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Cirurgias Mediúnicas: Nas mãos de Deus

Este é um campo fértil para a atuação de picaretas e vigaristas. Mas estudiosos sérios do assunto afirmam: a medicina tradicional tem o que aprender com os cirurgiões psíquicos

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 30 abr 2005, 22h00

Carlos Chernij

Você nem precisa dizer qual é o seu problema. O curandeiro simplesmente rabisca alguns garranchos incompreensíveis, receitando as ervas certas. Se for grave, só mesmo com cirurgia. Aí é você quem escolhe o tipo: invisível ou visível? Se for invisível, o cirurgião vai resolver o problema lidando apenas com seu espírito. Se você só acredita vendo, não tem problema. A sala de operações vai estar cheia de pessoas assistindo, e nem é preciso haver uma mesa. Basta ficar encostado na parede. Usando um bisturi ou uma faca, o cirurgião vai cortar onde for preciso e tirar alguns pedaços de tecido. Tudo isso supostamente sem causar dor nem infecção – apesar de o cirurgião não aplicar anestesia nem lavar as mãos. Em questão de minutos, você estará curado. A não ser, é claro, que Deus ou os espíritos não queiram, ou que você não tenha fé suficiente. Seja bem-vindo ao mundo da cirurgia psíquica.

Com algumas variações, tanto de técnica quanto de resultado, cenas como essa acontecem todos os dias. Os cirurgiões costumam avisar que não curam nada – quem cura são os espíritos, que se manifestam por meio do corpo do cirurgião, e a fé do paciente. Há relatos de dezenas de espíritos diferentes que ajudariam nas curas. O mais famoso deles é o do doutor Fritz, um médico alemão muito habilidoso que teria morrido durante a Primeira Guerra Mundial. Em transe, os cirurgiões mais mirabolantes abrem cortes usando apenas o dedo, que depois enfia no corpo do paciente para a retirada de vários tumores. No final, o corte é fechado com uma simples massagem. Um ritual espetacular, apesar de vários céticos e mágicos já terem demonstrado que o sangue pode vir de cápsulas discretamente ocultas na mão do cirurgião, onde também podem estar escondidos os tumores – na verdade, vísceras de frango.

Afinal, essas cirurgias funcionam ou não? Os cortes são reais ou não passam de truques? As curas realmente acontecem? Não há dor nem infecção? A resposta para todas essas questões é um vago “depende”: depende do paciente, depende do problema, depende do cirurgião e, segundo eles próprios, depende dos espíritos.

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Os próprios cirurgiões costumam alertar que as operações nem sempre dão resultado. E, mesmo quando o paciente diz ter alcançado a cura, fica uma dúvida no ar: ele estava mesmo doente ou era algum problema psicológico ou de estresse que estava tendo manifestações físicas? Nos casos de doenças psicossomáticas, não há muitas dúvidas de que o tratamento caloroso dos curandeiros, aliado ao clima emocional das cirurgias e à fé do paciente, pode convencê-lo de que está curado. Nesses casos, isso pode ser mais importante do que tratar os sintomas.

O cético canadense James Randi diz que, durante suas pesquisas para escrever o livro The Faith Healers (“Os Curadores da Fé”, sem tradução para o português), em 1987, procurou 104 pessoas que diziam ter sido curadas por cirurgiões psíquicos. Ele as classificou basicamente em três grupos. O primeiro era o de pessoas que não tiveram doença alguma. Cita como exemplo uma senhora que acreditava ter sido curada de um câncer na garganta após ser tocada por um cirurgião. Mas, segundo seu médico, fazia cinco anos que ele vinha realizando exames que mostravam que ela nunca tivera nenhum tipo de câncer. Mas, como sua mãe havia morrido desse problema, cada vez que a garganta doía, ela associava isso a câncer. O segundo grupo identificado por Randi era o de pessoas que realmente tinham doenças e que continuavam doentes depois de passar pelas mãos dos curandeiros. Quanto ao terceiro grupo, Randi diz não ter encontrado ninguém, pois as pessoas já haviam morrido em decorrência dos problemas dos quais diziam ter sido curadas. “Não posso afirmar que essas curas não funcionam”, disse Randi, “mas em todos os casos que investiguei, houve 100% de falha.”

