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Uma nova morte

Ela era a única certeza que tínhamos na vida. Agora, os avanços da ciência estão criando dúvidas que nunca tivemos antes e revolucionando o jeito como encaramos a morte

Por Leandro Narloch
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 30 nov 2005, 22h00

Em 1993, a assaltante Trisha Marshall, de 28 anos, foi internada num hospital da Califórnia com um tiro na cabeça e grávida de 17 semanas. Na UTI, a falência do seu cérebro foi diagnosticada. Seguindo os padrões médicos e legais, Trisha foi considerada morta. Mas o corpo demoraria a sair do hospital. A pedido da família, os médicos optaram por mantê-lo respirando por aparelhos até que o filho nascesse. E ele nasceu. Foi dado à luz por mulher clinicamente morta havia 3 meses.

A história de Trisha mostra um avanço espetacular da ciência. Graças a aparelhos que reproduzem a função dos órgãos vitais, a medicina consegue manter funcionando, por tempo indeterminado, um corpo com quadro irreversível. Quanto mais olhamos para as conseqüências dessa novidade, porém, mais fica claro que ainda não aprendemos a lidar com ela. Como a pesquisa em células-tronco e o aborto exigem uma resposta sobre quando começa a vida, assunto da edição de novembro da Super, os avanços da medicina atingem a outra ponta do debate: um corpo que funciona é um corpo vivo? Quando exatamente morremos?

Basta lembrar as polêmicas que esquentaram 2005 para perceber os problemas causados pela dificuldade de responder a essa pergunta. Em março, a decisão sobre manter ou não a alimentação de Terri Schiavo, que vivia em estado vegetativo havia 15 anos, parou os EUA e envolveu do presidente Bush à Suprema Corte. Em Franca, interior de São Paulo, Jeson de Oliveira tentou na Justiça autorização para a eutanásia do filho, inconsciente e desenganado pelos médicos por causa de uma doença degenerativa. No cinema, os ganhadores do Oscar de melhor filme e melhor filme estrangeiro, Menina de Ouro e Mar Adentro, falam sobre a vontade de morrer. E dão a dica: a postura que adotamos diante da morte está passando por uma profunda e barulhenta transformação.

A história da morte

Dúvidas sobre o momento da morte surgiram no século 18, quando relatos de pessoas enterradas vivas assustavam a Europa. Em 1740, o anatomista francês Jacques-Bénigne Winslow publicou artigo levantando dúvidas sobre como comprovar que alguém estava de fato morto. E em 1785, o médico britânico William Tossach provou que um homem afogado (e dito morto) poderia ser ressuscitado ao encher seus pulmões de ar.

Nesse período foram inventados os mais bizarros métodos para verificar o óbito. A técnica do médico francês Jean Baptiste Vincent Laborde consistia em puxar a língua do defunto por 3 horas. Mais tarde, ele inventaria uma máquina à manivela que executava a tarefa. Para a elite da época, o medo de ser enterrado vivo justificava qualquer esforço. Hannah Beswick, que morreu no final do século 18, deixou uma generosa quantia para que seu médico não deixasse que a enterrassem por 100 anos. Todos os dias, ele e duas testemunhas examinavam o corpo embalsamado à procura de sinais de vida. Como nada acontecia, o médico transferiu o cadáver para um caixote, que ele abria uma vez por ano. E, quando morreu, passou a missão a outro médico. Somente em 1868 o corpo da senhora Beswick foi sepultado.

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Mas a maioria dos médicos da época mantinha-se fiel à antiga técnica de verificação de morte: a putrefação. Na Alemanha, cidades construíam câmaras mortuárias onde os cadáveres eram vigiados e mantidos até começarem a apodrecer. Apenas em 1846 começaram a ser estabelecidos os critérios para determinar o fim da vida. Naquele ano, o francês Eugene Bouchut ganhou um prêmio da Academia de Ciências de Paris pelo “melhor trabalho sobre os sinais da morte e as formas de prevenir sepultamentos prematuros”.

