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Para que serve esta meleca?

Cientistas descobrem os usos secretos do muco produzido por lesmas, lampreias e micróbios. Além de ajudar caracóis a subir paredes, a gosma pode cicatrizar feridas de seres humanos e despoluir a água.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 Maio 2000, 22h00

Rafael Kenski

Só quem já passou pela experiência sabe como é horrível dar de cara com a trilha brilhante de muco deixada por uma lesma. É de vomitar. Entre um ugh! e outro, você se pergunta para que tanta meleca num bicho só. Há anos os cientistas tentam responder a essa questão. Até recentemente, achava-se que a principal função da gosma produzida pelos moluscos era facilitar a locomoção dos animais. Só que deslizar sobre esse composto de água, proteínas e açúcares é uma forma muito dispendiosa e pouco eficiente de deslocamento. “Algumas espécies consomem 70% da sua energia para sintetizar o muco”, afirma à SUPER o biólogo Mark Davies, da Universidade de Sunderland, na Inglaterra. Os cientistas já haviam descoberto que elas conseguiam se locomover mesmo quando incapazes de produzi-lo. Para algo mais a substância nojenta haveria de servir.

Foi o próprio Davies quem matou a charada. Ele percebeu que a lapa (Patella vulgata) – um molusco protegido por uma concha – usa a trilha de muco para armazenar sua comida: ele come as algas que ficam grudadas no rastro gelatinoso. Depois de um passeio, tudo que precisa fazer é voltar pelo mesmo caminho e aproveitar o banquete. “Certas lapas mantêm uma verdadeira horta com as suas algas favoritas”, diz o biólogo.

As trilhas também ajudam caramujos e lesmas a achar o rumo de casa depois de uma viagem em busca de alimento. É verdade que eles não vão longe: no máximo 10 metros. E podem servir até de ponto de paquera. Às vezes um caracol entra no rastro de outro em busca de um parceiro para o acasalamento. Se der sorte, o encontro poderá terminar com o casal preso a um galho por densos fios de baba, durante um demorado ato sexual. Aaargh…

Mas não é só para os moluscos que a meleca tem utilidade. Nos últimos meses, diversas pesquisas estão mostrado que os seres humanos também podem se aproveitar da substância. Mark Davies descobriu que o muco das lapas consegue absorver metais pesados, como o cobre e o chumbo, de águas poluídas, como se fosse um filtro. Uma medição feita por ele mostrou que a geléia reduz em 1 200 vezes a quantidade desses metais na água. No Brasil, pesquisadores da Universidade de São Paulo estão produzindo uma pomada cicatrizante à base de catarro de escargot – que tem a mesma composição química. Vire a página, se agüentar, e descubra outros prodígios da gosma.

O fundo do mar já foi pura gosma

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Pode parecer pouco nobre, mas os ancestrais mais remotos de todos os organismos da Terra se desenvolveram em um mar de muco. Os cientistas acreditam que, entre 3,5 bilhões de anos e 550 milhões de anos atrás, o leito dos oceanos era inteiramente coberto por uma camada de gosma. Toda essa geléia foi provavelmente feita pelos primeiros habitantes do planeta, as bactérias, que reinaram sozinhas no mundo por mais de 2 bilhões de anos. Como não havia predadores, os micróbios se multiplicavam aos trilhões, formando colônias gigantescas – com consistência de meleca.

A disneylândia dos microrganismos acabou por volta de meio bilhão de anos atrás. Nessa época, no Período Cambriano (de 570 a 505 milhões de anos atrás), surgiram nos mares os primeiros seres complexos, como os trilobitas. E eles tinham muita fome. “Com material orgânico sobrando, os animais do Cambriano começaram a devorar todas as colônias de bactérias”, disse à SUPER o geólogo Bruce Simonson, da Universidade de Oberlin, no Estado americano de Ohio.

O que sobrou da gosma primordial virou uma camada sólida de sedimentos, encontrada em algumas regiões da Austrália. Simonson foi para lá no ano passado e encontrou em águas profundas uma camada de microrganismos fossilizada de 2,5 bilhões de anos. “Isso mostra que a gosma pode ter recoberto todo o oceano, e não apenas as áreas mais próximas à superfície”, conclui o geólogo.

Campeão de muco

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O mar não é mais feito de gosma. No entanto, ainda abriga o animal mais gosmento do mundo. A lampreia, um peixe que se alimenta de bichos mortos, pode produzir até 20 litros de meleca em segundos, se provocado, para se defender. Seu muco combina proteínas com fibras para criar a gosma mais espessa e viscosa que existe (veja infográfico ao lado).

Ao estudar a composição das fibras, o biólogo canadense Douglas Fudge descobriu que elas conseguem absorver tanta energia quanto outras substâncias biológicas ultra-resistentes, como a teia de aranha. A diferença é que, enquanto as teias possuem uma estrutura complexa – que os cientistas nunca conseguiram copiar em laboratório –, as fibras do muco da lampreia são bem mais simples. Isso pode resultar na descoberta de um polímero biológico incrivelmente forte no futuro, para ser usado na produção de tecidos ou plásticos. Portanto, da próxima vez que você encontrar uma trilha de lesma pela frente, contenha o ugh! Você ainda vai ouvir falar muito de todas as maravilhas dessa meleca.

rkenski@abril.com.br

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Algo mais

As maiores lesmas do mundo não moram em jardins – ainda bem. São as lesmas-do-mar, moluscos que podem chegar a quase meio metro de comprimento. Esta aqui ao lado tem 17 centímetros e mora no litoral japonês. As cores vivas servem para afastar predadores.

A baba que cura

Um acidente abriu uma ferida no pulso. O que fazer? O engenheiro florestal Pedro Pacheco, da Universidade de São Paulo, em Pirassununga, teve uma idéia pouco comum: passar um preparado de gosma de caracol no corte. “Já tinha lido pesquisas sobre propriedades medicinais do muco e sabia que os índios o usavam como cicatrizante”, contou Pacheco. Por incrível que pareça, o tratamento deu certo. O machucado fechou em metade do tempo que levaria normalmente, sem receber nenhum outro remédio. “O muco tem uma proteína que estimula a regeneração dos tecidos”, explica Pacheco. Ele agora se prepara para registrar uma pomada cicatrizante feita com base nessa substância.

Defesa pegajosa

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A lampreia se defende expelindo o muco mais viscoso do reino animal.

A lampreia é um peixe em forma de cobra que tem quase 150 glândulas espalhadas pelo corpo. Em situações de estresse, como sob a perseguição de um tubarão predador, esses órgãos liberam na água dois tipos de células, as que produzem muco e as que produzem fibras.

Em contato com a água, as células de muco se rompem. A mucina, principal proteína da gosma, absorve líquido e incha rapidamente, adquirindo consistência de gelatina. Produz 20 litros em segundos.

O outro tipo de célula produz uma longa fibra de 20 centímetros de comprimento, enrolada como um novelo. Na água, ela se desenrola.

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A gosma e a fibra se misturam e se embaraçam. O resultado é uma gosma consistente que envolve a lampreia e sufoca a mordida do tubarão, permitindo-lhe fugir dela. Quando é engolido, o muco induz o predator a vomitar, e a caça escapa ilesa.

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