Nem todos consideram que curar alguém que não está doente seja algo sem importância. “Se essas curas são eficazes para tratar problemas psicossomáticos, um campo onde a medicina tem dificuldade, é um sinal que devemos estudar como isso acontece”, diz o psiquiatra Alexander Almeida. Ele realizou pesquisas com um outro cirurgião bastante popular no Brasil: João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus. Ou também como “John of God”, já que atrai muitos estrangeiros para seu centro de curas na cidade de Abadiânia, no interior de Goiás, a ponto de, na internet, existir mais informações sobre ele em inglês do que em português. Almeida passou alguns dias acompanhando a rotina e os trabalhos de João de Deus, observando se as cirurgias visíveis eram fraude ou não. “Os cortes realmente ocorreram, e os pedaços de tecido retirados eram mesmo dos lugares operados”, afirma Almeida. E funcionou? “Se houve alguma cura, ela não teve nada a ver com a parte física da cirurgia”, diz o psiquiatra.

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Facas e serrotes

No Brasil, essas técnicas começaram a ficar conhecidas na década de 50, quando entrou em atividade o primeiro cirurgião psíquico brasileiro a conquistar fama: José Pedro de Freitas, o Zé Arigó. Nascido em 1921, ele casou-se aos 25 anos. Depois disso, ao longo dos nascimentos de seus cinco filhos, teria começado a escutar uma voz numa língua estranha. Isso durou anos, até que uma noite teve um sonho bastante nítido. Estava numa sala de operações, entre médicos e enfermeiras que realizavam uma cirurgia. No comando, estava um médico que era o dono da voz que Zé Arigó tanto escutava. Era o doutor Fritz, que o havia escolhido para continuar sua missão na Terra. Sua primeira cura teria sido realizada logo após essa revelação. Ao encontrar um amigo aleijado que precisava de muletas para andar, teria ordenado: “Já é hora de largar essas muletas”. E ele assim fez, e nunca mais teria tido problemas para andar. Nessa mesma época, conheceu o então senador Lúcio Bittencourt, que sofria de câncer no pulmão. Arigó teria feito uma cirurgia e extirpado o tumor, curando totalmente o político.

Montou então uma clínica na cidade de Congonhas, no interior de Minas Gerais, onde chegou a atender cerca de 200 pessoas por dia. Para algumas, receitava remédios e, para outras, cirurgias que não duravam mais do que alguns minutos. Usava as mãos, facas enferrujadas ou até mesmo serrotes. Alguns médicos diziam que suas cirurgias eram reais, enquanto outros asseguravam que não passava de charlatanice. Ao longo de 30 anos de “carreira”, operou cerca de 2 milhões de pessoas e sofreu dois processos por exercício ilegal de medicina. O primeiro em 1958, mas recebeu perdão do presidente Juscelino Kubitschek (cuja filha teria se tratado com Arigó), e o segundo em 1964, quando chegou a passar sete meses na cadeia.

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Como na maioria dos casos de cirurgiões mediúnicos brasileiros, Zé Arigó não cobrava nada. Por outro lado, sua família era dona das duas principais farmácias de Congonhas – onde os pacientes deviam comprar suas ervas e remédios –, de um hotel e de uma loja de lembrancinhas.

Um fato curioso é que Zé Arigó teria previsto a própria morte. Sabia que iria morrer num acidente de carro, de maneira violenta. E, em 1971, isso realmente aconteceu. Mas aparentemente o doutor Fritz não deu sua tarefa por encerrada. O próximo a dizer que recebia o espírito do médico alemão foi o ginecologista Edson Queiroz. Ele viveu até 1991, mas, desde 1986, o engenheiro Rubens Faria Jr. começou a fazer cirurgias dizendo também receber o espírito de Fritz. No final da década de 1990, foi a vez de Mauricio Magalhães clamar para si o posto de médium que incorpora o espírito do habilidoso cirurgião. Todos tinham métodos de trabalho parecidos e o mesmo sotaque alemão quando entravam em transe. E todos foram acusados de fraude similares.