Sua proposta: observar durante 10 minutos 3 sinais da morte – ausência da respiração, dos batimentos cardíacos e da circulação. “Essa ficou conhecida como a tríade de Bouchut e passou a ser adotada pela medicina de um modo geral”, diz Marcos de Almeida, professor de medicina legal e bioética da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi assim que o coração ganhou status de órgão principal da vida e sua parada, uma indicação definitiva da morte.

Mas já no final do século 19 o legista Paul Brouardel verificou que o coração de pessoas decapitadas continuava a bater por até uma hora. Concluiu, então, que a morte não era uma questão de coração e pulmão, mas de sistema nervoso central. Ou seja, é impossível que um indivíduo sobreviva sem cabeça, ainda que seu coração funcione. A observação de dano ao sistema nervoso central foi somada à tríade: se, sob um forte feixe de luz, a pupila estiver dilatada, quer dizer que as funções neurológicas não existem mais. É sinal de morte.

Mortos-vivos

O último suspiro do batimento cardíaco como critério de vida aconteceu nos anos 50, com a fabricação dos respiradores artificiais. Em 1964, o Bird Mark 7 ficou famoso por ser o primeiro produzido em larga escala – o aparelho é usado ainda hoje nos hospitais públicos do Brasil. Ninguém duvida da importância do respirador: ele reduziu a mortalidade de recém-nascidos de 70% para 10% e foi o primeiro passo para a criação das Unidades de Terapia Intensiva, as UTIs, concluídas na década de 1970 com equipamentos que reproduzem a função de órgãos.

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Aparelhos de diálise substituíram os rins, aspiradores deram conta das secreções. As batidas do coração passaram a ser controladas por estímulos elétricos do marcapasso e reanimadas pelo desfibrilador. O conceito de morte ficou ainda mais bagunçado. “Os médicos se deram conta de que poderiam manter quase indefinidamente os pacientes com os aparelhos”, diz Marcos de Almeida. Mas a medicina sabia também que quem tivesse danos irreversíveis no cérebro ficaria para sempre na cama, inconsciente e dependente das máquinas. Por isso, alguém precisava determinar o que fazer com aquelas pessoas meio mortas, meio vivas. Em 1957, um grupo de médicos franceses foi ao Vaticano pedir ajuda. O papa Pio 12 respondeu 3 dias depois. “A morte não é território da Igreja”, afirmou no texto O Prolongamento da Vida. “Cabe aos médicos dar sua definição.”

Em 1968, um comitê foi formado na Universidade de Harvard para estabelecer critérios mínimos de morte. O grupo determinou que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte total. A idéia é que existe um ponto a partir do qual a destruição das células do tronco cerebral é de tal ordem que o indivíduo não tem mais como se recuperar. Esse momento engloba toda a atividade encefálica, não apenas lesões que deixam uma pessoa em coma ou inconsciente para sempre. Desde então, o padrão de Harvard vem sendo adotado pela maioria dos países, inclusive o Brasil.

A formação do comitê em 1968 não foi por acaso. Além da evolução dos aparelhos de suporte de vida, transplantes de rins estavam sendo realizados com sucesso e, meses antes, o primeiro transplante de coração havia sido feito na África do Sul. Diagnosticar a morte com o máximo de antecedência, portanto, possibilitaria manter tecidos e órgãos intactos. E viabilizaria os transplantes. Para entender o porquê, o melhor é acompanhar uma pessoa clinicamente morta desde sua chegada a um hospital até seu corpo ficar rígido e gelado.

Por dentro da UTI

Um jovem chega à UTI de um pronto-socorro com trauma de crânio causado por um acidente de carro. É um caso parecido com o que matou Ayrton Senna, em 1994. O paciente respira por aparelhos desde que foi atendido pela ambulância, mas os médicos logo se dão conta de que seu caso é irrecuperável. Mesmo assim, ninguém se atreve a dar o diagnóstico de morte cerebral. “Somente profissionais da neurologia podem protocolar esse tipo de óbito”, diz a neurocirurgiã Margarida Conceição, que diagnosticou mais de 300 casos assim.

