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Nós vencemos

O Homo sapiens teve que batalhar muito para garantir sua hegemonia no planeta. A descoberta de novos fósseis revela que várias espécies de hominídeos conviveram e disputaram um lugar no futuro

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 30 nov 2000, 22h00

Rodrigo Cavalcante

Para Homo sapiens como você e eu sempre pareceu natural a idéia de que somos o ápice da evolução no planeta. É como se fôssemos uma Ferrari que a natureza só conseguiu produzir experimentando muito com uma série de calhambeques. A maior prova disso estaria no fato de que somos os únicos seres com inteligência superior, estamos no topo da cadeia alimentar e reinamos soberanos na Terra. Peixes, insetos e mesmo outros mamíferos compõem grupos de animais de espécies que têm que competir entre si. O homem é um dos raros gêneros que só tem uma espécie.

Nos últimos 25 000 anos tem sido assim. Nenhuma outra espécie animal conta com condições de ameaçar o nosso domínio. Tempo mais do que suficiente para encararmos com naturalidade essa exclusividade e esse privilégio. (A ponto de considerá-los uma bênção divina.) Mas 25 000 anos são só a ponta do iceberg da evolução humana, com seus 6 milhões de anos. A descoberta recente de novos fósseis na África vem revelando que estar sozinho tem sido a exceção e não a regra na espécie humana. “Sabemos hoje que a evolução do homem não tem nada daquele gráfico em escadinha que aprendemos no colégio”, diz Walter Neves, paleantropólogo da USP. “Nossa história é semelhante à de qualquer outro animal, cheia de ramificações e espécies vivendo juntas ao mesmo tempo.”

Até pouco tempo, imaginar várias espécies de hominídeos coexistindo na Terra era algo tão fantasioso quanto a convivência do humano Han Solo com o wookie Chewbacca em Guerra nas Estrelas. O que os pesquisadores descobriram é que em diversos períodos da história humana, essa coexistência de espécies existiu.

No norte do Quênia, em um sítio de escavação de fósseis às margens do Lago Turkana, os paleantropólogos descobriram que pelo menos quatro tipos de hominídeos disputavam a hegemonia do planeta há cerca de 1,8 milhão de anos. Vestígios de fósseis do Australopithecus boisei, do Homo rudolfensis, do Homo habilis e do Homo ergaster datados desse período, comprovam que eles andaram sobre a mesma savana e é bem provável que tenham se cruzado. Como foi esse encontro? É difícil dizer. Mas os pesquisadores sabem que “convivência” não é a palavra mais adequada para definir o que deve ter ocorrido. O que se sabe é que, a não ser pelo fato de serem bípedes e usarem ferramentas (toscas, feitas de pedra), eles não tinham quase nada do que hoje define o homem moderno.

Desde a década de 70, os paleantropólogos sabem que antes de qualquer vestígio cultural, como a troca de alimentos entre grupos, ou anatômico, como aumento do cérebro, o traço mais importante que marca o início da história do homem é termos nos tornado bípedes. Foi graças a Lucy, o esqueleto de Australopithecus afarensis com 3,2 milhões de anos achado na Etiópia em 1974 (batizado em homenagem à música dos Beatles “Lucy in the Sky with Diamonds”), que os pesquisadores concluíram que andar sobre dois membros foi a mudança decisiva que nos separou dos outros macacos. O esqueleto de Lucy, na época o mais antigo fóssil de nossos ancestrais já encontrado, era semelhante ao do homem moderno. Mas seu crânio era mais parecido com o de um chimpanzé: o cérebro de Lucy tinha o tamanho de uma mexerica.

A hipótese que melhor explicava por que um dia nos levantamos e deixamos a mata para passear na savana era baseada em mudanças na paisagem do Leste e do Sul da África que ocorreram há 15 milhões de anos. Foi por esse período que a placa de terra que hoje conhecemos por África se arrastou em direção ao Oriente Médio. Nesse vaivém, vulcões se formaram e explodiram transformando o que antes era verde em mata seca de savana. O surgimento da savana quente foi o que tornou a bipedia um bom negócio. Ao sair da posição curvada dos grandes primatas e ficar em pé no sol escaldante ao meio-dia, os primeiros hominídeos reduziram em até 40% a exposição dos seus corpos ao nada ameno sol equatorial. Ampliamos também nossa visão, olhando o horizonte para ver de antemão a chegada de predadores e inimigos. Com as mãos livres, ficou mais fácil catar alimentos, desenvolver ferramentas, caçar.

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Mas essa hipótese, como tantas outras na história das teorias da evolução, vem sendo questionada. Em 1994, o antropólogo Tim White, da Universidade da Califórnia, encontrou, também na Etiópia, fósseis com 4,4 milhões de anos. Como esses fragmentos de ossos são mais primitivos do que os de Lucy, eles chamaram as novas espécies de Ardipithecus ramidus. (Ardi, na língua local significa chão e ramidus, raiz.) Ao lado dos fósseis, ossos de animais, madeira petrificada e outros vestígios indicam que a região era cheia de árvores quando o ramidus vivia por lá. Se a espécie realmente tiver sido bípede como os estudos indicam, as teorias para o surgimento da bipedia em que acreditamos até agora podem ir por água abaixo.

Menos de um ano depois da descoberta do ramidus, a paleantropóloga Meave Leakey – mulher do legendário caçador de fósseis Richard Leakey, autor de best-sellers como The Sixth Extinction – encontrou no Quênia fósseis de outra espécie, o Australopithecus anamensis, um pouco mais jovem: 4,2 milhões de anos. O anamensis era certamente bípede. E o número de ancestrais vem aumentando desde então. No ano passado, foi a vez do Australopithecus garhi, um elo provável que liga espécies primitivas como o afarensis aos primeiros humanos.