Os próprios cirurgiões psíquicos costumam dizer que a operação visível é dispensável. Mas o que poderia estar atuando então? “Há pesquisas que apontam evidências de que algumas pessoas são capazes de influenciar o corpo de outras”, diz o psicólogo Wellington Zangari, coordenador do Inter Psi (Grupo de Estudos de Semiótica, Interconectividade e Consciência), da PUC de São Paulo. É o que a parapsicologia chama de biopsicocinese (bio-PK). Alguns estudos apontam que é possível induzir pequenas alterações nos batimentos cardíacos, na pressão sangüínea e na condutividade elétrica da pele, além de outros efeitos. “Em 2002, realizamos uma pesquisa em conjunto com a Universidade de Nevada, nos Estados Unidos”, conta Zangari. “Reunimos um grupo de médiuns de umbanda em São Paulo que tentaram influenciar o corpo de uma pessoa que estava numa sala totalmente isolada, a quase 10 mil quilômetros de distância, nos Estados Unidos. As diferenças entre os períodos em que os médiuns estavam agindo e em que eles não agiam foram pequenas, mas significativas”, diz o pesquisador. “Isso é muito menos do que os cirurgiões psíquicos prometem, mas é a única coisa palpável que temos do ponto de vista da pesquisa empírica.”

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Mas os cirurgiões preferem atribuir seu sucesso aos espíritos. Os adeptos do espiritismo acreditam que espíritos desencarnados podem se manifestar por meio de médiuns. Essas intervenções poderiam ser físicas ou apenas no campo energético, atuando diretamente no espírito do paciente. Essa cura no espírito pode ter reflexos no corpo. “Práticas espirituais e religiosas têm impacto na saúde das pessoas, mas ainda se está estudando o que está por trás disso”, diz o psiquiatra espírita Frederico Leão. Os resultados dependem então da fé do paciente? “É importante, mas não determinante”, afirma Leão. Médico das Casas Santo André, uma instituição espírita em Guarulhos, município na Grande São Paulo, que cuida de pessoas com deficiência mental, ele estuda os resultados de intervenções espirituais nesses pacientes, todos eles com algum tipo de retardo mental. O objetivo não é atingir a cura, considerado impossível nesses casos, mas sim tentar aliviar alguns problemas, como agressividade, convulsões e recusa em se alimentar. “Há casos em que os problemas cessam. Mas há também aqueles que não apresentam mudança alguma”, diz Leão. “Nenhuma prática espiritual substitui o tratamento médico convencional. Ela é apenas um complemento.”

Efeito placebo

Mas é possível que os cirurgiões psíquicos produzam efeitos em seus pacientes mesmo não tendo nenhum poder paranormal ou afinidade com espíritos. O impacto psicológico que eles podem causar pode servir como gatilho para processos de cura realizados naturalmente pelo organismo. Seria algo parecido com o efeito placebo, no qual pacientes que tomam pílulas de farinha acabam apresentando melhoras pelo simples fato de acharem que estão tomando um remédio. “Muitos dos que procuram esses cirurgiões são pessoas que foram desenganadas pela medicina tradicional”, diz Zangari. “Ser tratado de maneira pessoal, com todo carinho, por esses curandeiros pode produzir efeitos favoráveis para a saúde.” O fato de as pessoas às vezes acreditarem mais no curandeiro do que num médico também pode afetar o tratamento. Há relatos de pessoas que foram curadas de cirrose hepática em cirurgias espirituais. Elas foram “operadas”, tomaram suas ervas e seguiram a recomendação do curandeiro de parar de beber – que é o único tratamento eficaz conhecido (a não ser em casos muito avançados, que só se resolvem com transplante de fígado) e que qualquer médico aconselha aos seus pacientes.

