A mulher da vida real por trás da Barbie
A empresária Ruth Handler se inspirou num brinquedo erótico para criar a boneca de 64 anos, um ícone cultural que agora é interpretado por Margot Robbie.
Uma máquina de refrigerantes real, mas feita para o tamanho de crianças. Um carrinho movido a gás que chegava a 35 km/h. Ursinhos de pelúcia Teddy Bear, batizados em homenagem ao presidente dos EUA Theodore (“Teddy”) Roosevelt (1858–1919) – que, numa atividade de caça, se recusara a atirar em um urso acuado. Essas eram algumas das atrações na edição de 1959 da tradicional Feira de Brinquedos de Nova York, um evento em que os fabricantes exibem novidades com a esperança de emplacar seus produtos nas prateleiras das lojas – e que existe até hoje.
A Mattel, fundada em 1944, chamou atenção do jornal New York Times por um foguete de plástico que conseguia subir 60 metros pelos ares. E havia contexto para isso: a corrida espacial dominava o noticiário na época.
Mas as expectativas de Ruth Handler, vice-presidente da empresa, estavam em outra criação de sua equipe, baseada numa inspiração sua. Ela levou à feira duas dezenas de bonecas fashionistas, de 29,2 centímetros, à imagem e semelhança de garotas saindo da adolescência para a vida adulta. Cada uma com um figurino diferente: de um vestido de noiva a um maiô com estampa de zebra e óculos escuros. Uma ousadia. As bonecas que predominavam no mercado eram as de bebês – reproduzindo o espírito conservador dos anos 1950, quando as meninas se viam encorajadas a ser donas de casa e criar filhos. Mas as esperanças da executiva foram frustradas naquele dia.
Lou Kieso, comprador da Sears, então a loja de departamentos mais importante dos EUA, não gostou do que viu e foi embora sem fazer nenhum pedido – assim como metade dos executivos que passaram pelo estande. Aqueles homens ficaram escandalizados com a silhueta da Barbie – que ganhara esse nome por causa da filha mais velha de Ruth, Barbara. Tinham certeza de que as mães não aprovariam uma boneca com seios para suas crianças (impressão que se confirmaria em uma pesquisa encomendada pela empresa antes de iniciar a publicidade do brinquedo na televisão).
“A Mattel chamou a boneca de Teenage Fashion Model Barbie Doll [tradução mais precisa: ‘Barbie, a Modelo Adolescente’]. Era uma tentativa de aplacar sua sexualidade e invocar, para os pais, a ideia de que muitas garotas gostariam de ser tratadas como uma modelo”, explica a historiadora Robin Gerber, autora de Barbie e o Império da Mattel. “Mas nenhuma quantidade de redatores publicitários conseguiria disfarçar as proporções da Barbie, calculadas como tendo 99 centímetros de busto se em uma mulher adulta [o que exigiria um sutiã tamanho GG].”
Ruth saiu arrasada do evento e terminou a noite chorando num quarto de hotel. Ela ainda não sabia, claro, mas o fracasso no showroom era apenas a reação imediata de um mercado conservador – nada ligado ao que se passa na cabeça das meninas.
Inspiração erótica
Em 1956, enquanto passava férias na Europa, Ruth Handler encontrou uma boneca na Suíça que não se parecia com nada do que ela já tinha visto. Lilli era vendida com diferentes roupas. As que ela viu tinham um figurino de moda europeia e um traje completo de esqui. As bonecas reproduziam a imagem de uma adulta: tinham lábios vermelhos em um biquinho provocante, seios fartos e cintura fina. Para Ruth, um modelo similar, menos caricato, poderia atrair as meninas como “a mulher que elas gostariam de ser quando crescessem”.
O que a executiva não sabia: o público consumidor de Lilli, no início, não eram crianças ou adolescentes. Ela foi criada para ser um brinquedo erótico. Era vendida em bares, tabacarias e sex-shops. “Homens ganhavam de presente em despedidas de solteiro”, afirma Robin Gerber. A personagem nasceu em uma HQ cheia de diálogos sugestivos. Perseguia homens ricos fazendo poses provocantes em roupas que mais mostravam que cobriam o corpo. Levou um tempo até que essa história fosse esquecida e o comércio da boneca se estendesse às meninas.
Ainda ignorando as origens devassas do brinquedo, Ruth de cara identificou um erro estratégico, que ela poderia corrigir em sua versão americana: eles não vendiam as roupas separadamente. Se a garotinha quisesse cinco figurinos diferentes, seus pais precisariam comprar cinco bonecas. Seria mais eficiente vender roupas e acessórios à parte – opção que também se tornaria uma fonte de faturamento para o fabricante.
Maquiador de Hitchcock colaborou no look
De volta aos EUA, Ruth estava decidida a criar sua versão melhorada da boneca europeia. Cercou-se, então, dos melhores profissionais e supervisionou cada detalhe da criação.
