O apartheid não morreu
Aqui a discriminação é a lei. Numa África do Sul onde racismo é crime, um povoado se mantém 100% branco e vive como se fosse um país independente. Bem-vindo (ou não) a Orânia
Felipe Lessa, de Orânia, África do Sul
Quase todos os carros são brancos em Orânia. Já entre os motoristas não existe quase. São todos brancos mesmo. É um povoado de 700 pessoas fundado por brancos e que só aceita moradores brancos. “Viemos atrás do sonho de ter uma comunidade livre e segura. A África do Sul já foi um país de primeiro mundo há algumas décadas, mas infelizmente não podemos mais dizer isso”, diz Andries van der Berg, um oraniano de 24 anos.
Andries tem saudade de um tempo que nunca viveu para valer. Tinha só 4 anos de idade quando o apartheid acabou, em 1990. Nos 42 anos que a política de segregação durou, a elite de origem europeia era privilegiada em todas as esferas: tinha os melhores empregos e vivia em bairros nobres com serviços públicos comparáveis aos dos países ricos. Do outro lado dessa muralha invisível estavam 96% da população: negros e mestiços amontoados em periferias ocupando subempregos. Não ser racista era contra a lei, inclusive: o Estado proibia casamentos entre brancos e negros.
Em Orânia os muros também são invisíveis. Não há cancela com seguranças impedindo negros de entrar. Também nem seria permitido. A Constituição sul-africana mais recente, de 1993, transformou o racismo em crime. Se é assim, então, como Orânia é possível? Porque juridicamente esse povoado não é uma cidade. Mas uma empresa. O lugar em si está subordinado a um município de verdade, Hopetown. Não tem prefeito próprio. Mas tem presidente. E os moradores são os acionistas. Ao comprar uma casa lá, você vira sócio. Como qualquer empresa tem liberdade para recusar sócios, Orânia fica com autonomia para decidir quem pode e quem não pode viver lá, como se fosse um governo de verdade.
Isso foi possível porque os fundadores do lugar compraram uma vila operária abandonada no subúrbio de Hopetown – em 1990, logo que o apartheid acabou e Nelson Mandela saiu da prisão. A empreitada custou o equivalente a R$ 1,1 milhão em dinheiro de hoje. Mas isso só valeu pelo terreno, praticamente: eram 240 casas parcialmente destruídas, sem água, luz ou esgoto. “Começamos do nada”, diz, orgulhoso, John Strydom, um dos diretores do povoado-empresa.
Empresa não. País. Eles se sentem mais oranianos do que sul-africanos. Como qualquer nação, buscam depender o mínimo possível do exterior. E ter o máximo de autossuficiência econômica. De fato, a maior parte dos serviços e dos alimentos é produzida na própria cidade. Mesmo sem ter nem 15 ruas, Orânia possui bandeira e uma moeda própria: o ora, que vale o mesmo que o rand sul-africano.
É um sistema financeiro engenhoso: você pega seus rands e troca numa casa de câmbio. Ela deixa o dinheiro aplicado. Os rands não são mais seus, a troca já foi feita. Mas você pode sacar os juros depois. Além disso, vários comerciantes dão um desconto de 5% a quem pagar com o ora. É a colaboração deles para criar uma identidade nacional. E para fortalecer a economia local também. Com a moeda local, oraniano gasta com oraniano, não com sul-africano.
“Nosso objetivo é manter o dinheiro dentro da cidade e, com isso, criar empregos”, diz Frans de Klerk, o CEO. Não dá para dizer que não deu certo. Em quase 20 anos de existência, foram construídas 3 igrejas, duas escolas, dois museus e uma estação de rádio. E a maior parte dos oranianos tem negócios próprios no povoado, não precisa sair de lá para ganhar a vida.
Mas, cá entre nós, têm de contar com uma mãozinha dos sul-africanos. O posto de gasolina de Orânia, por exemplo, depende dos motoristas negros para sobreviver. Como ele é o único num raio de 15 quilômetros, os habitantes das redondezas abastecem por lá também. Para ter uma ideia, a SUPER viu durante 1h30 só 4 carros com brancos contra 13 com negros. “Sempre passo por aqui e nunca me trataram mal, mas também nunca abriram um sorriso. Lógico, eu estou gastando meu dinheiro no posto. Mas não gosto deste lugar. Nem um pouco”, diz a comerciante negra Corina Mathlante.
