Ninguém é igual a ninguém na maior democracia do mundo. A vida de cada indiano é formada por doses desiguais de fé, machismo e uma hierarquia milenar baseada em castas. Para alguns, uma combinação definida já na hora do nascimento – e imutável por toda a vida.
O publicitário Avinash Baliga, de 27 anos, faz um ritual todos os dias ao acordar em seu apartamento, em Mumbai. Ele diz algumas palavras sagradas enquanto espalha uma pasta de sândalo no rosto e no corpo para se purificar, uma prática típica dos brâmanes. Seu pai também pertence a essa casta da sociedade hindu, mas Avinash é o único da família que faz questão de preservar o rito.
Prem Verma vive escondida. Aos 62 anos, ela mora em um abrigo para viúvas na cidade de Vrindavan, perto de Nova Délhi. Foi para lá há 11 meses, depois que o marido faceleu. Depois, também, de o filho assumir a posição de chefe da família e tratá-la quase como empregada. Quando ele ficou violento, ela fugiu.
Mintu Ram trocou seu vilarejo no interior do estado de Bihar, um dos mais pobres da Índia, por Calcutá, há uma década. Naquela época, aos 25 anos, Mintu não encontrava emprego. Membro de uma casta baixa e sem ter estudado, ele estava destinado a ser um agricultor, como seus ancestrais. Em Calcutá, tentou mudar a sorte. Só conseguiu lugar em uma fábrica de couros, um emprego evitado pelos hindus. Para eles, tocar a pele de animais mortos é como praticar um pecado.
As vidas de Avinash, Prem e Mintu são tão diferentes entre si quanto a dos quase 1,2 bilhão de indianos. Para começar, a Índia cabe perfeitamente no jargão “caldeirão de culturas” – só para ter uma ideia, são 18 línguas oficiais e milhares de dialetos, cada um deles representando um povo que já perambulava pela região quando a Índia virou país. (É gente tão apegada a suas tradições que cada grupo comemora o Ano-Novo em uma data própria, de acordo com o calendário que segue.) O modo de vida também muda drasticamente de acordo com a região. Sete em cada 10 indianos moram em vilarejos rurais, e muitos desses ainda nem viram sinal dos fios de eletricidade. O desenvolvimento se espalhou de um jeito tão descompassado pelo país que a expectativa de vida cai até 15 anos de um estado para outro. Mas, acima de tudo, a Índia é regida pela combinação de 3 grandes influências: religião, sexo e castas. Dessas aí, ninguém escapa. É como se a vida de cada indiano fosse o resultado de uma receita personalizada, com doses diferentes dos 3 ingredientes. E, quando um deles sobressai na mistura, as consequências são as mais diversas. Pode ser uma obrigação cotidiana – como a gerada pela fé de Avinash -, uma mudança inesperada – como o machismo do filho de Prem – ou a determinação de um destino para toda a vida, sem direito a alternativas, como a discriminação de castas para Mintu. Nesse minuto em que você lê a SUPER, 34 bebês estão nascendo na Índia. Vamos ver o que vai definir a vida de cada um deles.
Castas
Já na largada, as regras não são as mesmas pra todo mundo. Nós explicamos. Mal sai da barriga da mãe, um bebê indiano ganha um rótulo. Entra em uma das 4 castas de uma hierarquia social ditada pelo hinduísmo, que pela ordem tem os sacerdotes, ou brâmanes, depois reis e guerreiros (xátrias), mercadores e produtores (vaixás) e servos (sudras). É um esquema que divide o trabalho entre a sociedade e garante que sempre haja um grupo cuidando da religião, da organização política, do comércio e dos serviços. Faz tempo que isso funciona assim – praticamente desde 1500 a.C., quando o princípio dessa classificação apareceu nos Vedas, uma série de livros sagrados para o hinduísmo. Os hindus acreditam em reencarnação, e acham que o ciclo de nascimento e morte serve para compensar nossas ações: nesta vida se faz, na próxima se paga. Para libertar a alma desse vai e volta ao corpo, é preciso cumprir deveres que beneficiem toda a comunidade. Que deveres? Exatamente aqueles que se ganha na hora do nascimento.
Só que nem todo mundo se encaixa em alguma dessas castas. Os excluídos da hierarquia são os “intocáveis”, conhecidos como dalits. Não podia ter sobrado destino pior pra eles: ficaram com as tarefas consideradas impuras, que ninguém mais faz, como limpar excrementos. Dalits são considerados tão sujos, mas tão sujos, que ninguém de outras castas deve tocá-los (daí o apelido carinhoso). Não muito tempo atrás, até a sombra deles fazia qualquer brâmane sair correndo para não se contaminar.
