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Já existe pena de morte no Brasil

Sem o aval da Justiça, milhares de pessoas são executadas por ano pelo Estado. A polícia decide, quem merece viver ou morrer. E é apoiada pela população

Por Camila Almeida
Atualizado em 9 out 2018, 19h15 - Publicado em 1 dez 2015, 14h00

Era Semana Santa, e uma ação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) aterrorizava o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Quando policiais cruzaram com um grupo de homens armados na Rua 2, teve início mais um episódio da guerra que domina o morro. Os tiros anunciavam, às quatro da tarde da quarta-feira, o fim prematuro da Quaresma. Quando silenciaram, já na quinta-feira santa, tinham calado também quatro vidas. Entre elas, a do menino Eduardo de Jesus, de 10 anos, que estava na porta de casa quando levou um tiro de fuzil na cabeça. Foi assassinado por um policial, que virou as costas sob a pecha de “covarde!” e sob o choro desesperado de uma mãe.

Elizabeth de Moura Francisco, de 41 anos, também estava em casa quando foi baleada. Era funcionária de uma creche no alto do morro. Sua filha Maynara, de 16 anos, acabou atingida no braço. As duas foram levadas para o hospital às pressas, mas só a menina voltou para casa. O jovem Mateus Gomes de Lima, de 18 anos, foi executado na Rua Canitar, numa troca de tiros em que o adolescente Davyson Monteiro da Silva, de 15 anos, também acabou baleado, mas resistiu aos ferimentos. Já Rodrigo de Souza Pereira, de 24 anos, nem chegou a receber socorro. Levou um tiro na cabeça e permaneceu estendido no chão, com o sangue melando a sola dos coturnos e dos chinelos dos moradores que se aglomeraram em sua volta.

Se não houvesse tantos celulares em punho, é possível que ações como essas jamais fossem notícia além daquelas ruas. Vídeos e fotos dos corpos ensanguentados e dos abusos cometidos pelos policiais foram massivamente compartilhados. Nas redes sociais, moradores se encarregaram de fazer a cobertura em tempo real da tragédia. Uma passeata de denúncia, na sexta da Paixão, foi duramente reprimida: bombas de gás e spray de pimenta foram lançados nos manifestantes. No domingo de Páscoa, o governador Luiz Fernando Pezão anunciou que vai intensificar o policiamento no morro.

Suspeitos por definição

Ações como a do início de abril são rotina nos bairros pobres brasileiros. Qualquer morador é por definição suspeito e precisa provar, todos os dias, sua inocência. Em fevereiro, morreu nas mãos da polícia o adolescente Alan de Souza Lima, de 15 anos, no mesmo Rio de Janeiro. Estava correndo pela rua com os amigos, brincando, quando levou um tiro. Com o celular em mãos, gravou sua própria morte, e o vídeo desmente a versão dos policiais. No boletim de ocorrência, constam relatos de confronto com policiais. Também ficou registrado que Alan portava uma arma. A gravação surge como a prova da inocência, infelizmente tardia.

A polícia brasileira é uma das mais letais do mundo. Seis pessoas morrem, todos os dias, pela ação de policiais. Só em 2013, foram 2.212 cidadãos executados pelo Estado. Em cinco anos, nossa polícia matou tanto quanto a dos americanos num período de 30 anos. É o que escancaram os dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Já a pesquisa Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo, desenvolvida por pesquisadoras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), aponta que os jovens negros são maioria nas mortes. Das vítimas mortas por policiais entre 2009 e 2011, 61% eram negras. Mais da metade tinha menos de 24 anos.

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Nada disso é de hoje. A socióloga Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, analisa que a letalidade da polícia militar tem raízes na sua formação, dois séculos atrás, quando o ideal era a manutenção da ordem a qualquer custo. Pouco mudou. Em maio de 1932, o estopim da Revolução Constitucionalista foi quando a polícia matou quatro estudantes que se manifestavam contra a intervenção de um representante da ditadura no governo paulista. Não é difícil perceber que esse tipo de atuação perdura até hoje, só que nas periferias, e com muito mais frequência. “A Constituição de 1988 não reformou a polícia. Estamos vivendo esse momento agora, passando pelo processo de adequá-la, em um novo movimento democrático”, explica, salientando a necessidade de mudar o paradigma. “Para muitos, o policial é um combatente a serviço da lei, quando, na verdade, o policial é um servidor público a serviço do cidadão.”

Mudança de inimigo

Mas foi a partir da ditadura militar no País que a letalidade policial ganhou evidência. No final da década de 1960, com a atuação do Esquadrão da Morte, sob comando do delegado Sérgio Fleury, policiais exterminavam guerrilheiros, protegidos pelo discurso de defenderem a sociedade contra os “maus elementos” que perturbavam a ordem pública. O grupo era louvado pelas secretarias de segurança do Rio e de São Paulo e até por parte da imprensa. “Durante a ditadura, o guerrilheiro era o inimigo”, comenta o especialista em violência Bruno Paes Manso, pesquisador da USP, que analisou a história dos homicídios em São Paulo sob a ótica da prática policial.

