Minha vida de cobaia humana
Alguns buscam dinheiro. Outros, uma cura. E há quem só deseje o progresso da humanidade. Entenda por que muita gente coloca o corpo à disposição da ciência
Tem tanta gente em busca desse tipo de remuneração que já existem sites dedicados só a ofertas de experimentos. São um tipo de classificados da ciência. Em um deles, o Biotrax.com, você começa escolhendo país e cidade em que quer participar do estudo. E define se é um voluntário saudável ou se tem alguma doença (o que poderá encaminhá-lo a pesquisas específicas). É o suficiente: o site lista os testes clínicos correspondentes a sua pesquisa (alguns, um tanto suspeitos). Também não falta manual sobre como fazer do trabalho de cobaia uma profissão. O Drugspay.com ensina como conseguir até US$ 34 mil por ano – o que daria cerca de R$ 5 mil por mês – só participando de pesquisas. A receita: timing. Segundo o site, é preciso participar de estudos de 30 em 30 dias (o espaço de tempo é para que os efeitos de um teste não influenciem o outro). E se preparar para os períodos de escassez: “Praticamente todas as clínicas fecham para o Natal”, avisa. (O autor do site se diz experiente – em seus textos, declara ter tomado mais de 750 pílulas e ter tirado amostras de sangue mais de 1 500 vezes.)
Que brasileiro nenhum se inspire nesse pessoal. No Brasil, receber (e pagar) pela participação em pesquisas científicas é proibido por lei. Por quê? “Temos gente demais vivendo na pobreza”, diz Gyselle Saddi Tannous, coordenadora da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), conselho ligado ao Ministério da Saúde e responsável pela aprovação de pesquisas com voluntários no Brasil. “Uma pessoa em grave situação financeira não teria autonomia para escolher o que é bom ou ruim pra si mesmo. Ficaria vulnerável.” Em 2003, por exemplo, a Conep interrompeu um estudo realizado no Amapá que pretendia investigar os hábitos do mosquito da malária. Para conseguir os resultados, pesquisadores ofereciam R$ 30 a moradores de comunidades ribeirinhas pra que eles fossem picados por mosquitos. “O dinheiro fazia tanta diferença para os voluntários que eles protestaram quando determinamos a suspensão da pesquisa”, diz Gyselle. (Segundo a Conep, a pesquisa tinha metodologia diferente e não mencionava pagamento quando foi aprovada.)
Ou seja, aqui, as cobaias são pessoas altruístas – gente saudável que quer colaborar com a ciência – ou pertencentes àquele segundo grupo, o que precisa salvar sua saúde. Os pacientes em busca de cura são o grosso das fileiras de cobaias. No Brasil e no mundo. “É gente que muitas vezes não tem condições de se medicar sem o tratamento experimental por causa do custo, ou porque alguns medicamentos não estão disponíveis no mercado”, diz Thomas Lehman, diretor do Weill Medical Center da Universidade Cornell, nos EUA. Nesses casos, o paciente é convidado por médicos para participar das pesquisas. Sempre estudos já aprovados por órgãos governamentais como o Conselho Nacional de Saúde, no Brasil, e o Instituto Nacional de Saúde, nos EUA.
Foi assim que o nova-iorquino Nate Smith* (o nome é fictício, porque Smith deve respeitar uma cláusula de confidencialidade) entrou em uma pesquisa. Em 1998, Smith descobriu que tinha aids. Passou a se tratar com remédios que prejudicaram sua área motora. E começou a sentir dificuldades de locomoção. Em 2000, foi convidado por médicos do hospital em que se tratava para participar de uma pesquisa sobre o cérebro. A promessa: o estudo poderia gerar tratamentos que o fizessem caminhar melhor.
A pesquisa envolveria apenas alguns procedimentos e exercícios para o cérebro. “Se me dissessem que eu teria de tomar qualquer nova droga, não teria topado. Já não aguentava nem os efeitos dos remédios tradicionais”, diz Smith. Por 8 anos, Smith teve sangue, urina e liquor (retirado com uma injeção na coluna) coletados frequentemente. Também recebia um médico que testava os reflexos de seus joelhos e calcanhares. E desafiava seu cérebro – devia repetir 5 palavras na ordem em que as tinha ouvido, ou responder a questões como “quem o vestiu hoje?” Parecem perguntas banais, mas a dificuldade dos pacientes para respondê-las era crucial para que os pesquisadores desenvolvessem tratamentos para suas fraquezas. Com o tempo, Smith acabou desanimando e abandonando o estudo, que ainda não foi concluído. Mas pretende voltar para, quem sabe, ser beneficiado com os resultados.
A (falta de) segurança
Quando uma pesquisa envolve uma nova droga, uma cobaia sempre corre riscos. Afinal, se um remédio está em testes, é porque ainda não se sabe tudo o que causa ao nosso corpo. É verdade, toda droga levada a humanos passa antes por experimentos com animais. “Mas ninguém pode afirmar que os efeitos do remédio em pessoas serão os mesmos vistos nos bichos”, diz Lehman, de Cornell. Mesmo depois de aplicada em gente, a droga pode surpreender. É por isso que os testes são conduzidos em fases: primeiro em pessoas saudáveis, depois em grupos cada vez maiores de pessoas.