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Quando entra na sala, o neurocirurgião começa a buscar algum reflexo cerebral. O primeiro exame consiste no velho teste da sensibilidade das pupilas, seguido de uma puxada suave do tubo de respiração do paciente. Em pessoas com o cérebro ativo, essa ação provoca tosse ou vômitos. Depois, o médico faz o teste dos “olhos de boneca”, virando a cabeça para o lado para ver se os olhos acompanham o movimento ou ficam parados, como se fossem de brinquedo.

Outro exame é ainda mais estranho: colocar soro gelado em um dos ouvidos do paciente. Se os olhos desviarem para o lado contrário da água, ainda existe algum sinal de vida cerebral. Se nenhuma das tentativas der resultado, passa-se ao teste de apnéia: o médico desconecta o ventilador que mantém a respiração para ver se há tentativa de buscar ar por conta própria. Se a taxa de oxigênio no sangue começa a baixar, os médicos rapidamente reconectam o aparelho. Mas certos de que o tronco encefálico, responsável pelo ato involuntário da respiração, não funciona mais.

Pausa. Apesar de realizado em todo o mundo, o teste de apnéia é contestado por algumas vozes. O exame, exigido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para a comprovação de falência encefálica, é apontado como capaz de causar a morte em vez de diagnosticá-la. Diversos estudos, como o trabalho publicado por uma equipe da Universidade do Estado de Nova York na revista Archives of Neurology, apontam os riscos da apnéia, que poderia provocar queda de pressão, reduzindo o fluxo sanguíneo no cérebro e, eventualmente, matando pacientes recuperáveis.

E mesmo defensores do teste de apnéia reconhecem que não há consenso sobre o exame, como mostrou estudo do holandês Eelco Wijdicks publicado na revista Neurology. Mas os argumentos são contestados pelo CFM. “Os critérios em uso correspondem aos conhecimentos científicos atuais”, diz Solimar Pinheiro da Silva, coordenador da comissão do CFM que elaborou a resolução sobre morte encefálica. “O teste é o último a ser feito. O paciente é monitorado todo o tempo e recebe oxigênio na traquéia.”

Além da apnéia, há exames toxicológicos: é preciso ter certeza que o sistema nervoso não está em pane pela ingestão de álcool, barbitúricos ou analgésicos. Também é feita uma angiografia, a radiografia de 4 vasos cerebrais em busca de algum fluxo sanguíneo. Se as respostas são negativas, o trabalho do neurocirurgião está encerrado, mas não, ele ainda não pode assinar o óbito dizendo que o jovem do carro está morto. Pela lei, todo o procedimento tem de ser repetido pelo menos 6 horas depois. Enquanto isso, a polêmica continua.

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“O único propósito do atual diagnóstico de morte cerebral é obter órgãos viáveis para transplante”, diz o anestesista britânico David Hill, que participou do encontro Sinais da Morte, promovido em fevereiro pela Academia Pontifícia de Ciências, no Vaticano. O simpósio patrocinado pela Igreja aconteceu como parte de uma tentativa de discutir o conceito de morte cerebral criado pelo comitê de Harvard.

Para Hill, os atuais critérios de diagnóstico não são benéficos ao paciente, mas apenas para o receptor dos órgãos – ele preferiria ver a apnéia substituída pela hipotermia, que resfria o corpo para 33 ºC por até 24 horas na tentativa de recuperar alguma atividade cerebral. Esse tratamento, porém, é considerado caro, pode deteriorar a qualidade do órgão que será doado e tem a eficácia colocada em dúvida pela maioria dos médicos.

Quando a repetição do exame também apontar morte encefálica, um grupo especializado em falar com famílias sobre a doação de órgãos é destacado para o caso. Se os parentes concordarem, médicos voltam para a UTI, onde o corpo, legalmente morto há algumas horas, respira por aparelhos, tem o coração batendo e órgãos vitais perfeitos. Aquela pessoa nunca mais vai sentir, ver ou ter algum traço de pensamento racional, mas, quando o bisturi penetrar na pele, é possível que ela dê um pulo. Parece filme de terror, não? Trata-se do “efeito lazaróide” (de Lázaro, aquele que Jesus ressuscitou). Não significa que a pessoa teve alguma dor: é apenas um reflexo da medula espinhal. Por isso, alguns médicos costumam aplicar anestesia geral antes da operação. Mas peraí: se a pessoa já está morta, por que anestesiá-la?