A redemocratização chegou, mas os policiais continuaram os mesmos. E o padrão de atuação também. “O inimigo deixa de ser o guerrilheiro e passa a ser o bandido. Exterminá-lo resolveria o problema da desordem”, diz o pesquisador. Em paralelo, a criminalidade nas grandes cidades foi mudando de figura. Até meados dos anos 1960, os assassinatos aconteciam apenas na esfera familiar. Era o caso do marido que matava a mulher ao descobrir uma traição ou de parentes que se matavam por dívidas mal resolvidas. “O homicídio era um tipo de ação antissocial. Quem o cometia era quase um monstro”, lembra o pesquisador.

Com o desenvolvimento da cidade de São Paulo, houve migração intensa de habitantes da zona rural para a cidade e eles se instalaram nas periferias. Entretanto, as gerações que nasciam já não reconheciam suas raízes do interior. Envergonhavam-se da caipirice dos pais. “Esses jovens entraram para a criminalidade para conquistar destaque e poder no meio urbano”, avalia. Então, os crimes foram se desvinculando da esfera familiar para se tornar um problema social. Como uma resposta a isso nasceu a figura do justiceiro, nos anos 1980, que vingava especialmente os frutos roubados do trabalho, extremamente valorizado naqueles bairros erguidos por trabalhadores. Os próprios justiceiros eram, na maior parte das vezes, migrantes rurais. Se espelhavam na atuação letal da polícia para atuar. Estima-se que tenham matado mais de mil pessoas na Grande São Paulo, o que gerou ainda mais ciclos de violência e vingança.

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O extermínio legalizado

Hoje, dentro dos batalhões, ainda existem grupos de extermínio. Geralmente se formam para vingar a morte de algum colega e ganharam força em 2006, quando pipocaram os ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) vitimando policiais. Em resposta, 493 foram mortos em uma semana, no episódio que ficou para a história como os Crimes de Maio. Em 2012, os ataques em massa se repetiram, as respostas também. E esse embate armado está longe de acabar.

Os PMs mais novos são os mais suscetíveis às regras dos grupos de extermínio, até para serem respeitados pelo grupo e pelos oficiais que os comandam. Para o advogado Julio Cesar Neves, ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, a desarticulação desses grupos passa pelo combate à impunidade. “Os policiais mais novos fazem o que fazem porque sabem que nada vai acontecer com eles. Não veem ninguém precisando responder pelos seus atos”, critica. Uma das maiores brigas da Ouvidoria é conseguir que os crimes cometidos por policiais sejam julgados corretamente. Na pesquisa desenvolvida pela UFSCar, em São Paulo, consta que 94% dos agentes autores de mortes não precisaram responder judicialmente – o argumento é de que agiram em legítima defesa ou de acordo com o exercício da função. Apenas 4% dos policiais foram indiciados, e só uma porção ainda menor que essa deve ter sido condenada e punida.

Em grupos do WhatsApp e em blogs, policiais compartilham fotos de corpos baleados em operações sem qualquer receio. Celebram a morte de criminosos. “A mentalidade é de guerra. E a estrutura estimula isso, existe uma moral da tropa a ser mantida”, aponta Paes Manso, que participou de um desses grupos por alguns dias em março. Essa moral que ele menciona tem a ver com não se acovardar, nem deixar barato. “O policial que mata é valorizado, é considerado um verdadeiro homem e ganha status por ser o cara com sangue nos olhos, que faz de tudo pela corporação”, diz.

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Mas é importante não deixar rastros publicamente nem correr o risco de criar provas contra si mesmo. Para isso, existem artifícios, como a utilização de toucas ninja, o despejo de cadáveres em cemitérios clandestinos, a coleta das cápsulas de balas após o assassinato e até o chamado “kit flagrante”, que alguns policiais carregam para forjar a cena do crime: plantam armas brancas, armas de fogo sem registro ou drogas no local, para defender que a vítima era criminosa.

A Polícia Militar de São Paulo, que respondeu às nossas perguntas por meio do seu centro de Comunicação Social, nega a existência de qualquer prática criminosa dentro da instituição e diz ser implacável quando são identificados “bandidos usando farda”. “Qualquer morte suspeita é prontamente investigada. O envolvimento de policiais, embora seja exceção, é exemplarmente punido quando identificado”, diz a nota. Salientaram que, em 2014, 305 policiais militares foram demitidos ou expulsos da corporação, como punição pela participação em atividades criminosas.

A letalidade é a realidade

Para tentar impedir que os casos fossem forjados, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo determinou, em 2013, que policiais não poderiam mais prestar socorro às vítimas e, assim, garantiriam que o local do crime e a idoneidade da investigação fossem preservados. Também foram proibidas as expressões “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência, devendo ser substituídas por “lesão corporal ou morte decorrente de intervenção policial”. A mudança altera a forma como se enxerga o fato: ele tem um autor, e é um policial. Em março de 2015, foi aprovada uma resolução que exige que, em casos de mortes cometidas por policiais, o Ministério Público e a Corregedoria de Polícia sejam acionados imediatamente.