Não pense que foram os deuses hindus que jogaram os dalits na lama. Foi obra do homem mesmo. As castas dos Vedas são reflexo de uma segregação criada por tribos de arianos (não, nada a ver com Hitler), que invadiram a Índia na época em que os livros foram escritos. Vindos do Afeganistão e da Ásia Central, eles dominaram a região. E usaram classes sociais para se diferenciar da população nativa, que viam como inferiores. Alguns historiadores dizem que o critério de separação foi raça – os recém-chegados eram branquelos, os de casa eram morenos, negros ou aborígenes. Outros falam que o critério foi idioma, já que os nativos não se expressavam bem na língua dos novos líderes. Em um ponto, todos concordam: os arianos se colocaram no topo da hierarquia, criada por eles mesmos, e jogaram os indianos para o fim da fila. A divisão por funções aconteceria pouco depois.
Não havia e não há escapatória: como a casta está ligada ao nascimento, subir ou descer um degrau na hierarquia é impossível. Na prática, pelo menos, porque a teoria é outra: na década de 1950, a Índia declarou todos iguais perante a lei, e proibiu o termo “intocáveis”. Mas lei é igual na Índia e no Brasil: tem as que pegam, tem as que não pegam. A das castas não pegou. Quase 60 anos depois, o sistema está vivo. Tanto que muito católico e muçulmano adotou a ciranda das castas.
Governo, indianos e turistas sabem que a discriminação das castas baixas segue firme e forte, principalmente nas 680 mil vilas da Índia. Em algumas delas, dalits não podem coletar água do mesmo poço usado pelas castas altas. Não podem frequentar a mesma escola. Não podem entrar nos templos. Não podem cozinhar para os outros. Não são atendidos por médicos em hospitais. São rejeitados por barbeiros. São os únicos a ocupar os cargos de faxina, e não conseguem outros empregos além desses. Recebem no chão a comida que compram. Por quê? “Porque se eu der a mão a um dalit, as pessoas da minha comunidade vão achar que vou me contaminar”, diz Sunil Kumar, um guia de turismo de Jaipur, no estado do Rajastão, da casta vaixás. “Prefiro me manter longe.”
Mas o que a lei não resolveu a globalização está remediando. O país enriqueceu muito nos últimos tempos. Entre as décadas de 1950 e 1980, a economia avançou, em média, uns 3% ao ano. Depois dos anos 90, tem crescido 6%. É um desenvolvimento movido pela chegada de empresas, que tem aumentado a população das cidades – o que cria um esconderijo perfeito para dalits. Nas vilas todo mundo conhece os segredos de todos, mas na cidade qualquer um pode inventar história.
Mintu Ram foi um dos que trocaram a vila pela cidade. Escolheu Calcutá, a 2ª cidade mais populosa da Índia, com quase 15 milhões de habitantes. “Queria um emprego em uma fábrica”, diz. Só de olhar para Mintu, ninguém podia adivinhar sua casta. Mas o histórico o denunciava. Como a maioria dos dalits, Mintu não teve uma boa educação. Acabou em um emprego que ninguém quer: a fabricação de couro. A pele de animais mortos é tida como impura pelos hindus, e castas altas fogem de couro como Diabo da cruz. Por isso 95% dos colegas de Mintu são dalits. Os chefes da fábrica, que só gerenciam a operação, são brâmanes.
Poderia ser pior. Bem pior. Dalits são contratados para os empregos mais nojentos do planeta. Estamos falando de serviços como o de limpadores de bueiros, que mergulham nas tubulações de esgoto à procura de fezes, bichos e dejetos causadores de entupimentos. Ou de faxineiros de fossas, que carregam na cabeça os excrementos que retiram das latrinas. Com trabalhos como esses, os dalits que fugiram das vilas viram, de novo, intocáveis.
Dá até pra ver a segregação entre castas nas cidades. Em Mumbai, a mais rica da Índia, há bairros diferentes para castas diferentes, numa divisão informal. Nas comunidades de maioria brâmane, prédios residenciais. Na de dalits, casebres ou barracos. Dalits também são a maioria nas mais de 2 mil favelas de Mumbai, onde vivem 55% da população da cidade. A vida nessas favelas é precária: 71% dos moradores usam banheiros comunitários – cada um compartilhado por até 1 500 pessoas – e quem não tem emprego se vira com serviços como reciclagem de lixo.