Em 2000, a revista do Royal College of Anaesthetists, de Londres, recomendou usar anestesia em pacientes com morte encefálica. No Brasil, entretanto, essa prática não é costume. “Doadores de órgãos não precisam de anestesia, pois estão em coma aperceptivo, arreativo e irreversível”, diz Maria Cristina Ribeiro de Castro, vice-presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Quando um anestesista participa da operação, é para manter a saúde dos órgãos. “Ele se concentra na hidratação, oxigenação, pressão arterial e sobretudo nos hormônios que ativam os órgãos e que, com a morte encefálica, a hipófise deixou de produzir”, diz Elias David Neto, supervisor da equipe de transplante de rins e pâncreas do Hospital das Clínicas de São Paulo. “É como operar um paciente comum, mas que não sente dor.”

Após a retirada dos órgãos, os aparelhos são finalmente desligados. O sangue começa a parar, o coração dá as últimas batidas, as células deixam de se reproduzir. Depois de 3 horas, ainda é possível fazer um braço se contrair com estímulos elétricos. Só então o corpo do jovem que se acidentou com um carro fica duro, pálido e frio, aquilo que as pessoas geralmente aceitam como morte.

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Diante do fim

A discussão para determinar a morte existe também quando não há órgãos em jogo, mas o fim da vida é apenas questão de tempo. Trata-se da antiga polêmica da eutanásia. Mas em casos assim, as questões técnicas viram um difícil dilema moral. É correto deixar de socorrer um bebê que ainda respira? O valor sagrado da vida existe mesmo quando só possibilita mais sofrimento? Devo ajudar a matar meu irmão que não quer ficar para sempre imóvel numa cama? A questão é especialmente difícil para os médicos. São profissionais que passam 7 anos aprendendo a lutar contra a morte para descobrir, na UTI, que às vezes devem agir a favor dela. “Ficamos entre duas opções: sermos assassinos ou torturadores”, diz Almeida, da Unifesp.

A lei no Brasil encara como homicídio a eutanásia, o ato deliberado de apressar o fim de quem está morrendo. A ortotanásia, a “morte no momento certo”, é considerada omissão de socorro e tem pena de 1 a 6 meses de prisão. Apesar disso, a ortotanásia é freqüentemente praticada. O médico retira os aparelhos e deixa o doente seguir seu curso de morte. Trata-se do modo mais comum de se morrer nas UTIs pediátricas do país. Dois estudos publicados em março pela Revista Brasileira de Pediatria, sobre 167 casos ocorridos em 2002 nas principais UTIs pediátricas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, mostram que pelo menos 36% das crianças morreram após a “limitação do suporte de vida”, expressão que reúne decisões como não entubar, não reanimar e até retirar o suporte vital.

O estudo observou que pelo menos 30% desses casos são omitidos ou reportados contraditoriamente nos registros dos hospitais. Mas há quem veja na própria legislação fundamentos para apressar a morte quando o tratamento só prolonga o sofrimento. “O 1º artigo da Constituição assegura a dignidade da pessoa humana”, afirma Lívia Pithan, professora de Direito da PUC-RS. “Esse direito deve ser estendido até os últimos momentos. Casos como o de Terri Schiavo poderiam ter esse tratamento legal.” A chamada “obstinação terapêutica”, ato de prolongar o tratamento sem benefícios ao paciente, é condenado até pela Igreja. Na mesma alocução de 1957, Pio 12 afirmou que, “quando houver desesperança, os médicos não devem se valer de instrumentos extraordinários para prolongar indefinidamente a vida”.

Mesmo com amparo legal e religioso, ainda faltam critérios para estabelecer quando é lícito suspender o suporte de vida. Em julho, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo propôs resolução considerando ético limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida do doente terminal. “Queremos que os médicos discutam com a família, assim como quando vão realizar uma cirurgia, a questão da morte”, diz Reinaldo Ayer de Oliveira, conselheiro responsável pela resolução. Hoje, em somente 9% dos casos a família é informada antes do desligamento dos aparelhos.