O isolamento parece não ter fim. Enquanto o país está fervendo por causa da Copa do Mundo, que começa em 11 de junho, o clima em Orânia está frio, até gelado. Sabe como seria se o Brasil sediasse o próximo mundial de curling? É mais ou menos assim que está o clima do povo de Orânia para a copa. “Acho que algumas pessoas vão assistir os jogos pela televisão…”, desconversa John Strydom. O negócio ali é atletismo e rúgbi, o esporte tradicional da elite branca.
Tribo de holandeses
O racismo dos oranianos não se limita a um brancos x negros. A questão étnica ali é mais profunda. Tanto que não é qualquer tipo de branco que vive por lá: somente africâneres, os descendentes dos holandeses que iniciaram a colonização do país no século 17 (“orânia” vem de orange, a cor-símbolo da Holanda). Se você for um branco sul-africano descendente de ingleses, que também dominaram a região, não entra.
O fato é que os africâneres dominaram politicamente e culturalmente o país na época do apartheid, mas perderam parte desse poder com a democratização, em 1994. O idioma africâner, um dialeto que veio do holandês dos anos 1600, fazia parte das matérias obrigatórias nas escolas e era número 1 nas universidades. Com a democratização, o inglês tem se tornado dominante no ensino, constituindo também uma segunda língua universal – pela qual as dezenas de etnias negras do país podem se comunicar. “Fomos marginalizados”, reclama (em inglês) Carel Boshoff, um dos fundadores de Orânia.
Faz muito mais tempo que os africâneres se sentem marginalizados. Começou quando os ingleses invadiram a praia deles na Áfica do Sul, atrás das jazidas de diamante e de ouro, em 1877.
Os súditos da rainha Vitória expulsaram os colonos descendentes dos holandeses à bala. Aí os africâneres reagiram e pegaram suas terras de volta depois de uma batalha sangrenta. Após muita negociação, um acordo de paz acabou assinado. Pois bem, esse foi só o primeiro episódio. Na virada para o século 20 começaria outra guerra pelo ouro. E os ingleses, com um exército bem superior, massacrariam os africâneres, mandando milhares deles para férias forçadas em campos de concentração.
Se museus existem para relembrar o passado, o de Orânia faz isso com maestria: a maior parte do acervo é composto de carabinas, revólveres e espingardas. São 43. Fora a réplica de cera representando o sofrimento das mulheres nos campos de prisioneiros.
Independência. Ou morte?
Mesmo com uma história de tanta tensão, a relação com o governo é surpreendentemente boa. Prova disso é a visita feita pelo então presidente Nelson Mandela, em 1994, como um gesto de reconciliação entre negros e africâneres. O atual chefe de Estado, Jacob Zuma, também demonstrou interesse em conhecer o povoado. Uma amostra de simpatia, mas também da total falta de receio do governo sul-africano com esses loirinhos que brincam de Banco Imobiliário em seu bairro.
Mas isso não impede Orânia de pensar grande. “Vejo um futuro promissor. Somos uma alternativa para os africâneres e continuaremos crescendo.” Crescendo até declarar independência? “Não. Não pretendemos nos tornar uma nação. Mas, se a relação com a África do Sul ficar ruim, será a nossa única opção. Para nos sentirmos seguros, precisamos sentir que pertencemos a algum lugar”, diz Boshoff. Mas talvez exista um jeito melhor de saber sobre o futuro de Orânia do que perguntar para os líderes: dar uma volta na piscina pública de lá. É o ponto de encontro dos adolescentes, cheio de casais namorando, moleques fazendo brincadeiras… Lá de trás vem uma garota usando um daqueles óculos tipo persiana, cheia de pose. Na mão um aparelhinho tocando Single Ladies, da Beyoncé. Shantal Williams, 16, não tem nada do jeitão tradicionalista-rural dos africâneres. A menina quer se formar em música – em outra cidade, claro. “Até gosto de morar aqui, mas prefiro lugares de cultura mista, sabe? A gente pode trocar talentos com pessoas diferentes… Aqui é tudo muito igual.”
Localização – África do Sul, a 650 km de Johannesburgo
População – 700
“Independência” (ano da fundação) – 1991
Atividade econômica – Agricultura de azeitonas, pêssegos e figos.
Forma de governo – Empresarial.
Etnia – Africâner.
Para saber mais
The Afrikaners: Biography of a People
Hermann Giliomee , University of Virginia Press, 2003.
Foto: Orania Beweging / Creative Commons 3.0