Unschooling: o movimento de pais que tiram seus filhos do colégio
Mais de 2.500 famílias instruem suas crianças fora das salas de aula – e fora da lei. Entenda a discussão por trás do tema.
“Minha filha não sabe o que é ser obrigada a acordar cedo, colocar uma mochila nas costas, estudar o que um professor decidiu que ela deveria saber e ter de fazer uma prova para mostrar do que é capaz”, conta Cleber Nunes sobre a filha Ana, de 8 anos. “Nessa idade, o único compromisso de uma criança é brincar. Ela aprende só o que acha interessante. E, mesmo assim, fazemos com que isso faça parte da brincadeira. Sem agenda. Sem ritmo.”
O que Cleber ensina neste depoimento é o princípio do unschooling – desescolarização, em tradução livre -, prática que consiste em expor a criança ao mundo, perceber seus interesses e facilitar para que cada situação seja uma chance de aprendizagem. Tudo isso fora da escola – e da lei.
No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) afirma ser dever dos pais ou responsáveis matricular os menores na rede regular de ensino a partir dos 4 anos. Foi com essa idade, e sem nunca ter pisado em uma sala de aula, que Ana Nunes aprendeu a ler. Caçula de uma família de Timóteo, município mineiro com pouco mais de 80 mil habitantes, ela nasceu para não ter matrícula. Por causa do bullying e da violência no ambiente escolar – e por julgar o conteúdo das aulas fraco -, Cleber já havia tirado os filhos mais velhos do ensino fundamental.
E ele não está sozinho. No Brasil, estima-se que cerca de 2.500 famílias instruam os filhos assim. Em todo o mundo, mais de 60 países permitem ensinar em casa. Na lista estão Reino Unido, Canadá, Rússia, Austrália e França. Nos EUA, mais de 2 milhões de crianças não frequentam a educação regular.
“As famílias têm, cada vez mais, uma vontade de não terceirizar a educação dos filhos. É preciso entender, porém, que a desescolarização não é apenas sair da escola, mas tirar a escola de dentro da gente”, afirma Patrícia de Caires Sogayar, cofundadora do programa Famílias Educadoras, que reúne pais e mães dispostos a criar ambientes que promovam a aprendizagem a partir do interesse dos filhos.
“Tudo passa por eliminar a fragmentação do aprendizado, deixar a potência da criança florescer. Quando o interesse parte dela, ela ganha outro brilho no olhar. A vida passa a ser o currículo.” No início deste ano, por exemplo, Ana ficou tão entusiasmada com a multiplicação dos números que os pais introduziram a lógica dos gráficos. Ela adorou. Sem preocupação com a idade “adequada” para travar contato com qualquer tipo de conteúdo, a garota devorou A Volta ao Mundo em 80 Dias, romance de aventura de Julio Verne. A mãe, Beth, aproveitou o itinerário de Phileas Fogg para apresentar o mapa-múndi à filha e contar um pouquinho da história dos países que o inglês visitou à caça do ladrão que subtraiu 55 mil libras do Banco da Inglaterra.
Ana viaja pela literatura estrangeira e por planos cartesianos sem desconfiar que também está sendo caçada. Saber onde fica Calcutá sem ajuda do Google não vale nada para que o Estado considere que ela esteja sendo instruída. No ano passado, ao constatar que ela não estava matriculada, o Conselho Tutelar avisou o Ministério Público. A promotora conheceu a menina, mas ainda não emitiu parecer. Cleber, escolado no assunto, não teme. Quando não matriculou Davi e Jônatas, a história foi a mesma.
Entre a denúncia, em 2006, e o veredicto, em 2010, ele tentou convencer o juiz de que cumpria os objetivos pedagógicos com os filhos: submetidos a um teste de conhecimentos, os dois fizeram mais pontos do que o estipulado. Não adiantou. Cleber foi condenado por abandono intelectual, crime que prevê pagamento de multa ou um mês de prisão. Como protesto, até hoje não pagou os R$ 500 da sentença.
