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Divertida Mente 2: a origem peculiar do nome da personagem Ennui

A palavra francesa para tédio tem a mesma raiz de "enjoo" e "annoyed" (em inglês). E explica por que há um direito trabalhista chamado Licença Nojo.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 1 jul 2024, 10h14 - Publicado em 28 jun 2024, 16h00

“A maioria dos homens estava estediada demais para falar; eles só permaneciam sentados nos bancos apertados, contemplando o nada, os rostos esfomeados partidos ao meio por enormes bocejos. A sala fedia a ennui.”

Esse é George Orwell narrando seus tempos como morador de rua no livro Na pior em Paris e Londres. Ele estava no refeitório de um albergue público onde os mendigos eram forçados a passar o sábado trancados, sem nada para fazer, se quissem ter direito a uma cama até domingo. A única distração era fumar bitucas de cigarro colhidas da calçada no dia anterior.

“Tédio” é boredom em inglês. A palavra francesa ennui tem grosso modo o mesmo significado e virou moda na Inglaterra e nos EUA por volta de 1820, com seu ar de sofisticação e afetação existencial. Ser francês, naquela época, era ainda mais cool do que é hoje. Cem anos depois, quando Orwell começou sua carreira, ela já havia caído no ostracismo.

Olha só o gráfico de ennui no Google Books Ngram Viewer, uma plataforma que exibe a frequência de apariação de palavras em livros e outros materiais impressos desde 1800. (Ele está considerando apenas obras em inglês, que formam a maior parte do corpus.)

Gráfico mostrando a frequência de aparição da palavra francesa ennui em livros em inglês desde 1800.
(Google Books Ngram Viewer/Reprodução)

Agora, ennui parece estar de volta. O gráfico não fica tão alto desde 1900, e o segundo filme da franquia Divertida Mente, recém-lançado pela Pixar, sacramenta o retorno desse tédio afrancesado ao vocabulário pop.

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Na animação original, a cabeça de uma criança chamada Riley é habitada por cinco homúnculos que representam suas emoções básicas: Alegria, Raiva, Medo, Tristeza e Nojo. Eles passam maus bocados na transição para a pré-adolescência, quando seus pais se mudam de cidade e Riley começa a ter sentimentos mistos.

No segundo filme, ela chega à adolescência propriamente dita e novas emoções aparecem: Ansiedade, Inveja, Vergonha, e Tédio (em inglês, ela se chama Ennui em vez de Boredom). A função da personagem Tédio é basicamente permanecer deitada no sofá com um ar blasé, indiferente a tudo, rolando o feed no celular.

O ennui do francês atual vem da palavra ennoiare no francês medieval. Por sua vez, ennoiare vem do latim vulgar inodiarie, que já significava “aborrecer”, ser uma fonte de transtorno para alguém. (A explicação está todinha no excelente American Heritage Dictionary). 

O verbo inodiare, que era usado no dia a dia de pessoas comuns na transição do Império Romano para a Idade Média, era uma contração de uma expressão latina mais longa, antiga e formal: mihi in odiō est, que significa literalmente “a mim em uma condição de ódio tal coisa está”, mas que na verdade queria dizer simplesmente “eu não gosto”.

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(É fácil perceber que a raiz da palavra “ódio” em português já está aí.)

A palavra ennui já havia sido exportada do francês para o inglês na Idade Média, quando se modificou e deu origem a annoy (“irritar”, “aborrecer”, “amolar”) e ao adjetivo annoyed (“aborrecido” ou qualquer outro sinônimo que você prefira).

É claro que não existem sinônimos ou traduções perfeitas. O ennui francês, costuma-se argumentar, tem um significado mais tridimensional do que o tédio comum, de uma criança desocupada no domingo à tarde.

Trata-se de uma ausência crônica de sentido para a vida – um enfado como o que afligia os mendigos de Orwell, sem qualquer perspectiva de ter emprego ou família; ou o vazio de uma mulher aristocrata do século 19, relegada a a permanecer em casa, usar vestidos desconfortáveis e obedecer ao marido.

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Dito isso, vamos à trivia etimológica mais legal de todas: a expressão latina in odio não deu origem só ao ennui, mas gerou as palavras “nojo”, “enjoo” e “enjoado” em português.

O parentesco parece distante, mas não é tanto assim: a letra “n” já está lá, e o “ódio” tende a virar “odjo” e depois “ojo” por um processo fonético chamado palatização. É só pensar que muitos brasileiros mais velhos tendem a falar “tia” e “dia” na pontinha da língua, como se faz em Recife ou em Pato Branco, enquanto hoje a maioria fala “djia” e “tjia”.

A língua se afasta dos dentes e fica mais pertinho do céu da boca (o tal “palato” da “palatização”), de modo a já estar na posição mais confortável para pronunciar a vocal “i” depois.

Isso explica o nome da Licença Nojo, um termo do jargão jurídico que se refere ao direito de tirar dois dias de folga quando um parente morre previsto no Artigo 473 da CLT. “Nojo”, nesse caso, se refere ao sentido original da expressão latina in odio: algo que causa incômodo, que é um transtorno.

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Como um queijo mofado na geladeira. Ugh, que nojo.

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