As mulheres por trás de “She-Hulk”
Batemos um papo com a roteirista Jessica Gao, a diretora Kat Coiro e a atriz Tatiana Maslany sobre as influências e o desenvolvimento da série, que chega à sua reta final em outubro.
O primeiro sucesso live-action da Marvel não veio com o seu Universo Cinematográfico, o MCU, iniciado em 2008 com Homem de Ferro. Nem com as adaptações da virada do século (Homem-Aranha, X-Men, Blade). Na verdade, aconteceu bem antes: em 1978, com a série O Incrível Hulk, da emissora de TV americana CBS.
Com efeitos especiais já meio datados para a época, o programa apresentou ao mundo o drama do Dr. David Banner, que se transformava no gigante monstro verde sempre que ficava com raiva (sim, sabemos que o nome do personagem nas HQs é Bruce Banner, mas digamos que fidelidade não era bem o forte da série).
Deu certo: O Incrível Hulk durou até 1982, ganhou um Emmy (de Melhor Atriz, para Mariette Hartley) e fincou na cultura pop a imagem do Hulk interpretado pelo fisiculturista Lou Ferrigno, todo coberto de tinta.
Mas talvez a grande contribuição da série foi que ela criou, meio sem querer, a She-Hulk.
Explico: na mesma época, outro hit da TV era a série A Mulher-Biônica (1976-1978), sobre uma mulher-ciborgue com super força e sentidos sobre-humanos. A produção era um spin-off de outra série, O Homem de Seis Milhões de Dólares, de premissa similar.
Por que isso importa? Como A Mulher-Biônica era uma série derivada, a Universal, criadora do show, conseguiu direitos exclusivos de propriedade – e, ao contrário do que havia acontecido com O Homem de Seis Milhões de Dólares, não precisou licenciar nada com o autor do livro que deu origem à série original.
A estratégia preocupou a Marvel, já que a Universal também estava por trás de O Incrível Hulk: e se o estúdio decidisse fazer o mesmo com a série do herói, criando uma nova personagem ou uma série derivada, fora da alçada da editora?
Stan Lee não pensou duas vezes e correu para criar (e registrar) uma versão feminina do Hulk antes que isso acontecesse. Naquela época, ele era presidente da Marvel, mas já estava afastado do desenvolvimento das histórias. She-Hulk (ou Mulher-Hulk, como ficou conhecida aqui), aliás, foi a última grande personagem criada por ele.
She-Hulk estreou em 1980 na HQ The Savage She-Hulk #1, com arte de John Buscema. A história você já deve conhecer: a advogada Jennifer Walters se envolve em um acidente e acaba recebendo uma transfusão de sangue do primo, Bruce Banner. Ela adquire as habilidades do Hulk, mas com uma diferença – a capacidade de manter a sua consciência enquanto estiver na forma verde.
Em quatro décadas de histórias, She-Hulk já integrou a S.H.I.E.L.D., os Vingadores e até o Quarteto Fantástico. E, desde agosto, estrela a primeira série 100% de comédia do MCU – que, apesar das críticas em relação aos efeitos visuais, chega aos últimos episódios como uma boa (e despretensiosa) surpresa.
O resultado positivo de She-Hulk é fruto não apenas do esforço da atriz Tatiana Maslany, que interpreta Jen, mas de uma equipe composta majoritariamente por mulheres. A Super bateu um papo com a roteirista Jessica Gao, a diretora Kat Coiro e com Tatiana para entender como elas entraram no projeto e como ele se desenvolveu.
A manda-chuva
O primeiro emprego da californiana Jessica Gao foi em uma loja de quadrinhos, enquanto ainda estava no ensino médio. Fã do gênero, ela organizava convenções no colégio e lia todo tipo de história – não necessariamente de super heróis, ainda que as da She-Hulk tivessem um espaço reservado na coleção.
“Acho que foi [o quadrinista] John Byrne que fez eu me apaixonar pela personagem”, relembra Gao, durante uma entrevista por vídeo. A fase de Byrne foi a responsável por consolidar diversos traços marcantes de She-Hulk, como a quebra da quarta parede. “Ela sempre tinha uma opinião sobre a história e, não raro, brigava com o escritor. Era muito divertido.”