Mas tem jeito de sair dessa sina. Pouco depois da independência do país, entrou em vigor um programa que reserva vagas em universidades, cargos políticos e órgãos governamentais para castas baixas. Uma geração próspera de dalits já se formou com a iniciativa. Em 1950, eles eram 0,7% dos funcionários públicos – hoje são 13%. É um número representativo se considerarmos que os dalits são 15% da população. Já teve até presidente dalit: Kocheril Narayanan, que ficou no cargo entre 1997 e 2002 e foi eleito por um colégio de parlamentares. Hoje, uma dalit está na fila pelo cargo mais importante do governo, o de primeiro-ministro. Mayawati Kumari é ministra-chefe (o equivalente a governadora) de Uttar Pradesh, um estado tão populoso quanto o Brasil inteiro. Conhecida como Rainha dos Dalits, ela era uma das cotadas ao principal posto do país nas eleições parlamentares que terminaram em maio, após o fechamento desta edição.
Se dar bem não significa se livrar do estigma. “Quem tem dinheiro às vezes precisa subornar alguém para chegar a postos altos”, diz Vasundhara Shende, dalit que gerencia uma organização para ajudar membros de castas baixas. Outros trocam o sobrenome, que pode entregar o clã de origem. (Os Banerjis são brâmanes, os Doms são dalits, por exemplo.) Essa é uma tática comum entre executivos e empresários de castas baixas que precisam pegar empréstimos em bancos e conseguir sócios. A precaução extra vale o esforço. Mudar uma estrutura social milenar pode ter um preço. Em 2008, um rapaz dalit foi atacado com pedras por vizinhos de casta mais alta enquanto ia para o seu casamento, no estado de Haryana. Ele seguia montado em um cavalo, um luxo para dalits. Os vizinhos acharam que ele não tinha esse direito e deveria ser espancado. Fim de festa para os dalits – e um lembrete de que o sistema de castas ainda tem muitos defensores.
Sexo
No fim do século 19, os britânicos farejaram algo de estranho no perfil da população da Índia, então sob seu domínio. Eles notaram que a proporção de mulheres para homens no país estava caindo, sem motivo aparente. Procuraram a explicação em doenças, nos dados de mortalidade, em um fenômeno mundial. Nada. Demorou até que eles entendessem o que vinha acontecendo. A população estava assassinando suas meninas.
Para os indianos, aquilo não era um absurdo. O nascimento de um filho homem era – e ainda é – um dos acontecimentos mais importantes para uma família do país. Um menino representa a continuidade da linhagem do clã e a garantia de sustento para os pais no futuro. Tudo o que uma menina não pode dar. Quando adulta, uma indiana se casa e deixa a família de origem. Sua identidade e seus bens ficam atrelados ao novo clã. E, além de tudo, seus pais têm de economizar dinheiro para dar o dote – uma série de presentes – à família do noivo. Diante disso tudo, muitas famílias simplesmente concluíram que não valia a pena investir na criação de uma menina pra que outra família colhesse os lucros. Era com rasgar dinheiro.
Os assassinatos são o retrato de como a vida de homens e mulheres é diferente na Índia. Esse é, definitivamente, um país masculino. Ver mulheres nas ruas, especialmente à noite, pode ser coisa rara em muitas cidades e vilas do país. Elas geralmente ficam em casa, com a missão de cuidar das tarefas domésticas. Uma minoria – 48% – sabe ler (e olhe lá, porque muitas só aprendem a assinar o nome). Entre os homens, 73% são alfabetizados. Até dentro da casa de que a mulher cuida o homem tem mais importância. No sul do país, as esposas esperam o marido terminar uma refeição para começar a comer.
A preponderância masculina é fácil de entender pelos números da população. Em 1991, existiam 945 mulheres para cada 1000 homens no país. Em 2001, eram 927. Sim, os infanticídios continuam acontecendo. E em maior escala. Primeiro, porque o ultrassom ficou mais popular e permitiu que as famílias conhecessem o sexo dos bebês antes do nascimento. Foi assim que o aborto tomou o lugar do assassinato. Segundo, porque dote virou coisa de luxo. O crescimento do país despertou a ganância dos indianos – e das famílias de noivos, que escolhem o dote que vão ganhar dos parentes da noiva. Antes, eram presentes como ouro e tecidos. Agora tem de tudo. Geladeira? Bota na conta do pai da garota. Um carro novo? É só acrescentar à lista. Tem gente que pede até green card americano. E ai de quem não pagar. Em vilas, o assassinato da noiva de família caloteira não é uma punição rara.
