O Observatório de Arecibo – famoso por Carl Sagan e Joy Division – é desativado
Mais que uma capa de álbum, essa antena de 300 metros de diâmetro deixou uma impressão digital humana no cosmos – um indício de nossa existência, que permanecerá no vácuo após a extinção do Homo sapiens.
Se você é vivo e mora na Terra, já viu uma camiseta com a ilustração abaixo. É a capa do álbum Unknown Pleasures (1979), do Joy Division. As 80 linhas – que originalmente eram pretas em um fundo branco, e não contrário – representam 80 pulsos de rádio emitidos pela estrela de nêutrons PSR B1919+21 a 51 anos-luz da Terra e captados pela antena de 304 metros de diâmetro do Observatório de Arecibo, em Porto Rico.
The promotional poster for Joy Division’s album, Unknown Pleasures pic.twitter.com/FUtKKYB6Nb
— Eric Alper 🎧 (@ThatEricAlper) November 17, 2020
O telescópio começou a ser desmontado na última quinta (19) após dois cabos com importante função estrutural terem arrebentado – um em 10 de agosto e outro em 7 de novembro deste ano. Engenheiros do Exército americano averiguaram que uma obra de reforma e revitalização seria extremamente insegura, já que não é possível garantir que outros cabos não vão arrebentar durante a reposição dos que cederam. O Arecibo também foi danificado pelo Furacão Maria em 21 de setembro.
A capa que simboliza o pós-punk não foi a única contribuição desse imenso equipamento astronômico à cultura pop. Também na década de 1970, o astrônomo Frank Drake, junto de Carl Sagan e outros especialistas, redigiu uma mensagem endereçada a civilazações extraterrestres tecnológicas. Ela continha informações sobre a estrutura da molécula de DNA, a posição da Terra no Sistema Solar, a anatomia humana etc.
Essa mensagem foi codificada em forma de ondas de rádio e disparada pelo Arecibo em 16 de novembro de 1974 – data da reinauguração do telescópio após uma reforma. O alvo foi o aglomerado de estrelas M13, a 25 mil anos-luz da Terra. Até então, a humanidade era apenas uma observadora passiva do cosmos. Nesta data, deixamos uma impressão digital no tecido do espaço-tempo – uma evidência arqueológica de nossa existência, que permanecerá circulando no vácuo muito após a extinção de nossa espécie.
O telescópio seria retratado posteriormente no livro (que virou filme) Contato, escrito por Sagan.
The Arecibo Message is 46 light years away from Earth today, farther than any of the 800 nearest stars. It is travelling at the speed of light on its way to the Hercules Globular Cluster (M13). @NAICobservatory @SETIInstitute #SETI #Technosignatures #Astrobiology pic.twitter.com/2VKAwSBUIH
— Prof. Abel Méndez (@ProfAbelMendez) November 16, 2020
Pode soar estranho que uma estrela emita ondas de rádio em intervalos regulares – ondas de natureza idêntica às usadas para transmitir a mensagem a potenciais alienígenas espertinhos. Mas embora a palavra “rádio” esteja associada às telecomunicações no imaginário popular, ela significa muito mais do que isso para os astrônomos.
As ondas que usamos para transmitir notícias (rádio), esquentar comida (micro-ondas), enxergar (luz visível), fazer imagens do interior do corpo (raios X) e criar o Hulk (raios gama) na verdade são todas variantes da mesma coisa: ondas eletromagnéticas. A diferença é que cada uma dessas modalidades tem um comprimento diferente – sendo o comprimento a distância entre dois picos da onda. Quando menor o comprimento, mais energia a onda carrega. As ondas de rádio são longas e preguiçosas, os raios X são curtos e energéticos.
Muitos astros emitem ondas eletromagnéticas em todos esses comprimentos; captá-las permite obter informações que a luz visível, sozinha, não oferece. Por exemplo: se um corpo celeste está disparando raios X em quantidade razoável, é porque ele gera um calor e uma luz muito superlativos: não estamos falando de estrelas, e sim de núcleos galácticos ativos, abastecidos pela energia potencial gravitacional de buracos negros supermassivos.
