registradas pela consciência. Imagine: colocaram um extintor de incêndio perto da entrada do seu prédio. Só que você viu o objeto apenas de relance, sem realmente notar sua existência. Aí, no dia em que você olhar conscientemente para o extintor, pode ter uma forte impressão de já tê-lo visto antes. O ponto é que o seu inconsciente já viu mesmo. E vem o déjà–vu.
As teorias não param por aí.
Cenários fantasmas
A próxima história começa com um geneticista americano, Susumu Tonegawa, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Ele estudava um traço bem conhecido da mente: aquilo de um fragmento qualquer de memória trazer cenários completos do passado. Sabe quando você sente algum cheiro que lembra a infância e sua cabeça praticamente viaja no tempo? Então.
Tonegawa descobriu que essa sensação nascia numa área específica do cérebro. E imaginou que com os déjà-vus seria a mesma coisa, que eles tivessem uma morada no cérebro – no caso, um lugar minúsculo dentro do lobo temporal chamado giro dentado.
Para testar a hipótese, ele criou um ratinho de laboratório com essa parte do cérebro desregulada. Depois colocou-o numa caixa com um rato normal. E começou a dar choquinhos nos pés da dupla. A cada descarga eles ficavam paralisados. Então colocou os dois em outra caixa, parecida com a primeira, mas sem os choques. Como Tonegawa esperava, os roedores estavam condicionados: paralisaram logo que entraram na caixa, como se a tortura tivesse recomeçado.
O rato normal, no entanto, logo percebeu que não estava acontecendo nada. E relaxou. Mas o transgênico não: continuou paralisado, como se os choques estivessem acontecendo. O rato confundia memória com realidade. Para Tonegawa, isso revelava a mecânica secreta dos déjà-vus. Ele concluiu que o giro dentado capenga fez o animal perder a capacidade de diferenciar uma caixa da outra e entrar numa espécie de déjà–vu eterno.
Mas eis que um novo estudo apresentado na Conferência Internacional da Memória em 2016 questionou os achados de Tonegawa. A pesquisa realizada pela Universidade de St. Andrews foi pioneira em observar o cérebro por meio de ressonância magnética no momento exato em que um déjà–vu acontecia.
A ressonância mostrou que a região do lobo temporal descrita por Tonegawa não ficava ativa durante o déjà–vu. Quem mais trabalhava era o lobo frontal, geralmente associado com a tomada de decisões. Os cientistas acreditam que o lobo frontal funciona como um antivírus. Ele faz uma varredura nas suas memórias, checando se existe alguma inconsistência, para evitar que você armazene um “arquivo corrompido”. O déjà–vu seria um aviso de que um problema foi encontrado, isolado e resolvido.
O principal autor do estudo, Akira O’Connor, acha mais plausível que o déjà–vu seja um alarme consciente de uma discrepância sendo corrigida do que um erro de memória. Até porque pessoas com mais de 60, 70 anos têm pouquíssimos déjà-vus – mas cada vez mais confusões nas suas lembranças. Quanto mais velhos ficamos, menos o cérebro consegue fazer essa automanutenção.
Poderia ser a explicação definitiva. Ou uma das explicações possíveis. A maior parte dos pesquisadores imagina que o déjà–vu seja como dor de estômago: tem várias causas – as que você viu aqui mais outras tantas ainda a descobrir.
No fim, a resposta mais bacana continua sendo a da Trinity, de Matrix – o filme que mostra o planeta dominado por máquinas que mantêm os humanos presos numa realidade virtual (a Matrix). Em uma cena, o herói Neo olha para um gato preto, sente que já o viu antes e diz:
– Uau, Trinity. Tive um déjà–vu…
E ela acaba com o mistério:
– Um déjà–vu é uma falha da Matrix, Neo. Acontece quando estão consertando alguma coisa…