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Independentemente de esses curandeiros serem homens miraculosos ou charlatães, a maioria dos pesquisadores concorda num ponto: é preciso estudá-los melhor. Seja para desmascarar as farsas, seja para aprender técnicas que podem ser úteis para a medicina tradicional. “O compromisso da medicina é ajudar o paciente. Se algo nessas curas for realmente bom, devemos aprender e usar isso a favor das pessoas”, afirma Almeida. “Sou favorável a pesquisas que tentem conciliar métodos convencionais com métodos alternativos não-invasivos”, diz Zangari. Mas, apesar de o Brasil ser um país onde a cirurgia psíquica é mais popular, as pesquisas científicas ainda engatinham. “Não há verbas para essas pesquisas, e quem se arrisca costuma sofrer um pouco de preconceito”, diz Leão. “Esse é um campo que ninguém estuda, mas todo mundo tem opinião. Acabamos ignorando coisas que acontecem no nosso quintal”, diz Almeida.

Meca de curandeiros

O filipino Antonio Agpoa transformou a cirurgia mediúnica num grande negócio e iniciou uma tradição

Foi no final da década de 60 que os cirurgiões psíquicos ganharam notoriedade, graças à publicação de The Wonder Healers of the Philippines (Os Maravilhosos Curandeiros das Filipinas), do escritor esotérico americano Harold Sherman. O mundo foi então apresentado a Antonio Agpoa, um curandeiro filipino que não foi o primeiro cirurgião mediúnico, mas que popularizou o estilo de cirurgia com as mãos em que se pode observar o sangue jorrando e a retirada de tecidos. Mais do que isso, ele transformou suas curas num ótimo negócio. Após a publicação do livro, em 1967, e da exibição de documentários também feitos por Sherman, pacientes-turistas dos Estados Unidos e da Europa começaram a ir em grandes excursões para se consultar na clínica de Agpoa nas proximidades de Manila, capital das Filipinas. O homem havia se tornado um pop star. No final de 1967, ao fazer uma viagem aos Estados Unidos, Agpoa foi acusado de fraude por vários de seus ex-pacientes e acabou sendo preso. Após pagar uma fiança de 25 mil dólares, fugiu de volta para as Filipinas.

Tudo isso teve pouco impacto em sua carreira. Não se sabe quanto dinheiro Agpoa amealhava, entre pagamentos de “consultas” e doações. O fato é que, em pouco tempo ele conseguiu construir um hotel cinco estrelas para hospedar – obrigatoriamente – as pessoas que queriam se tratar com ele. Não bastasse isso, sua mulher abriu uma operadora de turismo especializada em promover excursões de pacientes. Foi acusado de fraude diversas vezes, mas continuou operando até morrer por causa de um derrame, em 1982. A principal ironia, que não passou despercebida a seus críticos, é que, mesmo vivendo na meca dos cirurgiões psíquicos, muitos ensinados por ele, e mesmo dizendo-se capaz de curar inclusive câncer, Agpoa acabou recorrendo a um hospital dos Estados Unidos quando precisou fazer uma cirurgia de apêndice.

As Filipinas sempre tiveram uma “tradição” em curandeiros alternativos. E, hoje em dia, quando o assunto é cirurgia psíquica, é sempre citado como o principal centro mundial. O segundo lugar mais lembrado é o Brasil. Não há estatísticas confiáveis sobre o número de cirurgiões brasileiros, mas o fato é que alguns deles atendem tantas pessoas que conseguem destaque inclusive no exterior, como nos casos de Zé Arigó e João de Deus. As explicações para esse sucesso são várias. “Essas práticas são notáveis em todos os países onde o sistema de saúde é falho”, diz o psicólogo Wellington Zangari. “Também temos grupos religiosos que definem muito bem o que é e o que não é saúde. Em alguns deles, se você não tem saúde, é porque o diabo está no seu corpo. A solução é tratar o espírito com exorcismo.” O psiquiatra Frederico Leão aponta ainda outro fator: o alto custo do tratamento de doenças graves. “A medicina tornou-se muito cara, o que faz as pessoas mais simples considerarem outras alternativas, como os curandeiros.”

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