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Enguia-lobo: O marido ideal

A primeira reação diante da enguia-lobo é o medo. Com o tempo, porém, o homem aprendeu que a aparência assustadora esconde a docilidade de um dos mais fiéis amantes do fundo do mar.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 jul 1993, 22h00

Neil G. McDaniel

 

 Os raios de luz dançavam ao sabor da corrente, cortando a densa “mata” de algas. Para quem mergulha na estonteante claridade das águas oceânicas do Canadá, na costa do Pacífico, o espetáculo sempre começa cedo. Junto às pedras da ilha Vancouver, o luxuriante tapete de criaturas deixa sem fôlego o visitante: anêmonas formam colchas com as cores do arco-íris, estrelas-do-mar passeiam entre corais cor-de-rosa e esponjas-marinhas alaranjadas completam a paisagem do extraordinário jardim submerso.
Logo abaixo dessas águas rasas e iluminadas, porém, o chão ganha a forma de um canyon, cortado por profundas e largas gargantas escuras. Seguindo seus contornos irregulares. Desci a uma profundidade de 20 metros, até um grupo de enormes pedras redondas amontoadas à beira de um precipício. Mas meu objetivo não era continuar mergulhando rumo ao fundo. Mal me aproximei um pouco mais das rochas, um bando de pequenos peixes amarelos e azuis, com grandes olhos curiosos, parou para observar. O que eu procurava estava perto, mas também não eram eles.
Meu alvo se escondia na base das grandes pedras: um casal bizarro, de aparência tão repulsiva que a reação imediata de qualquer mergulhador ao vê-lo é recuar velozmente. Anos atrás, quando fiz o primeiro contato com as enguias-lobo, foi assim que reagi. Na época, eu não sabia ainda que esses fascinantes seres, apesar da aparência, são criaturas de hábitos pacíficos e tolerantes, a ponto aprenderem, com o tempo, a confiar e aceitar a companhia de humanos em seu reino aquático.
Assim que me avistou, o casal deixou a pequena caverna que lhe serve de lar e veio em minha direção, ondulando os imponentes corpos, de até 2 metros de comprimento, como se fossem cobras. A recepção, no entanto, foi amigável: gentilmente, nadaram um pouco ao redor e depois me cutucaram com a cabeça, saudando-me como quem encontrava um velho amigo que não viam há muito tempo.

Em vez de escamas, a pele lisa e macia.

Em retribuição, quebrei a concha de um ouriço-vermelho que passava por perto e puxei para Dora a rica víscera cor-de-laranja. Deixando de lado os bons modos à mesa, os dois avançaram sobre o quitute, mastigando os espinhos pontiagudos que, imagina-se, deveriam proteger o molusco contra predadores.
Acabando o festim, relaxaram. Pude então tocar em seus corpos lisos e os dois pareciam estar gostando do carinho. Ao contrário da maioria dos peixes, enguias-lobos não têm escamas, mas apenas uma pele de couro macio. Superficialmente, sua aparência é semelhante à de uma enguia, embora possuam nadadeiras peitorais em forma de remo e outras características específicas que fazem delas representantes da família dos peixes-lobos. Uma pequena estirpe de seres robustos e alongados, que inclui espécies como o peixe-lobo do Atlântico e o exótico “gato-geléia” da Europa, dono de enormes dentes e de nadadeiras dorsais sustentados por espinhos.
Como o primo europeu, as enguias-lobo da costa do Pacífico (Anarhichthys ocellatus) também são dotadas de mandíbulas poderosas. Os caninos, porém, ficam localizados na parte da frente da boca, enquanto os molares se alinham, em cima e embaixo, por toda a extensão dos maxilares.
É com eles que os alimentos são triturados, e nem mesmo conchas escapam ilesas à força dessas prensas.
Nos machos, o tamanho do corpo pode superar os 2 metros de comprimento, mas não muito: o maior encontrado tinha 2,4 metros. Em compensação, suas cores são variadíssimas e, mais intere, mais interessante, mudam de acordo com a idade do animal. Jovens, com até 75 centímetros de comprimento, normalmente são alaranjados, salpicados com círculos marrons. À medida que vão amadurecendo, a pele começa a puxar para o cinza e as manchas marrons do corpo se tornam escuras, ao mesmo tempo que as da cabeça desaparencem. O macho diante de mim é um “senhor”, a cabeça em tom branco e as manchas dorsais, que às vezes lembram olhos, são menos marcantes. A fêmea, por seu lado, é cinza-escuro, e as manchas do corpo são bem definidas.
Macho e fêmea podem ser reconhecidos igualmente pelo tamanho e formato da cabeça. Além de maior, a cabeça do macho costuma ser arredondada, a boca com lábios carnudos, queixada proeminente e, para completar, um calombo entre os olhos que mais parece um narigão. Tem ainda feridas, em geral de aspecto repulsivo, por toda a fronte, resultado de brigas territoriais com outros valentes. Já a fêmea possui a cabeça mais angular e o queixo não se destaca do rosto. Ela é menor e raramente alcança 2 metros.