As primeiras experiências de Gao como roteirista foram no canal Nickelodeon, em animações como O Segredo dos Animais, Mighty B! e na série Big Time Rush. Em 2014, colaborou em dois episódios da comédia Silicon Valley, da HBO. Mas ela despontou mesmo em 2017, quando entrou para o time de roteiristas de Rick e Morty: Gao é a autora de “Pickle Rick”, um dos mais célebres episódios do desenho do Adult Swim – e que rendeu ao programa o seu primeiro prêmio Emmy.
(Curiosidade: Gao não é a única roteirista de Rick e Morty a trabalhar na Marvel. Michael Waldron, produtor executivo de Loki e um dos arquitetos do multiverso do MCU, também se consagrou ao escrever para a animação.)
Depois do Emmy, Jessica tentou de todo jeito trabalhar na Marvel. Não foi fácil. “Quando a Marvel decide começar um projeto, eles vão atrás de roteiristas, que, por sua vez, fazem a sua proposta de abordagem para aquela produção”, explica. Jessica fez isso em três ocasiões – mas todas as suas sugestões foram rejeitadas.
Em todas as vezes, a roteirista fez questão de ressaltar o quanto ela adorava a She-Hulk. “Eu dizia: ‘Se vocês decidirem fazer um filme com ela [na época, o MCU ainda não fazia séries para o Disney Plus], me liguem – ou eu coloco esse estúdio abaixo’”, lembra Jessica, rindo.
E então a ligação veio – e a proposta de Jessica foi aceita. Desde o início, ela tinha uma ideia muito clara do que queria fazer. “O legal da televisão é que você tem tempo e espaço para realmente viver com um personagem”, disse, em uma entrevista para a revista Hollywood Reporter. “Eu quero saber o que está acontecendo em uma terça-feira quando o mundo não está em perigo. O que acontece quando uma mulher verde de dois metros de altura precisa comprar um terno?”
Gao também tinha definido desde o início aspectos mais específicos da história, como a participação de Abominável (Tim Roth), o vilão de Incrível Hulk (2008), da época em que o MCU engatinhava. Ela só não sabia o que a Marvel queria fazer com esse personagem – mas não custava perguntar. “Kevin Feige [presidente do Marvel Studios] deu toda a liberdade de que precisávamos. O lema era: ‘faça o que quiser, desde que fique bom.’”
Como showrunner da série, Gao se encarregou de comandar a sala de roteiristas. E estabeleceu um ritmo acelerado, em ciclos de uma hora: com exceção de intervalos de dez minutos, ninguém podia checar e-mails nem redes sociais. O foco era 100% no texto de She-Hulk.
Para ela, deu certo. “Foram alguns dos melhores dias da minha vida. Era um lugar cheio de pessoas diferentes e divertidas. Tudo isso, aliado às semanas de gravação, em que todos trabalhavam, comiam e descansavam juntos…parecia um acampamento de verão.””
A cineasta
Enquanto Gracie, uma simpática cachorrinha, se acomodava ao seu lado no sofá, a americana Kat Coiro relembrou, por vídeo, o seu primeiro contato com a She-Hulk. “Eu ainda era pequena quando vi um cartaz da personagem em uma banca. Pensei: ‘Uau! Quem é? Quero ser que nem ela!’”
Coiro é a diretora responsável por seis dos nove episódios de She-Hulk (os outros três ficaram a cargo da cineasta Anu Valia). Antes de trabalhar na Marvel, ela acumulou experiências tanto na TV, no comando de episódios de sitcoms (Brooklyn Nine-Nine, Modern Family e It’s Always Sunny in Philadelphia ), quanto no cinema: ela dirigiu Case Comigo, comédia romântica com Jennifer Lopez e Owen Wilson que estreou no começo de 2022.
“Quando descobri que a Marvel estava produzindo uma série sobre a She-Hulk, fiquei animada e corri para tentar participar”, disse Kat. “Eu sabia que o estúdio valorizaria a devoção que eu criei pela personagem ao longo dos anos.”
Deu certo, e Coiro foi chamada para discutir a possibilidade de dirigir alguns episódios da série. O problema: essa reunião aconteceu no mesmo dia em que a maior parte dos EUA entrou em lockdown por causa da Covid-19, em 2020. O projeto, então, foi temporariamente interrompido.