Como ainda não se sabe direito o que é certo ou não, a questão acaba sendo resolvida por um fator bem prático: grana. Dependendo se o plano de saúde estiver ou não pagando a diária da UTI, a recomendação da família pode mudar de “doutor, faça o possível para mantê-lo vivo” para “só queremos que ele não sofra mais”. O dinheiro também influencia a decisão dos médicos. Se o paciente atendido por um convênio estabiliza em estado vegetativo, é comum ser encaminhado para casa, o que a família nem sempre recebe como boa notícia. Será preciso alguém sempre por perto para dar banho, retirar as fezes e secar a pele com lâmpadas para evitar escaras. “A época em que os pacientes em coma mais infeccionam, precisando voltar ao hospital, é o Natal”, diz Margarida. “Muitas pessoas largam o paciente no hospital, desligam os telefones e só voltam depois do Ano Novo.”

Morrer com qualidade

Imagine a cena. Desenganado pelos médicos, sabendo que tem câncer por todo o corpo, você adquire doses letais de barbitúrico. Vai para casa e espera o tempo passar. Quando a dor ficar insuportável, antes de não conseguir mais ficar em pé, você reúne família e amigos, coloca as músicas preferidas e desfruta um bom jantar. Depois, toma o veneno que guarda há meses e dá adeus ao mundo.

Mortes assim já acontecem 3 vezes por mês no estado de Oregon, EUA. Desde 1997, uma pessoa em estado terminal pode receber instruções sobre como praticar suicídio quando a dor for insuportável. Esse caso é exemplo de um debate que cresce: a qualidade de vida do paciente e da família durante a morte. “Saber que a morte está próxima pode, sim, ser encarado como uma vantagem”, afirma o psicólogo hospitalar Cedric Nakasu. Se conseguir aceitar o prognóstico dos médicos e parar de lutar desesperadamente contra a morte, a pessoa pode aproveitar o tempo que lhe resta resolvendo problemas pendentes e se despedindo. Tendo uma morte serena. “O paciente tem chance de recordar, reviver e ressignificar seu passado. Esses 3 ‘erres’ definem uma boa morte”, diz Nakasu.

A idéia de qualidade de vida nos momentos finais também foi influenciada por outra constatação. Baseada em entrevistas com dezenas de pacientes terminais, a psiquiatra americana Elisabeth Kübler-Ross concluiu que a maioria deles sofre, além da dor física, com a separação da família, problemas financeiros, vergonha e até inveja de quem não está doente. “Num hospital, a pessoa deixa de ser ela mesma, de ter suas coisas, roupas e funções para se tornar apenas um paciente, tendo que obedecer regras, horários para dormir e comer que não são os seus”, diz Nakasu.

É por isso que muita gente prefere ficar em casa com a família a ganhar uns dias ao lado de outros doentes, equipamentos e enfermeiras. No Brasil, alguns estados já traçam leis nessa direção. Em São Paulo, o paciente terminal pode decidir quando e onde quer morrer. Uma lei sancionada pelo então governador Mário Covas em 1999 estabelece o direito de um doente recusar o prolongamento de sua agonia e optar pelo local da morte. O próprio Covas, que morreu de câncer, beneficiou-se dessa lei. O papa João Paulo 2º fez a mesma escolha. Silenciado pelo mal de Parkinson, morreu em seu apartamento no Palácio Apostólico.

Enquanto a retirada de aparelhos e o direito de arbitrar sobre a própria morte começam a ser considerados normais, a eutanásia permanece um tabu no Brasil. Não que ela não aconteça. “Muitos médicos, diante de pacientes terminais que sofrem dores atrozes, aplicam sedativos acima do limiar tóxico, sabendo que isso resultará em morte”, diz Almeida, da Unifesp. “Mas isso, é claro, nunca aparece nos registros.” Em alguns casos, a ação de matar o paciente produz menos sofrimento que o ato de não prestar socorro. O caso da americana Terri Schiavo é o melhor exemplo. Após os tribunais americanos decidirem pela retirada dos tubos de alimentação, Terri levou 13 dias para morrer de fome e de sede. “Seria bem mais ético aplicar uma injeção letal para reduzir não o sofrimento dela, que era incapaz de sentir, mas da família e dos médicos que a trataram por tanto tempo”, afirma Almeida.