– Durante anos, eles foram considerados devassos e perigosos.

Eletricidade Tropical

Ele é comprido e afilado como as enguias. Do mesmo modo que elas, não tem escamas e possui uma nadadeira ao longo da cauda. Com tantas semelhanças, é natural que a classificação popular confunda os dois animais e costume chamá-lo de enguia-elétrica. Só que o poraquê (Electrophorus electricus) não é. Na verdade seus primos mais próximos são a carpa e o bagre. Mas enquanto estes só mordem, o poraquê usa uma arma especial para caçar, choques elétricos de até 650 volts, suficiente para atordoar um homem. Daí seu nome: para os índios da América do Sul, ele é Pora’ Kê, em tupi “aquele que entorpece”.
Habitante das águas quentes das bacias dos rios Amazonas e Orenoco, o poraquê pode chegara quase 3 metros de comprimento. Quatro quintos, dessa extensão, no entanto, formam apenas sua cauda, justamente a parte do corpo onde estão localizados os órgãos elétricos – placas derivadas do tecido muscular, percorridas por nevos espinhais, cujo pólo negativo está na parte da frente e o positivo na ponta traseira do animal. Como uma bateria, para que seu choque seja eficiente, o poraquê precisa fechar o circuito elétrico, ou seja, encostar os dois pólos na informada presa. Mas assim como as baterias, ele também descarrega e, para recuperar sua energia precisa de um bom descanso. É por isso que os pescadores de poraquê costumam colocar cavalos da água quando querem capturá-lo: os peixes descarregam a eletricidade nos eqüinos e podem então ser pegos sem o risco de choques “ que entorpecem”.

Muitos mitos e pouca verdade sobre eles

Durante muitos anos, as enguias-lobo foram tidas como animais de hábitos devassos, machos perseguidos fêmeas em busca de prazer e não de companhia. Mas, como sempre acontece com reputações baseadas em noções superficiais, isso tem pouco a ver coma realidade. Observações metódicas em aquário ou de mergulhadores naturalistas mudaram que tinham. Hoje, sabe-se que, na idade adulta, o macho faz gênero do marido ideal: gosta de ficar em casa, é um companheiro inseparável e fiel, e os casais podem morar junto anos a fio. O que não é pouco, para um espécie cuja longevidade média é estimada entre dez e quinze anos, embora não se saiba com segurança quando tempo eles vivem e alguns pesquisadores defendam a tese de que possam sobreviver duas ou mais décadas.

