Entrevista: Por que homeopatia é placebo – e não deve ser paga pelo SUS
Falamos com a bióloga Natalia Pasternak e o jornalista Carlos Orsi, do Instituto Questão de Ciência, sobre os problemas de financiar uma terapia sem base científica com dinheiro do Estado.
Natalia Pasternak é bióloga, professora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e especialista em genética de bactérias. Carlos Orsi é jornalista científico, autor do livro Pura Picaretagem – em que explica como gurus esotéricos e palestrantes motivacionais se apropriam erroneamente de conceitos da física quântica para escrever auto-ajuda. Eles são ambos diretores do Instituto Questão de Ciência, inaugurado no final de 2018 para pressionar as autoridades a levar evidências científicas em consideração ao formular políticas públicas. Você pode ler a revista do Instituto aqui.
Em maio, eles conversaram com a SUPER sobre a homeopatia: como ela se tornou tão popular, o que a torna um simples placebo e por que não devemos oferecê-la no sistema público de saúde. Essa entrevista faz parte da matéria “O Novo Obscurantismo”, capa da edição de julho. Leia aqui.
A homeopatia se baseia em dois princípios. Um é o de que semelhantes curam semelhantes: a crença de que o remédio ideal para um sintoma é alguma substância que cause esse sintoma. Por exemplo: se você tem rinite alérgica, a ingestão de uma pequena quantidade de cebola supostamente faria seus olhos pararem de lacrimejar. O antraz, toxina produzida pela bactéria Bacillus anthracis que causa feridas na pele, seria capaz de curar espinhas, furúnculos etc.
O segundo princípio é o da potenciação, isto é: a substância é diluída em água, álcool ou açúcar. Muitas e muitas vezes. A diluição mais comum é a chamada C30, o que significa que a substância ativa foi diluída 30 vezes na proporção de 100 para 1. “Para conter uma única molécula de substância ativa, a pílula homeopática nessa diluição teria que ter o diâmetro equivalente à distância entre o Sol e a Terra [149,6 milhões de quilômetros]”, diz Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exeter, na Inglaterra. “Ou seja: os remédios homeopáticos mais comuns não contêm uma única molécula de princípio ativo.”
Com isso em mente, diversos países já reconheceram que a homeopatia é um mero placebo e cortaram a verba dedicada ela em instituições públicas (o caso mais recente é o da França, que vai parar de financiar a prática em 2021).
O Brasil vai na contramão: a homeopatia é considerada uma especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 1980, e é financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2006 – bem como a acupuntura. Desde 2017, outras terapias alternativas que sequer são reconhecidas pelo CFM também passaram a ser oferecidas. A lista inclui aromaterapia, reiki, florais de bach, cromoterapia, biodança etc. São, ao todo, 29. Hoje, 9,3 mil estabelecimentos do SUS em 3,1 mil municípios (entre postos de saúde, hospitais etc.) oferecem pelo menos uma terapia.
Por que a homeopatia se tornou tão popular?
Natalia Pasternak (NP): A homeopatia surgiu no começo do século 19, quando a prática médica vigente era a sangria (cortes na pele para escoar sangue propositalmente) e os laxantes. Os médicos da época acreditavam que todas as doenças eram causadas por um desequilíbrio nos fluidos de alguém – chamados humores. Quando esses humores estavam em desequilíbrio, a pessoa ficava, ao pé da letra, mal humorada – isto é, doente.
Agora imagine que, nesse contexto, surge a homeopatia – que receita água. É bem melhor do que sangrar ate a morte ou desidratar na privada. Ela era muito menos deletéria que a sangria, e, nesse contexto, foi um grande sucesso.
Para saber mais
Essa é a mesma etimologia da palavra “humor” em sua acepção atual – de estado de espírito, ânimo ou disposição. Hipócrates (485 a.C.), grego que é tido como pai da medicina ocidental, elegeu os quatro principais: o sangue, o catarro, a bile negra e a bile amarela. Graças aos ensinamentos de Hipócrates, a sangria – que foi responsável pela morte de figuras célebres como George Washignton – foi praxe na Europa por 2 mil anos, essencialmente sem alterações.
Por que tantos pacientes se sentem melhor após apelar para a medicina alternativa?
NP: O efeito placebo é real. As pessoas não acham que estão se sentindo melhor – elas realmente estão se sentindo melhor. A dor diminui.
Além disso, há o fenômeno da regressão a média. Principalmente no caso de doenças crônicas, há picos de dor seguidos de vales. O paciente procura ajuda quando está no pico da dor. Aí ele toma o remédio homeopático, o floral etc. e em seguida, pela progressão natural da doença, a dor diminui. A dor ia diminuir de qualquer jeito, mas o paciente associa a diminuição ao remédio alternativo. Isso é evidência anedótica, é uma impressão pessoal. Não é um teste controlado, com um número grande de voluntários.
Carlos Orsi (CO): No caso da acupuntura, há uma literatura razoável afirmando que há efeito analgésico. Mas a questão é outra: será que esse efeito só se manifesta quando o método da acupuntura é aplicado à risca? Um simples beliscão não funcionaria? Se espetassem em um lugar do corpo que não é ditado pela tradição chinesa, não faria o mesmo efeito? Todos os testes de acupuntura que foram feitos inserindo as agulhas em pontos falsos dão o mesmo resultado dos que utilizam os pontos corretos. Quando são utilizadas agulhas falsas, também.
