Rússia e Japão ainda estão na Segunda Guerra. Pelo menos oficialmente
Desde o século 19, os países disputam um punhado de ilhas. Seus líderes querem resolver o assunto, mas não sabem muito bem como.
Desde o século 19, os países disputam um punhado de ilhas. Seus líderes querem resolver o assunto, mas não sabem muito bem como.
Muita gente acredita que o último (e hediondo) ato da Segunda Guerra Mundial foram as duas bombas atômicas que os Estados Unidos vomitaram no céu de Hiroshima e Nagasaki. Mas, naquela mesma quinta-feira, 9 de agosto de 1945, em que Nagasaki sucumbia ao peso da Fat Man, um novo capítulo do maior conflito armado da história começava: a batalha conhecida como Guerra Soviético-Japonesa. Sim, a loucura e o desespero eram tamanhos que a humanidade conseguiu lançar não só uma, mas duas bombas atômicas e ainda começar outra batalha na sequência.
Japoneses e soviéticos ainda não tinham se enfrentado na guerra, embora o passado recente entre os dois países fosse um tumulto só. Na Guerra Russo-Japonesa de 1904-5, tínhamos um império beligerante e guloso, o Japão, e um fraco e decadente, o Russo. Os nipônicos acabaram tomando uma pequena península chinesa (então sob controle russo) e a parte sul da Ilha Sakhalin — que, geograficamente, não tinha como escapar, já que ela fica no meio dos dos países (às vezes é difícil lembrar o quanto a Rússia é grande e que ela também faz fronteira, marítima, com o Japão).
Antes disso, assim que russos e japoneses estabeleceram relações diplomáticas, no século 19, as divergências quanto à fronteira começaram — em banho-maria. O acordo definia que as Ilhas Curilas, uma fileira de pedaços de terra entre Hokkaido, a grande ilha do norte do Japão, e a Península de Kamchatka, na Rússia, marcaria a fronteira. Mas não ficou claro onde exatamente. Hoje, elas são chamadas de Curilas do Sul na Rússia e Territórios do Norte no Japão.
A vitória japonesa em 1905 fez parte de uma expansão que até 1944 se estenderia por quase todo o Sudeste Asiático, o leste da China e a Península Coreana. Já a humilhação russa foi um fator determinante para o início da queda do czarismo.
Naquele 9 de agosto de 1945, a União Soviética invadiu Manchukuo, estado fantoche japonês localizado no atual nordeste da China. O Japão já estava devastado. Não só pelas bombas atômicas. Na verdade, elas foram apenas a parte mais chocante e cinematográfica daquele ano no Japão. Só o bombardeio de Tóquio, em março, matou 120 mil pessoas, possivelmente mais do que a bomba de Hiroshima.
O surpreendente ataque da União Soviética forçou os japoneses a jogarem a toalha. Isso quando o Japão esperava que os soviéticos agissem como negociadores neutros. Não foi o que aconteceu, e Stalin sacramentou o fim da Segunda Guerra como quis.
Após a derrota do Japão, a União Soviética reivindicou quatro das Ilhas Curilas, Iturup, Kunashir, Shikotan e Habomai, argumentando que o inimigo as roubou em primeiro lugar, quando as anexou no século 19. Mas os japoneses se recusaram a reconhecer as alegações. Assinaram uma declaração que encerrou o estado de guerra em 1956, mas deixaram para depois um tratado de paz real. Esse “depois” nunca veio.
Até aí, na prática, meio que beleza. Todo mundo teria esquecido, passaram-se 70 anos, o socialismo soviético morreu (sim, ele acabou faz mais de um quarto de século, por mais que correntes no nosso WhatsApp o pintem como algo vivinho que só), o Japão se reergueu, virou potência, viu sua economia desacelerar, a Rússia renasceu em uma democracia mambembe e, plim, chegamos a 2018.
Em setembro de 2018, o presidente russo, Vladimir Putin, e o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, se reuniram, e a questão ressurgiu quando Putin sugeriu que eles buscassem um terreno comum para um acordo oficial de paz. “Vamos concluir um tratado de paz antes do final deste ano, sem condições prévias”, disse Putin no Fórum Econômico Oriental, em Vladivostok. “Nossas relações com a Rússia têm potencial ilimitado”, disse o líder japonês.
Não foi a primeira vez, na verdade. Desde 2012, eles já se reuniram 22 vezes para tratar do assunto. Mas agora ambos os lados começaram a demonstrar mais ênfase. O Japão quer resolver logo por temer o avanço da influência chinesa na região, tanto militar quanto econômica. Moscou não pode ceder muito porque isso abalaria a política da mãezona russa, a mesma que anexou a Crimeia e está se metendo cada vez mais no Oriente Médio.
A Rússia já se ofereceu para abandonar duas das quatro ilhas. Mas depois que Putin se reuniu seus partidários, seria difícil explicar qualquer outra concessão territorial substancial. Assim como na Península da Crimeia, submarinos russos ocupam as águas das ilhas. Para eles, não dá para abrir mão assim.
Por outro lado, o Japão insiste no controle total das quatro ilhas. Ceder às demandas russas poderia trazer problemas a Shinzo, que vem tentando mudar a constituição pacifista do Japão. Em 2015, ele foi muito criticado por não repetir uma declaração em que o governo japonês ofereceu uma “sincera desculpa” pelo “domínio colonial e a agressão” do Japão. Aquele velho e necessário pedido formal de desculpas por erros grotescos do passado.
Shinzo Abe acabou negando a oferta surpresa de Putin. O imbróglio continua aberto e talvez estas ilhas pouco conhecidas (para nós) entrem no noticiário no futuro. Não de forma muito boa.
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