A cada nova descoberta, surgem novas evidências de que umas espécies estavam acompanhadas de outras. E de que esse número de hominídeos que disputavam a primazia de virar aquilo que hoje chamamos de espécie humana, deve aumentar. “Essa quantidade de espécies ainda é pequena em relação ao que devemos encontrar daqui a alguns anos”, diz Ian Tattesall, antropólogo do Museu Americano de História Natural e autor do livro Extinct Humans, lançado em agosto deste ano nos Estados Unidos. Para ele, o quebra-cabeças da evolução vai se mostrar maior e rico em detalhes do que os velhos modelos que explicavam nossas origens jamais supuseram. Um dos modelos que estão ficando obsoletos é o de espécie única, que até hoje faz com que alguns pesquisadores relutem em aceitar que as savanas tenham sido ocupadas concomitantemente em tempos primevos por várias espécies de hominídeos. Essa tese ganhou força nos anos 60 e era supostamente baseada numa lei ecológica: duas espécies com adaptações muito similares não podiam coexistir. Sendo assim, os hominídeos apareciam numa sucessão linear, que vinha do mais primitivo ao mais avançado, e o homem moderno seria o último degrau dessa escada. Uma visão reconfortante para o antropocentrismo – que já tinha sofrido um abalo no século passado, quando descobriu, por meio das teorias de Darwin, que o verdadeiro Adão não devia ser mais bonito do que um macaco prego.

Se nosso passado foi tão rico em diversidade de espécies, por que somente nós, Homo sapiens, sobrevivemos? Que diferencial nos garantiu sobrepujar os hominídeos que disputavam conosco o direito de continuar existindo?

Nenhum paleantropólogo de bom senso arriscaria responder assertivamente a essas perguntas. Mas é bastante provável que as respostas venham a ser dadas por um único evento: a chamada explosão criativa do paleolítico superior. Apesar de a biologia molecular estimar que o Homo sapiens tenha surgido há cerca de 200 000 anos, foi só por volta de 45 000 anos atrás que ele desencadeou essa revolução tecnológica. Trata-se de um período de acelerado desenvolvimento da linguagem e da produção de ferramentas. Em conseqüência, a capacidade de se comunicar e de guerrear evoluiu muito mais entre os Homo sapiens do que entre as outras duas espécies – o Homo erectus na Ásia e o Homem de Neanderthal na Europa e no Oriente Médio – que disputavam com eles a hegemonia do planeta.

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Os pesquisadores acreditam que, em vários momentos, o Homo sapiens deve ter tentado sair da África e entrar na Europa pelo Oriente Médio – mas foi provavelmente barrado pelos Neanderthais, que eram mais fortes. Em Israel há diversos sítios com vestígios de que sapiens e Neanderthais viveram próximos. Há quem acredite que o fóssil de uma criança encontrado em Portugal no ano passado possa ser de um filho de um neandertal com sapiens, apesar de a maioria dos pesquisadores achar impossível chegar a essa conclusão a partir dos ossos de uma única criança.

Logo depois da explosão criativa, nossa espécie teria conseguido entrar na Europa. Seguramente à custa das novas ferramentas e da sua capacidade de comunicação. (Imagine um Neanderthal tentando avisar outro, com grunhidos, da chegada de um grupo de ataque organizado.) Ninguém sabe como os Neanderthais se extinguiram. E nem os erectus, que eram ainda mais atrasados. Não há vestígios suficientes que comprovem que essas espécies tenham sido exterminadas pelas novas armas e capacidades do Homo sapiens. É possível que essa extinção tenha ocorrido indiretamente pela disputa de recursos naturais.

O que dá para dizer é que o surgimento do que chamamos de cultura – que começou exatamente há 45 000 anos com a explosão criativa – marcou também o próprio surgimento do homem moderno. Essa é a grande esquina da história que determinou que o Homo sapiens seria a primeira espécie animal a deixar de depender da evolução natural para se desenvolver. Daquele momento para cá, mas especialmente daqui para diante, poderá até haver algumas mudanças leves na configuração da nossa espécie. Mas, para o bem e para o mal, estamos aqui para ficar.

Para saber mais

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Na livraria: Evolução Humana

Roger Lewin, Editora Atheneu, São Paulo, 1999

Extinct Humans

Ian Tattersall e Jeffrey Schwartz, Westview Press, 2000

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rcavalcante@abril.com.br

Olha quanta gente

A caminhada da evolução humana deixou de ser uma linha contínua e se transformou numa estrada em que, em muitos momentos, várias espécies competiram por um lugar ao sol
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SEIS MILHÕES DE ANOS

Aqui viveu o provável ancestral comum do homem e do chimpanzé

CINCO MILHÕES DE ANOS

Ardipithecus ramidus

QUATRO MILHÕES DE ANOS

Australopithecus anamensis

TRÊS MILHÕES DE ANOS

A grande família

Pelo menos nos últimos três milhões de anos, a coexistência entre espécies foi a regra e não a exceção na história de nossos ancestrais.

Australopithecus afarensis

Australopithecus africanus

Australopithecus aethiopicus

Australopithecus garhi

DOIS MILHÕES DE ANOS

Últimos primos

Por volta de dois milhões de anos atrás surgiram as primeiras espécies (em verde) da família que daria origem ao moderno Homo sapiens, que reina sem concorrentes há apenas 30 000 anos.

Australopithecus boisei

Australopithecus robustus

Homo habilis

Homo rudolfensis

Homo ergaster

UM MILHÃO DE ANOS

Homo antecessor

Homo heidelbergensis

Homo erectus

Homo neanderthalensis

Homo sapiens

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