– Muitos costumam ter marcas de feridas espalhadas por todo o rosto devido a brigas constantes

A defesa do Território é tarefa dos machos

Tamanha estabilidade conjugal, porém, talvez ajude a explicar o apego que enguias-lobo têm por seu quintal, vivendo na mesma toca por muitos e muitos anos. E com certeza vêm desse sedentarismo as violentíssimas batalhas entre machos adultos nas disputas territoriais: intrusos ou posseiros nunca são perdoados. Para muitos estudiosos, o couro macio, os calombos entre os olhos e mesmo as mandíbulas salientes seriam adaptações morfológicas a uma vida de guerreiro, obrigado a combates constantes.
É lógico que estas últimas são importantíssimas também para outra tarefa vital: saciar uma gula irrefreável. Fazendo bom uso de seus poderosos dentes e mandíbulas, enguias-lobo são capazes de estraçalhar com apenas uma dentada refeições bem embaladas, envoltas por resistentes couraças ou pontiagudos espinhos, como mariscos, caranguejos, caracóis e ouriços. Não é à toa que, para encontrar a toca dos casais, a primeira coisa que se procura coisa que se procura são locais com montes de cacos de conchas espalhados pelo chão. Nisso, aliás, ela lembram muito seus vizinhos, os polvos.
No inverno, a vida familiar se transforma. Chega a época da cria e a fêmea põe mais de 10 000 ovos dentro da caverna, todos envoltos por uma massa protetora esbranquiçada e disforme. Para aninhar a futura cria, a mãe costuma abraçá-la com o corpo, fazendo pequenos movimentos, de tempos de água. Nessa época, os machos também revela todo seu companheirismo: muitas vezes, eles envolvem a parceira com o corpo, mantendo apenas a cabeça junto à entrada da toca para poder expulsar intrusos. Mergulhadores já viram esses guardiões deixarem sua casa, pegar com os dentes estrelas-do-mar desavisadas e levá-las, vivas, para longe.
Os ovos levam pelo menos quatro meses para eclodir, e nesse processo a dedicação dos pais será, mais uma vez, essencial, pois eles ajudam os filhotes, ora tocando levemente as cassas para rompê-las, ora sugando a massa que as envolve. O resultado são pequeníssimos seres, medindo entre 30 e 35 milímetros, que vêm ao mundo marcados pelo destino para enfrentar um árduo caminho até a maturidade. O primeiro instinto dos recém-nascidos é nadar rápido em direção à superfície, onde ficarão boiando ao sabor da corrente por cerca de seis meses. Dotados de afiados caninos, os microscópicos jovens de pigmentação alaranjada perseguirão com voracidade larvas de peixes e crustáceos para se alimentar e, bem nutridos, podem chegar aos 30 centímetros de comprimento.
Depois desse longo período de desenvolvimento, os que escaparem à sanha dos predadores maiores retornarão ao fundo do oceano, onde demorarão algum tempo para se adaptar ao tortuoso ambiente das pedras e, finalmente, encontrar uma gruta para se instalar. Na vida adulta, são poucos os inimigos naturais que cruzam o caminho das enguias-lobo. Os principais deles, focas, lesões-marinhas e, óbvio, o homem. Na juventude, no entanto, acabam devorados aos borbotões como iguarias por incontáveis peixes.

Vivem sempre em meio às formações rochosas

Distribuídos numa extensa faixa que liga o Mar do Japão à costa oeste do continente americano, as enguias-lobo parecem ser maleáveis na escolha do habitat. Algumas foram capturadas em profundidades de mais de 200 metros, embora em geral elas sejam encontrados nas águas rasas, em meio a formações rochosas e cavernas submarinas, como o amigável casal que visitei.
Mas o frio de 8ºC das águas geladas canadenses já começavam a penetrar no meu traje de neoprene e vi que os marcadores indicavam que as reservas de ar-comprimido do meu aqualung se aproximavam do fim. Era hora de voltar ao barco. O casal percebeu que eu iria partir e tomou o caminho de casa, de onde, com sua grande cabeça à porta da gruta, o macho me acompanhou com os olhos até que eu perdesse de vista. Felizmente, a mortandade da espécie não é mais uma prática comum. Pelo menos, entre mergulhadores bem-informados, para quem as enguias-lobo deixaram de ser monstros assustadores e temidos: quando se encontram com alguma delas, eles agora sabem que estão diante de um animal pacífico, tímido e intrigante, sobre o qual ainda temos muito a aprender.

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