Se a medicina alternativa é alternativa, por que alguns praticantes tentam legitimá-la cientificamente?
NP: A ciência funciona na prática, e as pessoas sabem que funciona. Vivemos um cotidiano rodeado de ciência e tecnologia. Ter o respaldo da ciência, portanto, valida o tratamento. A medicina alternativa queria muito ser medicina de verdade. Ela quer respaldo científico para ter legitimidade.
Alguns defensores da medicina alternativa, por outro lado, admitem que não existem estudos científicos válidos comprovando a eficácia desta ou daquela terapia. Eles argumentam que a ciência ainda não avançou o suficiente para desvendar o mecanismo de cura. Que a ciência “não sabe explicar”.
Por que a homeopatia foi reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)?
CO: Uma pesquisa no arquivo da Folha de São Paulo indica que foi uma resolução adotada pelo CFM na década 1980. Meu palpite é de que ele foi adotada por pressão corporativa. No Brasil, a homeopatia geralmente é praticada por médicos formados.
NP: Lembrando que os conselhos federais não são órgãos técnicos, são órgãos políticos. Essa decisão pode ter sido tomada sem a obrigação de embasamento teórico.
E quanto à inclusão da homeopatia e de outras terapias alternativas no Sistema Único de Saúde (SUS)?
NP: Os cidadãos que utilizam o SUS não são obrigados a saber quais são as evidências científicas em que se apoiam as terapias oferecidas. É obrigação do Estado verificar se uma terapia é eficaz antes de adotá-la.
PCO: O Estado precisa de critérios para decidir se vale ou não investir dinheiro público em uma terapia. Um critério é que ela ofereça o melhor custo-benefício possível. Eu adoraria passar no posto de saúde e tratar minha ansiedade com uma garrafa de Jack Daniels, mas os recursos são finitos.
Há outro problema: quando os praticantes chamam de medicina integrativa e complementar, em vez de alternativa, eles estão tentando escapar da crítica de que os pacientes abandonam o tratamento convencional. É claro que nem todos abandonam. Mas estudos feitos nos EUA mostram que uma parcela razoável faz isso.
Para saber mais
Um dos estudos a que Carlos Orsi se refere é da Universidade Yale e está disponível aqui. Ele revela que, dos pacientes de câncer que utilizam medicina não-convencional, 7% recusam intervenção cirúrgica, 34,1% recusam quimioterapia, 53% recusam radioterapia e 33,7% recusam intervenções hormonais. Entre pacientes que optam só pela medicina convencional, essas porcentagens são respectivamente 0,1%, 3,2%, 2,3% e 2,8%.
Oferecer terapias alternativas no SUS dá legitimidade a elas. Se há uma terapia convencional que não é tão agradável – como a quimioterapia –, e uma terapia que não dói nada, com um médico que conversa e é simpático, você se sente acolhido pela segunda opção, é claro. Mas essa opção é baseada na ideia de que o seu corpo reage a formas misteriosas de energia cuja existência não é comprovada. Já a quimioterapia é baseada no fato de que seu corpo é composto de células, e que essas células se multiplicam de determinadas formas. Essas são visões contrastantes sobre o funcionamento do corpo humano; quem abraça uma não tem motivo para não abandonar a outra.
Pedimos ao SUS que enviasse artigos científicos que comprovassem a eficácia de terapias alternativas, e recebemos dezenas. Quais são os problemas nesses artigos?
Periódicos sérios só publicam artigos científicos que passam por peer review (em português, “revisão por pares”, procedimento em que outros especialistas da mesma área leem o texto antes da publicação para atestar sua qualidade). Além disso, as pessoas que editam dos periódicos tem que ser competentes naquela área. O que garante que o periódico seja bom é a qualidade dos editores e dos revisores.
A qualidade dos periódicos, na prática, é medida pelo fator de impacto: o número de vezes em que os artigos publicados naquele periódico são citados em outros artigos. Os primeiros lugares em fator de impacto são a Nature, a Science etc. Em segundo lugar, vem os periódicos que têm menos impacto não porque são de menor qualidade, mas porque abordam áreas mais específicas.
Os periódicos em que foram publicados os artigos da lista do SUS não têm um fator de impacto bom. Além disso, eles apresentam uma alto índice de autocitação, ou seja: os autores citam a si próprios e a outros autores da mesma “panelinha” para tentar aumentar artificialmente o fator de impacto.
Ninguém de fora da “panelinha” cita porque os artigos são de má qualidade. Não são baseados em testes clínicos duplo-cegos aleatorizados com grupo placebo, que é o padrão ouro para aprovar um medicamento nos periódicos de medicina respeitado. Ninguém cita os artigos da Homeopathy além dela mesma.
CO: Outro problema é que muitos dos artigos que saem nos periódicos de medicina alternativa são exploratórios. Eles nunca passam para a fase confirmatória. Ou seja: são estudos para verificar se existe algum efeito que mereça ser investigado a fundo – e não para de fato investigar um efeito a fundo.
No desenvolvimento de um medicamento comum, no instante que o estudo exploratório sugere alguma coisa, você passa a realizar estudos confirmatórios cada vez mais rigorosos. O que acontece na medicina alternativa é repetir os estudos exploratórios. Quando chegam os confirmatórios, há um gráfico que mostra que, quanto maior o rigor do estudo, menor é o efeito constatado.