Grávida nenhuma na Índia pode pedir hoje ao médico que diga o sexo do seu bebê. Para evitar os infaticídios, ficou proibido por lei – mais uma que não pegou. Os abortos chegam hoje a 1 milhão por ano. O desequilíbrio na proporção de homens e mulheres faz com que noivos sejam obrigados a viajar para encontrar noivas em outras cidades e estados. Os que têm dinheiro compram uma esposa, por um preço menor que o de um búfalo. Os que não têm, às vezes sequestram e levam pra casa. Quem não tem dinheiro ou vocação para o crime divide uma única esposa com os irmãos. A garota compartilhada ganha quase o status de prostituta.
O dote está disseminado por todas as castas e religiões da Índia. Mas algumas mulheres estão deixando essa prática pra trás. São aquelas que têm carreira e independência financeira. Elas não são a regra. Só 1 em cada 4 indianas trabalha. Nas vilas, elas dividem o emprego no campo com tarefas da casa, como caminhar quilômetros para buscar água potável para a família. Nas cidades, a porcentagem de mulheres empregadas é menor, porque mantê-las reclusas em casa é questão de moral e status para as famílias. As que trabalham estão aproveitando a onda de crescimento do país. Principalmente no setor de tecnologia, onde as mulheres já são 20% dos funcionários. Estamos falando de empregos como atendente de call-center e engenheiro de software, que têm garantido a uma molecada de 20 e poucos anos um salário maior do que o que os próprios pais ganham. Eles (e elas) pegaram carona no interesse de países como os EUA em serviços baratos de tecnologia – que está ajudando funcionários e empresários indianos a prosperar. Tanto que a população de milionários da Índia é hoje a que mais cresce no mundo.
Para as mulheres que fazem parte desse grupo, diversão não é só reunir amigas em casa ou sair para compras. Elas querem ir para a balada. Mas só 42% das indianas se consideram capaz de escolher que tipo de diversão devem ter à noite, segundo uma pesquisa com 1 004 mulheres de 8 estados, feita recentemente pelo jornal Times of India. O resto acha que maridos, pais ou grupos que se denominam polícia moral devem decidir por elas. Basta visitar os bares da Índia para comprovar. Poucas circulam neles, mesmo quando acompanhadas por um homem. “Se levo uma menina a um bar, às vezes o garçom me pede para sair, porque o ambiente pode ser perigoso para mulheres”, diz Siddharta Hajra, estudante de 27 anos que mora em Calcutá. E bota perigoso nisso. Em janeiro, conservadores hindus espancaram mulheres em um pub de Mangalore, uma cidade universitária. Eles alegaram que mulheres não deveriam dançar em um bar, muito menos beber (o álcool é visto por hindus como um estimulante excessivo para o corpo).
A mudança mais radical de comportamento para as indianas, no entanto, acontece por tradição – entre as hindus. Quando o marido morre, uma hindu deve fazer votos de castidade, que incluem raspar a cabeça e usar vestes brancas. Muitas partem para cidades sagradas para o hinduísmo, principalmente Vrindavan, perto de Délhi. Apelidada de Cidade das Viúvas, lá as mulheres moram em viuvários. Nem todas buscam alento espiritual nas comunidades. Algumas são expulsas pela família por não terem como contribuir com as despesas. Outras saem porque se sentem desprotegidas sem o marido. Foi assim com Prem Verna. Ela saiu de Délhi e chegou a Vrindavan em 2008, escondida do filho, que ficou violento após a morte do pai. Hoje ela vive com 120 mulheres em um viuvário liberal, que tenta estimular a comunidade a dar menos importância aos votos de castidade impostos às viúvas. É um movimento que já está se consolidando nas cidades. Nelas, muitas viúvas apenas se desfazem dos adornos que indicam que uma indiana é casada, como braceletes e um bindi – aquele ponto na testa – de cor vermelha.
Religião
Avinash Baliga, o publicitário que apareceu no começo desta história, não é de se incomodar com diferenças religiosas. Até porque ele vive em meio a diferentes credos. Avinash é um hindu brâmane. O pai também, mas não pratica rituais. A mãe é católica. A namorada, jainista, adepta de uma religião dissidente do hinduísmo. E alguns de seus amigos são muçulmanos.