Para suavizar o rosto sexualizado de Lilli, contratou Bud Westmore, maquiador do cinema, que trabalhava nos programas de TV de Alfred Hitchcock.
Para melhorar as chances de que a operação fosse lucrativa, a Mattel mandou produzir as bonecas no Japão – o país era a China da época, com vasta estrutura fabril e mão de obra ainda barata. Foi uma boa ideia, embora falhas de comunicação tivessem provocado alguns erros: os japoneses não entenderam quando o designer Jack Ryan insistiu para que a boneca viesse sem mamilos. O próprio Ryan lixou os bicos dos seios das primeiras Barbies com seu canivete.
Outra obsessão de Ruth era com a sofisticação das roupas da boneca. Mas a fixação com os detalhes, como zíperes, colchetes, botões e bainhas, reduzia a lucratividade com os preços da matéria-prima. A solução, novamente, foi economizar na mão de obra. Mais uma vez, os produtos foram parar na Ásia, onde costureiras japonesas trabalhavam em home office e ganhavam por peça produzida, sem salário fixo.
A construção da personalidade
Na década de 1950, as empresas de brinquedos compravam tempo na TV apenas nas dez semanas anteriores ao Natal, período que concentrava 80% de suas vendas. A Mattel, então, fez diferente. Combinou um contrato de 12 meses com o maior programa infantil da época, O Clube do Mickey, na expectativa de tornar o negócio menos sazonal e estimular seu comércio o ano todo. O primeiro produto da empresa promovido dessa forma foi uma submetralhadora de brinquedo. Deu tão certo que a Mattel teve dificuldades para atender aos pedidos dos lojistas.
Com a Barbie saindo do forno, a ideia era lançá-la com uma série de comerciais também. Mas antes Ruth encomendou um estudo de modo a saber como vender sua imagem. Ela contratou, então, o psicólogo e consultor de empresas Ernest Dichter.
Considerado um gênio do marketing, ele usava as ideias de Sigmund Freud para desenvolver a noção de que os produtos tinham personalidade. (O que os marqueteiros de hoje chamam de branding.)
Analisando a Barbie, Dichter entrevistou 191 meninas e 45 mães. Estas torceram o nariz para a boneca com corpo de mulher, mas as crianças a adoraram. Elas diziam que Barbie era alguém que elas almejavam ser quando fossem adultas.
O psicólogo, então, sugeriu que a Mattel passasse uma mensagem que convencesse as mães de que a boneca ajudaria as filhas a se vestir melhor e ter uma referência positiva, de jovem ao mesmo tempo glamourosa e envolvida com esportes e estudos.
Seguindo essa linha, o comercial de lançamento da Barbie estreou na TV em março de 1959, mostrando-a como uma garota saudável que nadava, jogava tênis, ia a festas e gostava de roupas bonitas. A agência de publicidade até encomendou uma canção-tema para ser cantada pela estrela pop Connie Francis: “Um dia vou ser igualzinha a você / Até lá já sei o que vou fazer / Barbie, linda Barbie, vou fazer de conta que sou você”.
Quando as férias de verão chegaram, os telefones da Mattel não pararam de tocar. “A demanda disparou como um foguete por causa do comercial na televisão, o tempo livre para brincar nas férias e a novidade que era aquela boneca, fazendo garotinhas infernizarem os pais para ganhar uma Barbie”, conta Gerber.
Ainda em 1959 a Mattel venderia 350 mil unidades de sua invenção. E Barbie logo se tornaria a boneca mais bem-sucedida da história – hoje, a média anual de vendas é de 58 milhões de unidades, mais de 100 por minuto.
Nomes do panteão da moda, como Gucci, Versace e Givenchy fariam criações específicas para a boneca. E sua presença como ícone cultural seguiria intacta por gerações. Tanto que, em julho agora, a boneca vai ganhar um filme próprio em live-action, estrelado por Margot Robbie. O teaser do filme, aliás, mostra de forma figurada o que você leu aqui. É uma paródia do início de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968). Na obra de Stanley Kubrick, um monolito estimula, em macacos, um salto para a humanidade, quando eles descobrem que podem usar ossos como armas. No teaser de Barbie (2023), ela é o monolito: a boneca com corpo de mulher adulta surge provocando a reação violenta de criancinhas, que quebram suas bonecas tradicionais, com corpinho de bebê, diante da evoluída similar adulta.
O império
No começo da Mattel, em 1944, os brinquedos eram produzidos artesanalmente, em uma garagem, com moldes criados por Elliot Handler, o marido de Ruth (e presidente de fachada da empresa, já que era ela quem mandava de fato). Quinze anos depois, com o sucesso da boneca, sua esposa comandava 1.200 funcionários e administrava cinco fábricas em Los Angeles. Em 1960, apenas um ano após a criação da Barbie, a companhia foi listada na Bolsa de Valores de Nova York. E o casal Handler se tornou multimilionário.