Na sala do Major Renato, do Batalhão da Polícia Militar do bairro de São Mateus, na zona leste de São Paulo, policiais se queixam da nova medida. “Eles fazem de tudo para incriminar o policial, como se nós fôssemos os criminosos”, reclama o major. A delegacia de São Mateus foi a que mais registrou mortes cometidas por policiais em 2014: chegaram a 16. Os agentes alegam que precisam lidar com situações difíceis todos os dias. “Aqui é uma das regiões mais violentas da capital. O Samu não atende uma ocorrência na favela se a polícia não entrar primeiro”, relata o major. “Muitas vezes, somos recebidos com tiros.” Confrontos envolvendo policiais de folga também são frequentes.

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“O bandido chega apontando uma arma, colocando em risco a vida do policial, e ele vai fazer o quê, senão responder à altura?”, questiona o Major Renato. A Polícia Militar de São Paulo afirma que o policial é preparado para situações de tensão e que todos possuem suas próprias armas, coletes à prova de balas, cassetetes, balas de borracha e spray de pimenta. “É importante ressaltar que a opção do confronto é sempre do criminoso, não da polícia”, diz a nota. Sobre os altos índices de letalidade, a PM se disse insatisfeita. Em 2013, foram 635 pessoas mortas no Estado, maior número no Brasil. Já na taxa de mortos pela polícia em relação à população, São Paulo ficou em quarto lugar. “O valor defendido por qualquer polícia séria é a vida, independentemente de ser criminoso.”

A população aponta a arma

Um grupo de admiradores da Rota, a tropa de elite de São Paulo, criou um blog para exaltar as ações do grupo. O agrupamento é o que causa o maior número de mortes a civis: só em 2014, foram 13 casos registrados. Numa das postagens, comemoram a execução de um homem suspeito de já ter matado um policial, que se vangloriava disso nas redes sociais. “Ladrou tanto que um fim trágico foi inserido à sua trajetória”, diz o texto. Fotos do homem com a cabeça estourada se misturam a outros corpos ensanguentados presentes no blog. Entre os comentários, um leitor pondera: “Me sinto triste ao me deparar com uma cenas dessas… aí me lembro que ele era um bandido, a tristeza passa e abro um sorriso. Afinal, um a menos”.

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A ideia de que bandido bom é bandido morto está disseminada tanto na corporação quanto na população e acaba blindando quem mata. O julgamento, a condenação e a execução acontecem em segundos, na rua, sem qualquer investigação ou sentença. “A gente está delegando ao policial a decisão de quem deve viver ou morrer”, critica Samira Bueno. Vivemos como se tivéssemos pena de morte, só que não temos. E mesmo que ela constasse no Código Penal, estaríamos ignorando um rigoroso protocolo legal a seguir.

Nos Estados Unidos, onde a maior parte dos Estados admite a execução legal, 35 pessoas cumpriram essa pena em 2014, com duração média de 18 anos desde a sentença até a execução. Na Indonésia, onde o brasileiro Marco Archer Moreira foi executado em janeiro deste ano, não teve nenhum caso em 2014. Por mais que cerca de 30 países adotem a pena capital, são minoria. Em 1945, quando foi criada a ONU, apenas oito nações tinham abolido a pena de morte. Hoje, são 140.

A socióloga Samira Bueno avalia que, no Brasil, essa pena de morte não institucionalizada, mas presente nas ruas, é motivada, em parte, pela descrença no sistema judiciário. “O policial é entendido como um herói contra o crime. Por isso que segmentos expressivos da população apoiam essas práticas da polícia.” Essa crise na segurança pública desperta o desejo de vingança na população. E ela acaba participando dessa guerra de ódio, alimentando um ciclo em que policiais se orgulham de matar bandidos e criminosos se orgulham de matar policiais – ostentando tatuagens com a figura de palhaço no corpo para indicar que são matadores de agentes públicos.

“O problema é que não se tem percebido um dos efeitos mais perversos disso, que é a morte dos próprios policiais. Quando matam, eles se tornam vítimas em potencial. São dois fenômenos que estão intrinsecamente ligados. Só que o policial morre, na grande maioria das vezes, quando está fora do serviço. Sem farda, sem rádio, sem apoio operacional”, complementa Samira. Os números do anuário de segurança evidenciam isso: a cada 4,5 pessoas mortas por policiais, um policial é morto – foram 490 agentes assassinados em 2013. Apenas 25% deles estavam em serviço e esse tipo de ocorrência dobrou nos últimos dois anos. A Polícia Militar de São Paulo defende que, para reduzir esses números, a legislação passe a considerar crime hediondo aquele praticado contra os agentes.

Nesse cenário violento, muitos inocentes têm morrido. Crianças como Eduardo de Jesus, mulheres como Elizabeth, homens como o Amarildo, ajudante de pedreiro da Rocinha, desaparecido numa viatura policial para nunca mais ser visto. E milhares de outros, todos os dias. Para Samira, é difícil combater os altos índices de letalidade da polícia quando nem a própria população percebe que, com essa guerra, ninguém sairá vencendo. “As pessoas não entendem que, amanhã, pode acontecer com elas.”

Leia também:

– Dossiê: Polícia (por um Brasil menos violento)

– Pistola .40: a arma da polícia brasileira

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