Ele nunca havia sentido o quão explosiva poderia ser a mistura de religiões presente no país até 26 de novembro de 2008. Para os indianos, é uma data como o 11 de Setembro nos EUA. Nesse dia, terroristas provocaram uma série de ataques em Mumbai. Gente que estava no trabalho, como Avinash, não sabia como voltar para casa (ou mesmo se deveria). Mais de 160 pessoas foram mortas e pelo menos 300 ficaram feridas. Os autores dos ataques eram muçulmanos. “Conflitos existem”, diz Avinash. “Mas foi a primeira vez que um deles aconteceu tão perto a ponto de envolver gente conhecida.” A verdade é que a tensão entre adeptos de diferentes credos nunca desaparece na Índia. Esse pode ter sido o pior ataque para Avinash, mas a história da Índia é repleta deles. E a explicação para isso está na convivência de muitos credos no país, o que nem sempre acontece em harmonia. Pra entender isso, comecemos pela fé que está na linha de frente no país: o hinduísmo.
Quem nasce hoje na Índia tem 80% de chance de cair em uma casa hindu. Ou seja, de entrar para uma família devota de uma ou algumas entre 330 milhões de divindades que representam a manifestação de um ser supremo, Brahman – exemplos dos mais populares são Shiva, considerado um destruidor, porém indispensável para a criação de tudo no mundo, e Ganesh, aquele com cabeça de elefante, deus da boa sorte. O hinduísmo segue firme e forte desde o surgimento dos Vedas. Mas lá pelo século 6 a.C., a coisa mudou. Guerras entre reinados do país provocaram mudanças constantes na política, no comércio e na sociedade. E as pessoas começaram a questionar as estruturas em vigor, entre elas o sistema de castas.
Um dos descontentes era Siddhartha Gautama, um príncipe que aos 29 anos iniciou uma jornada de iluminação espiritual. Ele achava que cada um deveria buscar a verdade a partir da própria experiência. Conhecido como Buda, seus ensinamentos viraram religião – e uma alternativa para os excluídos dentro do hinduísmo. Dalits têm se convertido em massa ao budismo nos últimos 50 anos. Na mesma época de Buda, outro descontente com o sistema de castas fundou o jainismo. Focados em alcançar a pureza da alma por meio da boa conduta e da não-violência, os jainistas são vegetarianos, para não ferir nenhuma forma de vida. Monges jainistas usam máscara na boca, para evitar engolir algum inseto, ou andam com vassouras, para não pisar em uma barata. Uma terceira dissidência do hinduísmo apareceu no século 15 – os sikhs. Eles acreditam que todos os seres são iguais. Fazem grandes refeições gratuitas em seus templos, mesmo para não adeptos. É fácil identificá-los nas ruas: eles usam turbantes para guardar os cabelos, porque não devem cortar qualquer pelo do corpo, como um símbolo de simplicidade. E, sim, isso inclui as mulheres.
Budistas, jainistas e sikhs são pouco mais de 3% da população. Em geral, se relacionam bem com os hindus. Os atritos maiores aconteceram com os sikhs, que sempre demandaram um território próprio. As faíscas levaram ao assassinato, em 1984, da então primeira-ministra Indira Ghandi por dois de seus seguranças, ambos sikhs. Mas a minoria mais forte (e inquieta) no país é a dos muçulmanos, 13,4% dos indianos. São os que ficaram mesmo após a comunidade ganhar um país só para ela, o Paquistão – uma vitória da pressão feita na época da independência da Índia. No dia-a-dia, muçulmanos e hindus tentam conviver em harmonia. Os hindus até misturam o hindi ao urdu, a língua adotada pelos muçulmanos. Mas ambos os lados preferem garantir uma distância segura. Em cidades e favelas, ruas servem de fronteira entre bairros dominados pelas duas religiões. Algumas famílias hindus evitam amizades com muçulmanos, e vice-versa. Os conflitos podem surgir em uma discussão sobre a Caxemira, território disputado por Índia e Paquistão, ou por um namorico entre adolescentes de fé diferente. É para que isso não aconteça que os muçulmanos oram em suas mesquitas, ao ouvir o chamado para a prece 5 vezes por dia. É também para pedir que tudo fique em paz que Avinash faz seu ritual todos os dias, ao acordar.
Esqueça o churrasquinho e o ar- condicionado do carro. Na Índia, a vida é difícil – e não conte com um goró para adoçá-la.
90% teriam um trabalho informal.
70 anos seria a expectativa de vida da população.
61% das pessoas saberiam ler.
1 em 27 pessoas moraria em uma favela.
1 em 9500 pessoas seria um milionário.
2% teriam carro – o resto usaria moto, ônibus, trem ou até camelo.
60% trabalhariam na agricultura.
2% teriam acesso à internet.
34% teriam telefone celular.
31% seriam vegetarianos.
21% dos homens e 2% das mulheres consumiriam bebidas alcoólicas.
