As praias de Montevideo formam um museu de história natural de 20 km
Ao longo das margens do rio da Prata, o Museu do Tempo distribui os principais fatos da história da vida em ordem cronológica. Entenda o projeto.
Montevideo, capital do Uruguai, fica às margens do Rio da Prata – que, naquele trecho, tem 100 quilômetros de largura. A Argentina está do outro lado, mas é impossível vê-la. O rio desaparece atrás do horizonte, como se fosse o mar; os olhos não alcançam os hermanos lá do outro lado. Assim, a sensação é a de estar em uma cidade litorânea muito engraçada, sem água salgada, mas com praias e areia. É difícil botar na cabeça que aquilo não é o oceano.
Em espanhol, o calçadão que acompanha a avenida beira-mar é chamado de rambla, e a rambla de Montevideo – que não é beira-mar, e sim beira-rio – se estende por 20 quilômetros, entre a cidadela (isto é, o centro velho, onde ficam o porto, o mercadão e as lojinhas) e o município de Carrasco, que faz parte da região metropolitana e abriga o aeroporto. É uma bela caminhada, só um maratonista faria ida e volta em uma tacada só.
Em um dia de férias, desci a rua Convención para passear pela rambla e me deparei com um prédio abandonado, bem antigo, que aparentemente fez parte da infraestrutura do porto no passado – talvez servindo de armazém de mercadorias (só depois descobri que aquela costumava ser uma usina de fabricação de gás de hulha, que é um derivado do carvão e era usado para acender lampiões de iluminação pública antes da luz elétrica).
Descobri que o tal prédio estava sendo reformado e passaria a ser a sede de um certo Museu do Tempo. Achei o nome, épico, mas não dei muita atenção.
Até que comecei a caminhada pelo calçadão e me deparei com uma placa de ferro espetada na calçada. Ela era minimalista, estilosa e cor de ferrugem. Havia um número – 65 milhões de anos –, o desenho de um esqueleto de dinossauro e a frase os últimos dinossauros. Aquela era a data da extinção dos grandes répteis, graças à queda de um meteoro na península de Yucatán, no México. Fiquei curioso: o que aquela placa aleatória fazia ali?
Andei mais alguns metros e vi a próxima placa. Era um pouco mais antiga: 100 milhões de anos atrás, quando os peixes modernos dominam os mares. E aí havia outra: 130 milhões de anos, a origem das flores e dos insetos sociais (como abelhas). Conforme o pedestre caminha do centro em direção aos bairros mais afastados, ele volta no tempo, acompanhando os principais acontecimentos da história da vida na Terra. Você pode ver um exemplar de placa abaixo:
Procurei no Google e descobri que aquilo já era parte do Museu do Tempo: os 20 quilômetros de rambla foram divididos nos 4 bilhões de anos de existência do planeta, e as plaquinhas foram distribuídas ao longo dessa linha do tempo gigante na posição equivalente ao momento em que cada evento ocorreu. Cada passo de uma pessoa equivale a percorrer 100 mil anos. Você pode ver todas as plaquinhas e explicações aqui.
Aqui na SUPER a gente discute muito qual é a melhor maneira de explicar para os leitores o quanto a Terra é antiga – e o quanto a evolução das espécies por seleção natural é demorada em relação à duração da vida de uma pessoa. Esse é, inclusive, o motivo pelo qual tantos religiosos acham difícil abraçar a concepção de mundo fundada por Darwin: a adaptação de um organismo a seu habitat por tentativa e erro ocorre em uma escala de tempo que nosso cérebro não é capaz de abarcar intuitivamente.
Um truque típico é imaginar que os 4,54 bilhões de anos de história da Terra foram espremidos em um único ano. No dia 1º de janeiro, a Terra ganha certidão de nascimento. Em 3 de março, há 3,77 bilhões de anos, encontramos em rochas as mais antigas evidências da presença de bactérias. De 3 de março a 11 de novembro, só há bactérias, nada mais. Por oito meses e dez dias, elas foram quase as únicas a existir.
Em 11 de novembro surgem os primeiros animais macroscópicos. Em 16 de novembro acontece a explosão do Cambriano – o grande evento de diversificação dos animais. Em 10 de dezembro aparecem os dinossauros, que são extintos no dia 24, véspera de Natal. Em 31 de dezembro, surge o ser humano. Três segundos antes da meia-noite, Cabral chega ao Brasil.
A linha do tempo de Montevideo é muito eficaz em mostrar esse grande período de domínio das bactérias antes do surgimento dos animais e plantas macroscópicos. Entre o centro e o bairro de Punta Carretas, onde se localiza o bilhão de anos mais recente, há placas a cada poucos metros, indicando a origem de uma série de invenções biológicas familiares: ovos, aves e plantas gimnospermas. De Punta Carretas até o aeroporto, porém, o espaçamento entre as placas aumenta muito – para ver todas, só de bicicleta ou carro.
A implantação do Museu do Tempo em si está parada. Há uma disputa com uma empresa de balsas que quer implantar um terminal ali. As placas, então, são a única parte dele que já foi implantada. Elas são um caminho, que leva até a porta de um prédio que não existe.
É triste, mas, por outro lado, as placas em si são uma vitória: museus de história natural geralmente são lugares dedicados ao silêncio e a contemplação, isolados do mundo exterior e repletos de animais sem vida. A linha do tempo transforma a vida em uma pequena aventura. Uma caça ao tesouro urbana, em que cada plaquinha te deixa curioso pela próxima – e a distância que você precisa percorrer para ir de uma a outra ensina o quanto a existência humana é um capítulo efêmero da história da Terra. Que cabe em um pedacinho de calçada de dois metros.