Vai viajar? Leve seu estômago junto
Boa parte dos viajantes refugia-se em hambúrgueres e pizzas para evitar pratos de outras culturas. A comida confortável, porém, que nos perdoe: aventurar-se por novos sabores é fundamental.
Anthony Bourdain estava na Namíbia quando foi convidado para caçar com os saan, durante as gravações de um episódio para a série No Reservations, em 2007. O chef e apresentador americano, que morreria em 2018, acompanhou a emboscada e a morte de um facóquero –espécie de javali africano, celebrizado na cultura pop como o Pumba de O Rei Leão.
Os saan – previamente conhecidos como bosquímanos, ou “homens das moitas” – são um dos últimos povos isolados da África meridional. Não fizeram fama pela gastronomia. O tal javali, ante as lentes da equipe de Bourdain, foi jogado com pelo e couro, sem sal nem nada, numa fogueira. Coberto de brasas e terra, assou até quase carbonizar. Para o convidado de honra, os caçadores separaram a parte mais cobiçada do animal: o reto.
Um dos anfitriões removeu a extremidade sul do tubo digestivo do Pumba e o ofereceu a Bourdain – não sem antes expulsar as fezes que ainda estavam lá, espremendo o intestino grosso da caça como quem aperta um tubo de pasta de dente.
Visivelmente horrorizado, o americano comeu o – com o perdão do termo – fiofó do bicho. Tentou, sem sucesso, fazer cara de hakuna matata. Seria uma desfeita recusar a oferenda de gente tão hospitaleira.
Pode-se argumentar que a cena rendeu audiência e, por isso, precisaria ser feita. Pode-se também dizer que Bourdain, um cavalheiro em cosplay de bruto, era um homem branco rico que carregava todas as culpas de homem branco rico. Outra verdade. Passemos para o exemplo seguinte.
Diplomacia gastronômica
Não conheci Batu Khan, mas posso afirmar sem receio que ele era um homem mais rústico do que a maioria dos chefes de Estado deste século 21.
Por volta de 1240, Batu, neto de Gêngis Khan, foi recebido para um banquete no Monastério da Ressurreição em Uglitch, ao norte de Moscou. O comandante das hordas mongóis havia conquistado a Rússia numa campanha inaudita de torturas, estupros, mutilações e crueldades afins.
Destruídos pelo khanato, os russos apenas podiam aceitar com abnegação a presença do líder mongol, que já havia se instalado com a família às margens do Rio Volga. No banquete em questão, uma das sobremesas se destacava pelo inusitado, mesmo para a época: maçãs em calda com ovas salgadas de esturjão – a iguaria que mais tarde seria conhecida como caviar, algo que deve ter pirado o cavaleiro das estepes. No mau sentido.
A mulher de Batu se retirou do recinto em repulsa. O temido Khan comeu a maçaroca, sorriu e agradeceu.
Isso se chama diplomacia. Até o mais mal-acabado dos seres humanos tem o dever de provar a comida que lhe é oferecida com boa-fé num esforço de estreitamento de laços. A regra deveria valer não apenas para diplomatas de carreira e políticos, mas para qualquer viajante. Experimentar a comida local denota curiosidade e apreço pela cultura do anfitrião. Mas não é assim que acontece. E os maus exemplos vêm do andar de cima.
Donald Trump só come hambúrguer, frango frito e pizza, e carrega a tralha alimentícia nas viagens internacionais.
Jair Bolsonaro, que não gosta de peixe cru, refugiou-se numa hamburgueria em Tóquio, uma cidade que tem muito mais a oferecer da culinária japonesa do que sashimi. Depois disse a jornalistas que praticamente não comeu no banquete de entronização do imperador Naruhito. De volta ao hotel, preparou um miojo – que tinha viajado na bagagem desde Brasília.
Drake, rapper canadense multimilionário, recusou qualquer alimento brasileiro em sua passagem pelo Rock in Rio. Trouxe consigo um chef, que invadiu a cozinha do hotel para fritar as batatinhas do músico.
Esse trio de viajantes desconfiados não está sozinho, claro. Tal comportamento é a regra, não a exceção.
McLanche Feliz
A loja do McDonald’s da Piazza di Spagna, em Roma, é frequentada por turistas e suas meias pretas até os joelhos. Num raio de 50 metros, eles poderiam adquirir espaguete à carbonara, alcachofras fritas à judia, bacalhau à romana, porchetta e até a desafiadora pajata – intestinos de bezerros abatidos antes do desmame, sem remover o leite semidigerido, uma espécie de queijo. É a versão gourmet do Pumba que Tony Bourdain encarou na Namíbia.
O Mercado da Ribeira, em Lisboa, ferve com turistas que vão à praça de alimentação administrada pela revista britânica Time Out. Lá tem de tudo que se possa comer em Portugal. Sardinhas, alheira, morcela, percebes, bacalhau em suas múltiplas formas, croquetes cremosos, chouriços, presuntos, doces conventuais, bifanas, pregos e lagostas sapateiras. Onde se forma a maior fila? Na hamburgueria.
Poucas coisas simbolizam tão bem o desdém gastronômico quanto o hambúrguer. Ele é um refúgio familiar e confortável para pessoas do mundo inteiro. Mais do que isso, é algo literalmente fácil de comer. O pão é macio, o queijo é mole, a carne já vem moída. E o que temos é a versão alimentar da música pop descartável.
A infraestrutura do turismo global destrói o sentido das viagens, pois se dedica a proporcionar experiências familiares.
Em parte, a aversão pelo diferente se deve à indústria de turismo global, instalada desde o pós-guerra. Viajar para o exterior significa status, o privilégio de dispor de dinheiro e de tempo livre. Esse status é mensurável pelo número de países e de lugares famosos visitados. A alimentação é um ponto secundário nesse turismo de resultados.
A própria infraestrutura criada em torno desse turismo destrói o sentido das viagens. O estrangeiro em deslocamento tem ao seu alcance um vasto arsenal de experiências familiares: as redes de hotel com quartos idênticos no planeta inteiro, os ítens sempre iguais do minibar, a hamburgueria do outro lado da rua.
O melhor a fazer, de qualquer forma, é fugir desse conforto. Quem busca só familiaridade pode ficar em casa mesmo. Viajar significa ampliar os horizontes, aprender coisas novas. E parte desse aprendizado acontece via estômago.