Fonte CIA World Fact Book; Times of India; OCDE; Telecom Regulatory India; Dipankar Gupta, Professor da Universidade Jawaharlal Nehru; World Wealth Report
Para saber mais
India After Ghandi
Ramachandra Guha, Harper, 2007.
In Spite of the Gods
Edward Luce, Anchor Books, 2008.
Conhecendo o Hinduísmo
Vasudha Narayan, Vozes, 2009.
A ciência da gambarra
Um terço dos miseráveis do mundo está na Índia. Graças a esse problema, o país achou sua vocação para inovar: unir jeitinho e tecnologia para criar os melhores produtos que pobres consigam comprar.
Se trabalhar todos os dias, um morador de favela de Mumbai consegue até 3 mil rupias por mês em um emprego informal. Dá uns R$ 125. Com isso, ele paga o aluguel de um barraco, dos menores. Comer? Só se a família estiver no batente e colaborar. Ainda assim, vai ser difícil sobrar alguma coisa no fim do mês. Há 828 milhões de pessoas nessa situação na Índia, ganhando US$ 2 ou menos por dia. O país é tão miserável que abriga 33% de todos os pobres do mundo. E isso é um problemão. Quase 70% dos indianos passam longe de qualquer loja. Não tem crediário que os ajude a comprar geladeira, roupa, computador. Gastar com médicos e remédios, então, é luxo pra essa massa famélica. Para resolver a situação, a Índia se transformou num laboratório de inovação. Um batalhão de pesquisadores tem trabalhado para achar um jeito de deixar tudo mais barato. E eles têm duas vantagens. A primeira: o baixo custo para produzir qualquer coisa na Índia. Segunda: o país é um dos mais férteis em especialistas em tecnologia – enquanto EUA e Europa produzem menos de 100 mil engenheiros por ano, a Índia forma 1 milhão. Com uma gambiarra aqui, uma pecinha a menos ali, alguns têm conseguido resultados impressionantes. Dê uma olhada.
Jaipur foot
As histórias dos 60 pacientes atendidos por dia pela Jaipur Foot são parecidas. Falam de acidentes de carro, de ônibus e de trem. E todas terminam com uma mesma e grave consequência: amputação. É o que 25 mil indianos sofrem a cada ano. Considerando que a maioria dessas pessoas é pobre, não tem meio de transporte próprio e precisa trabalhar, uma amputação pode ser uma ameaça fatal. E a solução para o dilema, uma prótese, chega à casa dos milhares de dólares – 8 mil, em média, nos EUA. Mas alguém deu um jeitinho indiano nisso. Na década de 1960, um escultor se juntou a um grupo de especialistas em próteses para tentar desenhar e produzir uma prótese de pé que fosse mais anatômica e barata do que as importadas. Escolheram a borracha como matéria-prima, daquela usada pra fazer pneu mesmo. E estudaram o modo de se comportar do indiano: como lá as pessoas têm o hábito de andar descalças, a prótese tinha de ser resistente o suficiente pra não perder a sola por aí. E como o indiano costuma sentar-se no chão cruzando as pernas, a prótese tinha de ser flexível. Deu certo. Hoje, as próteses de pernas fabricadas pela Jaipur Foot, organização fundada por eles e sediada na cidade de Jaipur, custam US$ 35. Ou seja, 228 vezes mais barato do que uma prótese nos EUA – e tão eficiente quanto. Mas quem paga a conta são empresas e instituições que fazem doações, porque as próteses são entregues de graça aos pacientes. Com uma ajudinha dos fornecedores, que vendem as matérias-primas a preço de custo para a organização, as próteses da Jaipur Foot são as mais baratas do mundo. Mais de 20 mil são feitas todos os anos. “Dos nossos pacientes, 90% não teriam condições de comprar uma prótese”, diz o diretor Sanjeev Kumar. Hoje, a organização exporta as próteses para 21 países, e tem recebido visitas de alunos e professores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Nos próximos meses, os americanos devem ajudar a modernizar as próteses indianas, o que as fará durar mais – o prazo de troca, hoje de até 3 anos, poderá chegar a 5. “Nós fazemos barato, mas eles têm acesso a tecnologias que não chegam aqui”, afirma Kumar.