Desta vez, antecipando-se ao que a Justiça pode decidir sobre Ana, ele redigiu uma carta ao Ministério Público argumentando que “o direito à escola não pode ser confundido com a imposição de frequência escolar”. O documento foi enviado a outras famílias que respondem à Justiça para ser encaminhado como referência de defesa. É uma tentativa de criar jurisprudência – conjunto de decisões que sirvam como referência para orientar juízes em casos semelhantes -, uma vez que, com a pulverização das iniciativas, o Judiciário não tem um padrão para reagir às denúncias.
Mas também é uma mostra de força do movimento, hoje representado pela Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), fundada em 2010. A entidade promove encontros de pais e apoia famílias com suporte jurídico. Além disso, pressiona o Congresso para aprovação do projeto de lei 3.179/12, que regulamenta a educação domiciliar no País. A proposta do deputado federal Lincoln Portela (PR-MG) é de que estudantes possam aprender em casa, supervisionados e avaliados periodicamente.
Com nota 450 na prova e 500 na redação do Enem, é possível concluir o ensino médio ser ter ido à escola.
Licença para estudar
No Brasil, há só um caso de unschooling aprovado pela Justiça. Em Maringá (PR), o pedagogo Luiz Carlos Faria da Silva e a esposa Dayane podem educar em casa os filhos Lucas, 16 anos, e Julia, 15. Assim que não renovou a matrícula das crianças, em 2007, o casal foi denunciado. Após algumas audiências, o juiz liberou que os filhos estudassem em casa, mas com avaliações anuais e acompanhamento pedagógico e psicológico.
Em oito anos, a família nunca seguiu currículo fixo. Para aprender matemática, Lucas e Julia fizeram Kumon – método japonês que incentiva a autonomia nos estudos. As aulas de inglês eram com uma professora particular. Geografia, História, Ciências e Literatura foram aprendidas no dia a dia: o terraço do prédio em que moram, por exemplo, foi a sala de aula onde compreenderam o amanhecer e o poente.
O restante do tempo foi preenchido com cursos de balé, de natação e de música – oportunidades para que eles socializassem. Mais recentemente, a dupla começou a assistir a videoaulas gratuitas. No fim do ano passado, Lucas prestou o Enem e conseguiu pontuação para obter o certificado de conclusão do ensino médio e entrar em uma universidade.
Antes da faculdade, no entanto, os irmãos devem cabular mais um pouco: a ideia é morar um tempo fora do País, em algum projeto de intercâmbio ou de voluntariado. Ao avaliar a decisão de anos atrás, Luiz acredita ter escolhido certo, mesmo que isso tenha interrompido a carreira da mulher.
“Nunca imaginamos isso. Tínhamos expectativas boas e pesquisamos muito para encontrar a melhor escola. Quando os matriculamos, achávamos estar fazendo o melhor. Até notarmos que não queríamos aquilo para eles.” O pedagogo refere-se a valores morais que considera inadequados mesmo em instituições confessionais, como o colégio católico em que os filhos estudaram. “Eles ficavam assustados com a indisciplina, com amigos que não respeitavam crianças com deficiência.”
Liberdade controlada
A decepção de Luiz costuma motivar outro tipo de educação caseira: o homeschooling. Nesse modelo, os pais seguem o currículo escolar em casa, com horários estipulados de estudo e metas de aprendizagem. Muitos dos adeptos fazem essa opção para educar os filhos longe do bullying e de um ensino religioso que a família desaprove.
Em um mapeamento feito com 62 famílias brasileiras – fazer esse tipo de pesquisa é difícil, já que vários entrevistados agem na clandestinidade – o pesquisador André de Holanda Padilha Vieira, da Universidade de Brasília (UnB), construiu um retrato do homeschooling no Brasil. Quase todos os pais-educadores são casados e têm escolaridade superior à média nacional. Em 70% das famílias, as mães encabeçam a educação caseira, enquanto os pais têm ocupação fora do lar; em 84% dos casos, os pais estabelecem um período diário de aprendizagem de até quatro horas.
A família de Eliseu Moreira Júnior, 20 anos, encaixa direitinho nesse perfil. Quando tinha 8 anos, os pais tiraram os três filhos da escola. Os irmãos, Samir, com 7 anos, e Hadassa, 10, não gostaram e voltaram às aulas. Vítima de provocações por ser negro e tímido, Eliseu aprovou. “Foi bom me livrar do bullying, mas não foi isso que motivou meu pai. Ele queria preservar nossa fé. Não concordava com muitas coisas do colégio e temia que fôssemos influenciados.”