Essa opinião toca num ponto crucial da cultura cristã: sempre preferimos omissões a ações. Em vez de aplicar uma injeção letal para acabar com a vida de um doente irreversível, achamos mais ético retirar seus aparelhos e deixar que ele siga seu curso “natural”. “Qual a base ética dessa distinção?”, pergunta o filósofo australiano Peter Singer, no livro Rethinking Life and Death (“Repensando a Vida e a Morte”, sem edição brasileira). “Tendo optado pela morte, devemos nos certificar de que ela se dê da melhor maneira possível.”

Publicado em 1994, o livro defende que nossos fundamentos éticos não estão adaptados ao mundo real. E que o valor sagrado atribuído a qualquer vida humana, um dos traços mais forte da nossa cultura, está se diluindo em favor de uma vida com menos sofrimento. Por exemplo: costumamos afirmar que a vida começa se não na concepção, algumas semanas depois dela. Mas podemos concordar com interromper essa vida para evitar o sofrimento de um feto anencéfalo e de sua mãe ou com a pesquisa de embriões se a pesquisa com células-tronco fizer aleijados andar.

Segundo Singer, esse jeito de pensar está fazendo parte das decisões diárias sem nos darmos conta. Em vez das regras tradicionais como “não matar” ou “crescei e multiplicai-vos”, médicos, doentes e familiares estão preferindo “responsabilize-se pelas conseqüências de seus atos” e “respeite o desejo de viver e morrer”. Ou seja: o caráter sagrado da vida pode estar ruindo. Se Singer estiver certo, discussões sobre o começo e o fim vão continuar. Mas ao menos será mais fácil entender por que vida e morte, as duas questões fundamentais do ser humano, estão causando tanta polêmica.

Revolta

Tudo o que Heiner Schmitz, 52 anos, queria era falar sobre sua situação. “Ninguém questiona como me sinto”, disse semanas antes de ser vítima de um tumor. “É frustrante ver todos evitando o assunto. Será que não entendem? Eu vou morrer!”

Mágoa

Waltraud Bening queria morrer em casa, mas o marido não concordou com a situação. Magoada, se internou e proibiu o companheiro de visitá-la. Um dia, mandou que chamassem o marido. Ele veio. E ela morreu na manhã seguinte.

Silêncio

É difícil saber o que se passou na cabeça de Michael Föge nos últimos dias de sua vida. Um tumor cerebral lhe tirou a capacidade de falar. Silenciosamente, ele definhou até que, em 12 de fevereiro de 2004, não acordou mais.

Surpresa

Seis meses antes de morrer, o contador Wolfgang Kotzahn ficou sabendo que tinha um carcinoma. “Foi um choque. Nunca havia contemplado a idéia de morrer. Agora vejo tudo com uma perspectiva diferente. Tudo é importante.”

Leveza

Michael Lauermann era workaholic até que desmaiou no trabalho. Descobriu que tinha tumor cerebral inoperável. Aproveitou a situação com gosto – livre e leve, como se não tivesse peso na vida. Morreu 6 semanas após o diagnóstico.

Recusa

Mesmo ciente de que uma doença incurável lhe deixava pouco tempo de vida, Iara Behrens não queria encarar a morte iminente. “Tenho esperança de melhorar. Acabo de comprar uma geladeira nova. Se ao menos eu soubesse…”

Histeria

Ursula Appeldorn tinha um histórico de distúrbios mentais. No dia em que soube que iria morrer começou a gritar e assim ficou por dias. Num raro momento de lucidez, concordou em se internar numa casa para pacientes terminais.

Serenidade

Maria Hai-Anh Tuyet Cao, 52 anos, não temia a morte. Pelo contrário: preparava-se para o momento todos os dias enquanto seus pulmões perdiam força. “Abraço a morte. Ela não é eterna. Quando nos encontramos com Deus, nos tornamos belos.”