Fogão rural
Numa vila indiana, as mulheres cozinham usando fogões rudimentares, às vezes de pedras, e alimentados por grandes pedaços de madeira, esterco ou carvão. Elas não sabem o risco que estão correndo. Segundo a ONU, inalar a fumaça gerada por esses combustíveis equivale a fumar dois maços de cigarros por dia. Ongs e empresas como a Philips têm tentando criar opções menos poluentes. No caso da versão da Philips, o segredo é um sistema de ventilação que acelera a queima do combustível. O produto promete reduzir a emissão de poluentes a um décimo do que é gerado pelos fogões tradicionais. E, quem sabe, gerar um dinheirinho para a empresa, se a coisa pegar.
Nano
Recém-lançado pela Tata Motors, o Nano ainda não foi para as lojas, mas já está nas ruas da Índia. Por todo o lado ele é a estrela de pôsteres e anúncios com financiamento exclusivo para quem quer o seu. O carro mais barato do mundo merece esse estrelato. O Nano custará mais ou menos US$ 2 500, pouco mais de R$ 5 mil. É a metade do preço do Maruti 800, hoje o carro mais barato na Índia, e tem 21% mais espaço interno do que o rival. Como a Tata fez o que montadoras da Europa, dos EUA e do Japão não puderam? Resposta: mentalidade espartana. A Tata sacou que deveria tirar do carro tudo o que fosse supérfluo. No Nano, só 3 parafusos prendem as rodas, e não 4 (isso é seguro, segundo a montadora). Só há uma trava na porta, e não duas. O estepe é um pneu provisório e permite que o carro ande apenas poucos quilômetros. Para-choques e portas são revestidos de plástico. E nada de rádio e ar-condicionado. As vendas devem começar na Índia em julho – e o Nano pode chegar à América Latina em 4 anos.
Sabão de rio
Pobre que é pobre na Índia lava a roupa no rio, na pia, onde der. Máquina de lavar? Nem pensar. A Nirma, uma empresa indiana, notou isso lá nos anos 80, quando lançou um sabão em pó com uma fórmula apropriada para água corrente. Também fez embalagens pequenas, porque os indianos compram com o dinheiro que sobra do dia, e não porções para o mês todo. A então líder do mercado, a subsidiária indiana da anglo-holandesa Unilever, percebeu que precisava fazer alguma coisa. Copiou a Nirma. Criou um sabão para pobre, o Wheel, e buscou mulheres de vilas para ajudar nas vendas. Funcionou tão bem que a equipe do Wheel ajudou a Unilever do Brasil a lançar o Ala, um sabão para o Nordeste, nos anos 90.
Médico Portátil
Em 2010, 60% das pessoas com doenças do coração serão indianas. O número de pacientes no país só cresce, porque a população tem consumido mais produtos industrializados e praticado pouco exercício. Controlar essa epidemia entre os mais pobres pode ser difícil – eles não têm acesso a prevenção ou tratamentos. Há dois anos, a GE lançou um produto que pode ajudar, o Mac 400. É um eletrocardiógrafo portátil, movido a baterias, usado para diagnosticar problemas de coração. Como algumas regiões da Índia não têm médico por perto, a GE acoplou ao Mac 400 um software que analisa na hora os dados coletados. O preço? US$ 1 mil, contra os US$ 5 mil de um aparelho convencional. Se ajudou a população, ainda não se sabe. Mas o laboratório indiano foi ótimo para a GE, que já está exportando o Mac 400.
Para saber mais
A Riqueza na Base da Pirâmide
C.K. Prahalad, Bookman, 2005
Kama Sutra nubca mais
Os indianos já foram tão liberais que indicavam sexo para salvar a alma. Hoje, até um casal de mãos dadas os faz corar
Que romance, que nada. O último dia dos namorados da Índia, 14 de fevereiro, teve muita ação. Um grupo de conservadores hindus saiu às ruas do país à caça de casais que estivessem de abraços ou cheirinhos no cangote. Queriam obrigar os pombinhos a casar na hora. A polícia entrou em ação, e o balanço do dia contou várias prisões e uma leva de cartões comemorativos fofinhos queimados pelos militantes. Ao que se sabe, o grupo não conseguiu levar ninguém ao padre (ou melhor, sacerdote). Mas se vingou cortando os cabelos de todos os apaixonados que viu pela frente.
Ainda que a polícia ficasse quieta, esse pessoal não teria muitos alvos. Toda demonstração pública de afeto é tabu na Índia. Quase toda: homens andam de mãos dadas numa boa (e isso é um costume entre amigos, nada mais). Entre homens e mulheres, nem os casados ficam de chamego na rua. O engraçado é que esse recato todo seria impensável há algum tempo. Conhece o Kama Sutra? Foi a Índia que fez. O sexo tântrico? Foi a Índia que fez. A Bruna Surfistinha? Não, essa é coisa nossa mesmo…Vamos dar uma paradinha no passado para entender como é que a Índia ficou tão pudica.