Em 1961, a Mattel lançou o “namorado da Barbie”, Ken (nome do filho caçula de Ruth), também com sua linha de roupas e acessórios. E, em 1965, a companhia entrou no ranking Fortune 500, que relaciona as maiores empresas americanas. Nessa década, uma pesquisa apontou que 93% das meninas conheciam o nome Barbie, algo que nenhuma concorrente chegava sequer perto.
Os anos 1960 foram o céu para Ruth Handler. Em nove anos, Barbie rendeu, em valores de hoje, o equivalente a US$ 4 bilhões em vendas no varejo. Só o que não acompanhou tanto crescimento foram os conhecimentos de gestão da executiva. Ruth era uma empreendedora que agia por impulso e intuição, mas não tinha educação formal para os negócios. Quando aquilo que tinha começado como uma pequena empresa virou um império, ela se perdeu. E isso quase lhe custou a prisão.
A queda
No início dos anos 1970, a contabilidade da Mattel começou a se tornar tão criativa quanto sua produção de brinquedos. A década começou com uma fábrica mexicana destruída por um incêndio e uma greve que prejudicou o suprimento de brinquedos. Seymour Rosenberg, então diretor financeiro, fez o que podia (e o que não podia) para esconder esses prejuízos dos acionistas até 1973.
Ou seja: a companhia estava mentindo em seus balanços para que suas ações na bolsa não caíssem (o que remete ao caso da Americanas, que acumulou inconsistências nos lançamentos contábeis até explodir na admissão de um rombo de R$ 20 bilhões). A fraude na Mattel incluía assinaturas de clientes forjadas e faturas falsas.
Ruth era tão envolvida com tudo o que dizia respeito a seus negócios que… era muito improvável que não soubesse do que estava se passando (apesar de a executiva nunca ter admitido, até o fim da vida). Era óbvio o bastante para que a Justiça americana mergulhasse nas contas da Mattel e abrisse um inquérito envolvendo os principais executivos da empresa. Uma ação que teve efeito imediato sobre o destino de Ruth Handler.
Diante das evidências, os bancos ameaçaram cortar o crédito da companhia se Ruth não deixasse sua direção. Resultado: em 27 de março de 1973, o vice-presidente executivo Arthur Spear assumiu o posto máximo, deixando Ruth como figurante no conselho de administração – os executivos, ao vê-la num corredor, davam meia-volta. Tanta humilhação levou, em 1974, a inventora da Barbie a se desligar totalmente da companhia que tinha criado.
Para piorar, o andamento do processo contra ela apontava para uma condenação – que realmente veio, em 1978, mas bem menos terrível do que anos atrás das grades.
Um juiz mais benevolente que a média aceitou um acordo pelo qual Ruth Handler pagaria uma multa de US$ 261 mil em dinheiro de hoje e ficaria em liberdade condicional por cinco anos, cumprindo uma sentença de 500 horas de serviço comunitário a cada ano. Ela já era uma sexagenária, então, e, para piorar, vivia com o temor da volta de um câncer de mama, que a obrigara a se submeter a uma mastectomia oito anos antes. Mas foi justamente sua atitude em relação à retirada do seio que a reergueu.
A segunda encarnação de Ruth
Inconformada com as próteses externas de seio disponíveis nos anos 1970 – que ela definia como “caroços em forma de ovo” –, Ruth buscou forças para achar uma solução que recuperasse a autoestima de mulheres que passaram pela retirada das mamas. Uniu-se a um escultor da Califórnia, Peyton Massey, conhecido pela excelência em fazer próteses de seios, nariz, mãos e pernas personalizadas. E transformou aquele negócio modesto em um empreendimento.
Ao longo dos anos em que lidava com advogados para se defender no caso de fraude na Mattel, Ruth desenvolveu uma empresa capaz de produzir enchimentos de sutiã convincentes – em uma grande diversidade de tamanhos e formatos. Assim, uma mulher sempre conseguiria encontrar um que lhe parecesse natural. Batizou seu produto de “Nearly Me” (“quase eu”).
O novo negócio fortaleceu o estado de espírito de Ruth, que recebia cartas de mulheres agradecidas (até a primeira-dama Betty Ford, esposa do presidente Gerald Ford, aderiu ao produto) e ainda voltava a comandar um negócio.
Foi uma de suas poucas alegrias antes de morrer, aos 85 anos, em 2002. Oito anos antes, sofrera a perda de seu filho Ken, vítima da aids. “Completei um ciclo. Desde criar a primeira boneca com seios a atender às necessidades de mulheres de verdade por seios.”