Culpa

Mãe de 4 filhos entre 7 e 15 anos, Beate Taube dizia que a pior parte de enfrentar a morte era deixar os filhos para trás. “Fico triste em saber que não estarei aqui para apoiar minhas crianças. Digo a elas 100 vezes por dia o quanto as amo.”

Os diferentes estágios do coma

Estado de Coma

A inconsciência é causado por danos na substância reticular ativadora, que regula nosso despertar. São os neurônios dessa substância que nos fazem acordar com toques ou ruídos. Em tipos leves de coma, a pessoa fica agitada, suando, emitindo grunhidos e tem delírios.

Coma profundo

Nesse estágio, nem mesmo estímulos dolorosos afetam o organismo. Dependendo da lesão, o paciente pode até manter sentidos, como a audição, mas dificilmente entenderá o que ouve.

Estado vegetativo

O paciente tem danificado o córtex, a “casca” do cérebro, região responsável pelo raciocínio, movimentos voluntários e sentidos. Não voltará a sentir, ter memória ou consciência de si, mas a atividade automática do corpo continua normal. Os olhos mantêm-se abertos, há respiração e até choro involuntário. A americana Terri Schiavo ficou assim durante 15 anos.

Coma irreversível

É causado por lesões encefálicas irrecuperáveis . Danifica movimentos voluntários e o funcionamento automático do corpo, que não recebe mais ordens para fazer funcionar atividades vitais, como a respiração. Nesse caso, a pessoa viverá para sempre sem consciência e com a ajuda de respiradores artificiais. Trata-se do que hoje se conhece como “morte cerebral”.

Pseudocoma

Tetraplégico e com paralisia de movimentos da faringe e da face, o paciente consegue apenas abrir as pálpebras e mover os olhos. Mas permanece acordado e em plena consciência, com a substância reticular ativadora intacta. Conhecido também como “síndrome de encarceramento”.

 

O longo caminho da morte

1) Morte do cérebro

Se o sangue deixar de fluir no cérebro por mais de 4 minutos, os neurônios do córtex param de funcionar e a pessoa deixa de sentir e pensar. Depois, o tronco cerebral entra em pane. Sem ele, cessam os movimentos involuntários do corpo – principalmente a respiração.

2) O coração pára

Com ajuda de um respirador, o coração pode ser mantido batendo e o sangue circulando. E apesar de clinicamente morto, o paciente pode suar e reagir a cortes. Mas se os aparelhos forem retirados, coração e respiração param.

3) As células estancam

O sangue pára de circular e as células deixam de se reproduzir. Cabelo, barba e unhas interrompem o crescimento.

4) O fim dos órgãos

Com o fim da circulação, o sangue começa a coagular nos órgãos e tecidos, deixando-os inviáveis para transplantes. Algumas exceções: as córneas, que podem ser retiradas até 3 horas, e os ossos, que resistem até 6 horas após o fim da respiração.

5) O cadáver

Cerca de 3 horas após a parada cardíaca, o corpo toma o aspecto conhecido como morte. O fim da circulação deixa a pele pálida. O sangue estaciona, produzindo a rigidez cadavérica, que começa no pescoço e termina nos pés. O calor do corpo cai cerca de 1 0C por hora, até ser regulado pela temperatura ambiente.

6) O esqueleto

O corpo começa a se comportar como um objeto físico. A membrana das células não funciona mais e o cadáver começa a perder água. Dezoito horas depois da parada cardíaca, as bactérias começam a decompor o cadáver e iniciam a putrefação. Depois de 8 semanas, resta apenas o esqueleto.

 

Antes e depois

As fotos que ilustram esta matéria foram feitas pelo alemão Walter Schels. Ao lado da repórter Beate Lakota, Schels retratou doentes terminais que concordaram em ser fotografados nos últimos momentos de vida e logo após a morte. As fotos viraram exposição, foram premiadas no concurso da agência World Press Photo e publicadas no livro Noch Mal Leben vor dem Tod (“Viver Novamente Antes da Morte”), editado somente na Alemanha.

Para saber mais

Ética Prática – Peter Singer, Martins Fontes, 1994

Sobre a Morte e o Morrer – Elizabeth Kübler-Ross, Martins Fontes, 1981

https://www.bioetica.ufrgs.br

 

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