Lá pelos séculos 6, 5 e 4 a.C., o sexo não era assim vergonhoso. Reis o usavam em rituais públicos, como o Ashvamedha. Funcionava deste jeito: quando um rei queria ter um filho viril, botava um cavalo pra correr nas vizinhanças. Se o cavalo voltasse depois de passar por terrenos inimigos, é porque era um legítimo garanhão. O bicho havia passado no teste, mas acabava sacrificado. Entrava em cena a rainha: ela deveria manter relações sexuais com o cavalo morto para recolher a “semente” da virilidade, como o pessoal pensava que aconteceria. Misturada à semente do rei, a herança do cavalo daria à rainha um príncipe de grande destino à frente.
Mas os ensinamentos de Buda começaram a se espalhar nessa época, e ele dizia que tudo o que liga uma pessoa ao corpo gera sofrimento. Até sexo – que virou algo constrangedor. A mentalidade só mudou 8 séculos depois. Era o chamado Período Dourado da Índia, graças à fertilidade de inovações em campos como astronomia e matemática (a criação do xadrex e do número zero é atribuída a esses anos). Criativos, os indianos mudaram sua visão sobre relacionamentos. “Eles se perguntaram por que o sexo deveria ser uma mera ferramenta de procriação”, diz Rita Banerji, antropóloga e autora do livro Sex and Power. “Defendiam que as pessoas tivessem prazer.” Surgiu o Kama Sutra, uma espécie de guia para atrair o parceiro e aguçar os sentidos durante o sexo. Dizia, por exemplo, que os homens deveriam criar um clima com música antes de partir para o ataque. Mais tarde, viria o sexo tântrico. Era uma filosofia, criada por estudiosos que tentavam encontrar caminhos para a moksha, o conceito hindu de libertação do ciclo de nascimento e morte. Apostavam que a resposta estava na união de corpo e alma. E que o sexo poderia ser uma ferramenta, se seguisse alguns princípios. Homens eram instruídos a beber os fluidos sexuais ou menstruais de mulheres, por exemplo. Sacerdotes do tantra viraram conselheiros de reis e influenciaram todas as religiões da Índia. Mas os ritos libidinosos eram só pra quem passava por um longo treinamento.
Ou seja, não dá pra dizer que a Índia era um bacanal. Mas era isso o que os estrangeiros que chegavam por lá pensavam. Tanto muçulmanos, que dominaram a região da Índia entre os séculos 16 e 18, quanto os britânicos, que assumiram o comando depois, ficaram horrorizados com as vestes dos indianos. Ou a falta delas. Antes de os muçulmanos tomarem o poder, indianos e indianas andavam por aí sem camisa. Chocados, os novos líderes usaram contra a nudez o mais eficiente dos métodos: cobrar impostos. “As indianas começaram a se cobrir e usar véu por causa da vigilância”, diz Rita. Os britânicos também desaprovavam a sensualidade das indianas, e tiveram uma ajudinha de Ghandi para moralizar o país – ele afirmava que o sexo distorcia o espírito.
É por isso que hoje pega mal fazer qualquer menção a romance ou sexo. Atração e desejo são conceitos impronunciáveis em uma sociedade em que nem mesmo os casamentos são por amor. Na Índia, a regra é casar-se com alguém escolhido pelos pais. O caso de Sunil Kumar mostra isso. Guia de turismo da cidade de Jaipur, Sunil tem 30 anos, o que na Índia significa que ele já está quase pra titio. Há um ano seus pais procuram uma noiva para ele. Têm15 finalistas. E Sunil só vai conhecer a mulher de sua vida no dia do casamento. “Dá medo”, diz. A tradição moralista, no entanto, não impede que o sexo esteja nas ruas como em qualquer outro lugar do mundo. Há 10 milhões de prostitutas na Índia. A diferença é que elas usam saris, sem mostrar carne para atrair clientes.
O lado mais cruel é que a repressão exclui da sociedade quem não entra no script. A lei do país prevê prisão de 10 anos ou perpétua para homossexuais. Condenações são raras. Na prática, a lei é usada para chantagear e extorquir. Muitos homossexuais buscam abrigo numa casta marginalizada chamada hrijas, formada por travestis, hermafroditas e eunucos (meninos que teriam sido vítimas de castrações). Na história da ascensão e queda do sexo, esse é um capítulo ainda a ser resolvido pela Índia.
Para saber mais
Sex and Power
Rita Banerji, Penguin, 2009.