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As cartas marcadas do tarô

São 78 cartas cheias de simbolismo com uma história milenar. Sua leitura sobreviveu aos séculos e está em plena moda. Para os céticos é só um jogo de adivinhação. Para os iniciados nos seus mistérios, é uma forma de autoconhecimento.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 jan 1988, 22h00

Maria Inês Zanchetta

Atores, empresários, profissionais liberais, artistas plásticos — enfim pessoas das mais diferentes atividades têm em comum o costume de freqüentar um certo apartamento amplo e ensolarado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Ali trabalha um carioca de 30 anos, solteiro, olhos muito azuis, chamado Marcos da Silva Bordallo. Só que nenhum desses visitantes o trata pelo verdadeiro nome. Para eles Marcos é Namur — ou melhor, professor Namur. E se o procuram é porque esperam receber uma orientação que os ajude a organizar melhor suas vidas e seus negócios. Engana-se quem imaginar que o tão requisitado Marcos-Namur é algum conselheiro espiritual ou psicólogo com formação psicanalítica.

O que ele faz, cobrando cerca de 4 mil cruzados a primeira sessão, é dar as cartas. Pois o auto-intitulado professor é um tarólogo, por sinal o mais badalado do Rio, ou seja, um especialista em tarô — o misterioso baralho que, segundo os adeptos, faz as pessoas se conhecerem melhor e a partir daí terem uma boa idéia do que o futuro lhes reserva.

Os crentes nos poderes do tarô e dos tarólogos formam uma espécie em expansão. Mas o jogo é muito antigo. A própria palavra tarô, do francês tarot, viria do velho Egito, onde o baralho teria surgido, significando “roda” ou “caminho”. A história do jogo é tão obscura como o nome. Sabe-se que em 1392, Carlos VI, rei da França, encomendou por um bom preço ao pintor Jacquemin Gringonneur três pacotes de cartas. A primeira descrição de um baralho de tarô, porém, só apareceu séculos mais tarde. Seu autor foi o teólogo protestante francês e historiador Antoine Court de Gébelin (1725-1784). No primeiro dos nove volumes de sua obra Le monde primitif, Gébelin afirma que as cartas do tarô foram extraídas do Livro de Thoth (um deus egípcio).

No século XVIII, em plena Revolução Francesa, o jogo de tarô tornou-se moda nos salões parisienses e uma certa Mademoiselle Lenormand era o que é hoje no Rio o professor Namur — lia nas cartas do tarô o destino de gente importante da época. Entre seus clientes estavam os líderes revolucionários Robespierre e Saint-Just. Diz-se que Mademoiselle Lenormand previu a morte dos dois na guilhotina — o que talvez não fosse uma proeza, dada a facilidade com que se cortavam cabeças na França daqueles anos. Mas, se ela de fato previu a decapitação, nem Robespierre nem Saint-Just puderam fazer qualquer coisa para evitá-la — e isso dá o que pensar sobre a utilidade de se conhecer o futuro.

Conta-se também que, anos mais tarde, Napoleão tornou-se assíduo freqüentador de Lenormand. Esse pelo menos sabia lidar à sua maneira com o futuro desvendado pela taróloga: quando as previsões o desagradavam, mandava encarcerá-la por uns tempos.

Boa parte do charme do tarô, o que ajuda a entender sua longevidade, está nas próprias 78 cartas que compõem o baralho. Elas se dividem em dois grupos: os 22 arcanos maiores — fundamentais na interpretação — e os 56 arcanos menores, que complementam os outros. A palavra arcano vem do latim arcanu, que quer dizer segredo, mistério, e cada um deles representa uma figura simbólica diferente. Por exemplo, o arcano IV (os praticantes usam a numeração romana), chamado imperador, simboliza o homem objetivo, materialista, organizado.

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O professor Namur ensina que o tipo de homem simbolizado pelo imperador gosta de ser o provedor do lar, mas não se detém para tentar entender o que o outro está vivendo; geralmente é pão-duro, mas se orgulha de pagar as contas em dia; é também machão e moralista dentro de casa; ansioso e ambicioso, sonha com segurança; gosta da sacerdotisa (arcano II), que simboliza a mãe e a esposa, mas também da imperatriz (arcano III), símbolo da mulher independente, que trabalha fora, mas de quem ele finge não gostar. Se a carta do imperador sair para uma mulher, isso pode significar que procura imitar o pai.