O pai organizou um calendário com horários e conteúdo. Coube à mãe, Maria Neide, que havia cursado o magistério, virar professora dos filhos. A partir do ensino médio, cada um estudava sozinho as disciplinas que precisava para o vestibular. Com ideia fixa de cursar Medicina, Eliseu comprou aulas virtuais de Química, Física e Matemática.
Em 2013, fez 920 pontos na redação do Enem, mas a nota da prova não foi suficiente. No ano passado, dedicou-se mais às disciplinas de Exatas, melhorou o desempenho e ingressou na Universidade Estadual de Santa Cruz, na região de Itabuna (BA), onde vive a família.
Agora, a fama do futuro médico que passou no vestibular sem frequentar o colégio cresce na cidade. E faz discípulos. “Quando meus pais trouxeram a escola para casa, só eles faziam isso por aqui. Agora são muitos, mas ficam calados, se escondendo do Conselho Tutelar.”
Já não se discute a capacidade familiar de garantir o aprendizado e a socialização dos filhos fora da escola. O debate atual é sobre quem deve decidir pelo ensino caseiro: filhos ou pais?
A toda prova?
O rendimento acadêmico de Ana e Eliseu, assim como as atividades socializantes de Lucas e Julia, respondem aos questionamentos mais comuns dos pedagogos na época em que o ensino caseiro engatinhava no Brasil, no início dos anos 2000. Atualmente, já não se discute a capacidade das famílias de garantir o aprendizado e a socialização dos filhos fora da escola.
No entanto, outras questões mais complexas e sutis vêm à tona. Pedagoga da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Luciane Muniz Ribeiro Barbosa defendeu, em 2013, uma tese de doutorado sobre o ensino domiciliar no Brasil. Ao acompanhar o desenrolar jurídico de alguns casos e compará-los a experiências internacionais, a pesquisadora chama a atenção para pontos pouco discutidos, como a não participação dos filhos na escolha por estudar na escola ou não e o cardápio restrito de conteúdo oferecido a eles em casa.
Em relação à opção por ensinar em casa, Luciane acredita que boa parte dos pais considera a própria má experiência como estudante para decidir não matricular os filhos na rede de ensino. “O ideal é que a decisão seja dos filhos. No Canadá, conheci uma mãe que fazia homeschooling com a criança mais nova, que não se adaptou à escola. As duas mais velhas adoravam o colégio e nunca saíram. Isso é respeitar a liberdade da criança”, diz Luciane.
Também em nome da liberdade, esses pais tentam oferecer experiências que potencializem o aprendizado de temas que interessem aos filhos. A intenção é boa, mas a prática pode ser limitadora. “Não necessariamente a criança terá interesses em coisas que não conhece. Um estudante cuja família estimule o estudo das artes e das humanidades pode não ter a chance de aprender conceitos de química ou biologia. E se um dia ele pensar em ser médico ou farmacêutico?”, questiona a educadora. “Será que no unschooling a gente também não está tolhendo ou limitando as possibilidades da criança?”
São questões que deveriam ser consideradas caso o Brasil optasse por regulamentar a escola em casa, uma vez que o Estado seria responsável por prover estrutura para avaliação acadêmica e psicológica dos alunos. E aí surge a terceira ponderação da pesquisadora: o custo da regulamentação do ensino domiciliar.
“Os países que já têm o básico, como acesso de todos à escola e qualidade na educação, estão livres para custear alternativas. Com a educação do jeito que está, o governo deve investir nisso ou gastar com melhorias básicas da rede pública?” Em casa ou na sala de aula, soltos na rua ou amarrados a conteúdos curriculares, parece que todos ainda temos muito a aprender.
No Brasil, estima-se que 2,5 mil famílias eduquem os filhos fora da escola. Veja quais são os países com mais estudantes caseiros:*EUA: 2 milhões
África do Sul: 150 mil
Rússia: 70 a 100 mil
Reino Unido: 20 a 100 mil
Canadá: 80 a 95 mil
França 12 a 23 mil*Fonte: Associação de Defesa do Ensino Domiciliar (HSLDA), EUA.