E por isso também os pesquisadores se cercam de cuidados. Em dezembro de 2009, 4% de cerca de 3 mil mulheres africanas que participaram do estudo de um gel vaginal que preveniria contra aids acabaram infectadas com o vírus. Acreditava-se que o gel reduziria o risco de contaminação em 30% – mas, 10 meses depois de iniciada a pesquisa, descobriu-se que ele era tão eficiente quanto placebo. Todas as participantes foram instruídas a usar preservativos durante o período do estudo. Mas, talvez motivadas pelas supostas benesses do gel testado na pesquisa, muitas acabaram ignorando a precaução.
Cobaias aprendem sobre os riscos logo de cara, ao assinar um termo de responsabilidade (como o da página 59). Mas isso não lhes tira o direito de exigir indenização caso algo dê errado. Wilson, aquele do começo da reportagem, fez isso. O caso foi sigiloso, mas tabloides britânicos publicaram que o rapaz levou cerca de R$ 5 milhões como compensação.
Para evitar processos como esses, muitos laboratórios e centros de pesquisa têm transferido seus estudos para países de população mais vulnerável. Como a Índia – que concentra gente carente de dinheiro (a população é pobre) e de saúde (plano de saúde não é algo disseminado no país). Ou seja: um monte de gente disposta a aceitar um tratamento experimental. E, como muitos dos voluntários são analfabetos, tem cobaia que assina o termo de responsabilidade sem saber no que está entrando.
Mudar a pesquisa de país também é um jeito de resolver dois problemas para os laboratórios. O primeiro é testar as drogas em populações com bases genéticas distintas. E o segundo é cortar custos. O investimento em uma nova droga é de US$ 1 bilhão, e os testes com pessoas consomem metade disso. Na Índia, a mão de obra barata reduz em até 60% os gastos com os experimentos. Mas países como os EUA têm uma vantagem importante para as cobaias: credibilidade.”Os hospitais dos EUA testam constantemente novos remédios”, diz o hematologista Rodrigo Calado. “É uma segurança extra para quem se coloca nas mãos da ciência.”
As principais cláusulas de um contrato assinado por voluntários de pesquisas científicas:
– Essa é uma pesquisa científica. O objetivo desse estudo é testar a segurança de uma nova droga e descobrir que efeitos, bons e/ou ruins, ela terá em você. Você será direcionado, aleatoriamente, para um de dois grupos. Grupo 1: voluntários receberão uma droga por via venosa, a cada 21 dias. Grupo 2: voluntários receberão placebo.
– Você pode decidir deixar o estudo a qualquer momento. Seu médico dará as instruções sobre como sair da pesquisa com segurança.
– Você pode ter efeitos colaterais durante o estudo. Os médicos não conhecem todos os efeitos colaterais que podem acontecer. Esses efeitos podem ser brandos ou graves. Em alguns casos, os efeitos podem durar por muito tempo, ou mesmo nunca desaparecer. Também há o risco de morte.
– Participar desse estudo pode ou não melhorar sua saúde. Os médicos esperam que o tratamento seja eficiente, mas ainda não há provas disso.
– Faremos o máximo para garantir que suas informações pessoais sejam mantidas em sigilo. No entanto, não podemos garantir privacidade total. Suas informações podem ser requeridas pela lei, e compartilhadas com companhias farmacêuticas envolvidas na pesquisa e agências do governo.
– No caso de lesão decorrente desse estudo, você não perde os direitos legais de procurar indenização ao assinar este formulário.
Como funciona o mercado de voluntários de pesquisas por aqui:
Vale tudo?
Não. Antes de ser realizada, qualquer pesquisa deve ser aprovada pela Comissão de Ética em Pesquisa, ligada ao Ministério da Saúde. Se considerar que os voluntários correrão riscos desnecessários, a comissão pode vetar o estudo.
Quem pode ser uma cobaia?
Aqueles que se ofereçam e se encaixem no perfil procurado pelos centros de pesquisa (como alcóolatras em estudos sobre alcoolismo). Ou ainda pacientes convidados por grupos de pesquisadores.
Quem paga a conta?
Os laboratórios que conduzem a pesquisa. O voluntário não tem de gastar nada. Pelo contrário: deve até ser reembolsado pelos custos que tiver, como qualquer gasto com transporte e alimentação.
Ganha salário?
Não. A lei brasileira veta. Há instituições que tentam driblar a proibição – pagam cachê sob a rubrica “reembolso”. Mas o governo fica de olho para detectar reembolsos de valor muito alto.
E se algo der errado?
Se sofrer algum efeito colateral e se sentir lesado, o voluntário pode buscar a Justiça. Os próprios termos de consentimento assinados pela cobaia já expressam essa possibilidade, para garantir o direito.