Há uma certa carta — o arcano XIII — que de tão assustadora nem tem o nome impresso: é a figura da morte. Mas a morte pode não ser tão feia como a pintam. Segundo uma tranqüilizadora interpretação, essa carta simboliza o renascimento, as transformações pelas quais a pessoa está passando. Tudo depende de quem lê o tarô e, para complicar ainda mais as coisas, os métodos de leitura mudam de um tarólogo para outro: há quem utilize apenas os 22 arcanos maiores, por achar que isso facilita a consulta e a comparação com a leitura anterior, quando o cliente volta; outros preferem usar todas as cartas e certamente devem ter para isso motivos tão relevantes quanto os dos que optam pela versão resumida: é tudo uma questão de crer para ler.

Naturalmente, o jogo de cena no ato da leitura é da maior importância — como convém a um ramo do ocultismo que tem a pretensão de entender a personalidade humana a partir do acaso de um sorteio de cartas. Namur, por exemplo, usa uma mesa de tampo preto, “porque as cores das cartas se realçam, pulam e ajudam na concentração”, como diz. Outros tarólogos preferem rituais mais elaborados. É o caso do uruguaio cujo apelido é Kucho e que prefere não revelar seu verdadeiro nome. Há 22 anos no Brasil e desde 1975 no ramo do tarô, ele usa uma pele de animal amarelada para cobrir a mesa de trabalho, numa saleta pouco iluminada, no porão da casa onde mora, no bairro do Pacaembu, em São Paulo.

Alto, moreno, com os traços herdados da mãe índia e do pai espanhol, Kucho cobra uma quantia simbólica para ler o tarô (ele diz que trabalha na produção de comerciais e de cinema), jamais tira cartas para si mesmo e só opera com baralhos que tenham atravessado o oceano. Isso não faz diferença alguma para o carioca Namur, que se declara criador do primeiro tarô latino-americano, um baralho desenhado pela argentina Martha Leyros, em cores vivas, bem diferentes dos tons pastel do clássico baralho francês. “O nosso tem vida, emoção, chega a suar”, entusiasma-se Namur.

Existem mais de mil baralhos diferentes de tarô, uma variedade à altura do número de métodos de dispor as cartas — pelo menos quinhentos. Namur, por exemplo, as dispõe em círculo, na forma da mandala — que em sânscrito significa círculo mágico. Kucho, por sua vez, as coloca na posição astral, de acordo com as casas do zodíaco. Dispor as cartas em linhas horizontais é o método utilizado pela taróloga paulista Claudine Cardoso. Mãe de três filhos, ela conta que aprendeu a mexer com o tarô aos 7 anos, quando ganhou um baralho da avó.

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Também o número de cartas que o cliente tira, o número de rodadas e o tempo gasto na leitura variam. Para Namur, que se considera bom entendedor, doze cartas e uma rodada bastam. Já os clientes de Kucho devem escolher 28 cartas em quatro rodadas; na última, se quiserem, podem fazer perguntas. Claudine interpreta no mínimo 44 cartas. Mas nenhum deles gasta menos de uma hora na operação. Nesse complicado jogo as interpretações dos arranjos que as cartas formam variam de acordo com cada pessoa e a situação que ela vive em determinado momento, dizem os tarólogos. Por isso, se o ermitão (arcano IX) sair para uma criança, poderá simbolizar timidez; já para um homem de 50 anos será símbolo de riqueza interior.

O enforcado (arcano XII), brinca Namur, é o arcano do brasileiro, sempre com a corda no pescoço. Normalmente, os tarólogos não brincam em serviço, certamente para manter a aura de seriedade em torno daquilo que para os mais desconfiados não passa de um jogo — antigo, complexo e sofisticado, mas apenas um jogo. Para o professor Namur, os fundamentos do tarô “são o pensamento mágico, não racional, e a intuição” — seja lá o que isso signifique. Os tarólogos tomam o cuidado de advertir aos mais deslumbrados que o tarô não é um jogo de adivinhação do tipo bola de cristal.

Aponta caminhos, mas não dá soluções. Por isso, quem consultar um tarólogo na esperança de descobrir o que vai acontecer no dia seguinte estará perdendo tempo.