Kat aproveitou a pausa para definir em detalhes a sua abordagem para a série. Desde o começo, ela soube que a chave estava em achar um meio termo entre comédias de TV e as produções cinematográficas. “Sempre foi uma questão de como equilibrar essas duas linguagens”, conta. “Temos que honrar e valorizar a comédia ao mesmo tempo que jogamos de acordo com o MCU e tudo o que esse universo carrega.”
De acordo com a diretora, o extenso acervo de HQs da personagem ajudou a desenvolver os episódios – mas houve o cuidado de criar algo próprio, autoral. “Stan Lee, John Byrne e todos os artistas foram homenageados, há easter eggs aqui e ali… Mas o objetivo sempre foi criar uma história mais moderna possível, de um ponto de vista feminino.”
A estrela
Os caminhos de Tatiana Maslany e da Marvel não pareciam destinados a se cruzar. A atriz canadense ganhou projeção mundial com a série Orphan Black (2013-2017), um sci-fi em que interpreta uma porção de clones, cada um com uma personalidade diferente. O papel lhe rendeu o Emmy de Melhor Atriz em Série Dramática em 2016. Mesmo assim, por decisão própria, Tatiana se manteve longe dos grandes blockbusters de Hollywood.
Com She-Hulk, foi diferente. “Foi uma surpresa quando recebi o roteiro da Jessica”, lembra a atriz. “Era algo muito diferente de uma história de super-herói comum, eu dava risadas a cada página. Senti que era uma personagem divertida – e com a qual eu conseguiria me relacionar.”
Tatiana participou de audições para o papel e recebeu a confirmação durante a pandemia, em 2020. “Foi incrível receber essa notícia em tempos tão estranhos, em que tudo parecia surreal.” Para interpretar Jennifer Walter, a atriz conversou com advogados da sua idade (Tatiana tem 37 anos), especialmente mulheres que atuam há anos na área. “Eu também revi Legalmente Loira. Eu amo esse filme – e acho que tem uma vibe bem parecida com a que queríamos transmitir na série.”
Para além do filme de Reese Witherspoon, She-Hulk se inspirou na série Ally McBeal (1997-2002), que conta a história de Ally, uma jovem advogada recém-formada que começa a trabalhar em um escritório de advocacia – o mesmo de seu ex-namorado. “Para a personalidade de Jennifer, pensamos muito também na Elaine de Seinfeld”, disse Kat Coiro.
As filmagens começaram no primeiro semestre de 2021 e, desde o começo, o maior desafio da equipe foram as cenas de captura de movimento com Tatiana e Mark Ruffalo (o Hulk, aliás, deve aparecer nos dois últimos episódios de She-Hulk). “O legal da comédia é a possibilidade de improvisação, mas isso se torna um problema quando vamos trabalhar com computação gráfica”, explica Coiro.
Para ajudar nesse problema, a equipe construiu plataformas para que Tatiana e Mark pudessem atuar nas cenas em que estivessem transformados – o que facilitou o posicionamento das câmeras, já que os Hulks são bem mais altos que as formas humanas de Jen e Bruce. A equipe ensaiava as cenas na noite anterior para que, no dia da gravação, todo mundo estivesse na mesma página. “Quanto mais a gente planejava [as cenas de captura de movimento], mais liberdade os atores tinham na hora de gravar”, completa Coiro.
Desde o primeiro trailer de She-Hulk, em maio, a estranheza das feições da heroína causaram uma chuva de comentários negativos na internet. A versão final do Disney+ melhorou o CGI, mas esse ainda é um assunto que volta e meia assombra a série. A equipe, contudo, parece não se incomodar – talvez porque haja coisas mais interessantes em jogo.
“Desde a primeira vez que vi a Tatiana, senti muita firmeza”, lembra Kat, que ressaltou a relação entre ela e Ruffalo. “Química não é algo que você escreve, não é algo que se pode dirigir. Um conseguiu despertar o melhor lado do outro e vice-versa.”
Para Ruffalo, She-Hulk conseguiu surpreendê-lo – mesmo estando há dez anos no MCU. “Chegar em um lugar onde a maior parte da equipe é composta por mulheres, eu nunca estive em um set como aquele”, disse o ator. “É algo totalmente diferente, especialmente em uma produção da Marvel. E isso é ótimo.”