O telescópio de Arecibo foi construído para observar ondas de rádio, e por isso não tinha lentes ou espelhos: consisitia em um enorme disco de 304 metros de diâmetro, deitado no berço esplêndido da mata nativa de Porto Rico, uma antiga colônia espanhola no Caribe que permanece desde o século 19 sob o guarda-chuva dos EUA – ainda que tenha autonomia administrativa e não seja considerada um estado (como é o caso do Havaí).
A estrela de nêutrons PSR B1919+21 foi descoberta pela astrônoma Jocelyn Bell Burnell em 1967 na Inglaterra. Foi o primeiro astro do tipo observado. Na época, ela e seu supervisor pensaram que os pulsos de rádio, por sua regularidade, fossem uma mensagem extraterrestre. Eles apelidaram a observação de Little Green Men (“pequenos homens verdes”). Posteriormente, esse tipo de estrela foi batizado de pulsar.
An image of the signal from this first pulsar (collected by @NAICobservatory) was later used by Joy Division for the cover of their 1979 album Unknown Pleasures https://t.co/jURTdhuVQn pic.twitter.com/hehIXoVIbw
— Paul Coxon (@paulcoxon) November 28, 2017
O gráfico da PSR B1919+21 que foi parar na capa do Joy Division foi gerado pelo estudante de doutorado Harold Craft em 1970, usando o telescópio de Arecibo. Estrelas de nêutrons – o nome contemporâneo dos pulsares – são cadáveres de estrelas de alta massa. Uma estrela gera energia fundindo átomos em seu núcleo. Isso gera átomos mais pesados. No final de sua vida útil, a estrela, quase sem combustivel, pega esses átomos mais pesados e os funde novamente, gerando átomos ainda mais pesados.
Quando os átomos fundidos atingem uma certa massa (correspondente ao elemento ferro na tabela periódica) a energia necessária para fundi-los é superior à energia liberada pela fusão. E aí o saldo total de energia fica negativo. Sem liberar energia, a estrela não consegue conter a gravidade e desaba sobre si mesma.
Essa compressão gera um núcleo minúsculo e extremamente denso, que pode colapsar em um buraco negro ou – caso a massa total seja inferior a um certo limite – formar uma estrela de nêutrons.
Uma estrela de nêutrons é tão espremida que funciona na prática como um enorme núcleo atômico. Todos nós somos formados por núcleos atômicos mantidos a uma distância segura entre si por nuvens de elétrons. Nas estrelas de nêutrons, não há nuvens: apenas os núcleos, achatados contra outros núcleos.
A maior parte do volume do átomo – e portanto, do volume do seu corpo e de todos os objetos – consiste justamente na nuvem de elétrons. Sem a contribuição desse volume, as estrelas de nêutrons ficam minúsculas para os padrões cósmicos: têm um diâmetro de algumas dezenas de quilômetros, equivalente a uma cidade como São Paulo. E como a maior parte da massa do átomo está no núcleo, elas também atingem uma densidade altíssima, que corresponde a bilhões de elefantes concentrados em uma caixa de fósforo.
Em certo sentido, a estrela de nêutrons PSR B1919+21 é muito parecida com Ian Curtis, vocalista do Joy Division: ambos morreram em circunstâncias trágicas, mas suas mensagens ainda reverberam pelo cosmos. Os sinais da estrela chegaram à Terra sem querer na década de 1970, de carona em ondas de rádio, após viajar por mil anos-luz. Já os sinais de Ian Curtis viajam pelo cosmos até hoje, em transmissões que um dia alcançaram inúmeros aparelhos de rádio pelo mundo – e hoje viajam pelo Sistema Solar.
Que o Arecibo seja eterno como Curtis e a estrela: sua antena pode ser desmontada, mas suas contribuições à astronomia vão reverberar por séculos – e a mensagem que ele transmitiu, um dia, pode alcançar outros ouvidos, de outras vidas além da nossa.