“A verdadeira intenção do tarô”, teoriza Namur, “é fazer com que as pessoas se auto-analisem, já que as cartas mostram o que está ocorrendo com elas.” Ele afirma que “se as pessoas não souberem mudar sua relação com o passado, cuja resultante é o presente, acabam se repetindo; então não adianta mudar de marido, de emprego ou de casa, pois o problema permanece o mesmo”. Curioso do tarô, o escritor Caio Fernando Abreu, autor de Morangos mofados, conta que na primeira vez em que consultou um tarólogo ficou espantado “porque entre tantas cartas saíam exatamente aquelas cuja interpretação tinha a ver com o que eu estava vivenciando”.

Ao que parece, o tarô e mesmo o I Ching — o livro das mutações que surgiu na China no período anterior à dinastia Chou (1150-249 a.C.) — têm como meta principal levar as pessoas a refletir sobre o que estão vivendo. Talvez por isso, um dos fundadores da psicanálise, o suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), tenha se interessado pelo tarô, entre outras simbologias. Seja como for, o fascínio que as várias formas de esoterismo exercem sobre as pessoas independe de sexo, religião ou atividade. Os homens, na maioria, procuram tarólogos para saber de dinheiro e negócios. Já as mulheres se preocupam com o trabalho e as questões afetivas. A curiosidade que o tarô sempre despertou nos artistas moveu o pintor espanhol e mestre do surrealismo Salvador Dali a desenhar um baralho.

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Na literatura, a simbologia contida nessas cartas foi tema de poemas do francês Gérard de Nerval (1808-1855) e do norte-americano T.S. Eliot (1888-1965). E o pintor sergipano; radicado no Rio Antônio Maia, que sempre retratou temas ligados à crendice popular, decidiu comemorar seus 60 anos em outubro próximo com uma exposição de 22 telas, onde estarão pintados, em bom tamanho, um a um, os arcanos maiores do tarô.

Esse futuro que não chega nunca.

Desde o começo dos tempos, brinca Woody Allen, o homem vive às voltas com algumas dúvidas insuperáveis: quem sou eu, de onde vim — e onde será que vamos jantar esta noite. Ainda mais do que isso, o que as pessoas querem saber de verdade é o que lhes reserva o dia de amanhã. A busca insaciável do futuro, velha como o medo e a esperança, faz a felicidade dos tarólogos, jogadores de búzios, quiromantes, astrólogos, cartomantes e videntes de todas as categorias — quando se trata de mexer com o desconhecido, jamais algum deles deve ter perdido dinheiro subestimando a credulidade alheia.

O que nem sempre se percebe é que correr atrás do futuro é fazer como o cachorro que dá voltas atrás do próprio rabo. Não se trata nem de dizer que é preciso estar muito aflito ou ter muita boa vontade inocente para acreditar que o futuro pode ser previsto pela magia ou pela ciência, assim ou assado. O problema é outro. Se o futuro já está pronto e acabado em alguma misteriosa dimensão das coisas, podendo portanto ser conhecido por qualquer vidente cinco-estrelas — como parecem achar os que acreditam que a vida é apenas o desenrolar de um destino imutável —, então que valia tem conhecer algo que não se poderá modificar? Ou, se o futuro só fica pronto quando acontece, como dizem os partidários da idéia de que são as pessoas, a cada escolha que fazem, que vão construindo sua história, então é possível conhecer algo que se modifica sem cessar?

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No fundo, muita gente intui que não existe saída para esse paradoxo — do contrário, bastaria ter uma bola de cristal desembaçada para fazer a quina da Loto toda semana — e ainda assim freqüenta seus videntes de estimação. É que nesse ato, nesse jogo, a ansiedade diante dos rumos da vida encontra algum alívio. Se o ocultista procurado não for um charlatão, a pessoa poderá até sair dali com algo de valioso em troca do seu tempo e dinheiro. “Se um tarólogo lhe disser que ela fantasia muito”, exemplifica o psiquiatra Antônio Carlos Cesarino, “certamente a pessoa vai parar para pensar nisso, e tudo que ajuda a refletir é bom.”

Para saber mais:

Saturno em oposição ao Sol

(SUPER número 10, ano 2)

O nome dos números

(SUPER número 8, ano 3)

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