Matrix: descubra o que o filme te ensinou sobre filosofia
Alegoria da caverna. Baudrillard... Em tempos de movimento Red Pill, inspirado em uma cena-chave do longa, veja o que há de filosófico de verdade na obra.
Matrix foi lançado em 31 de março de 1999 nos EUA – no Brasil, a estreia só rolou em 8 de maio, mais de um mês depois. É um atraso impensável para um blockbuster atual (os fãs de Vingadores acabariam comprando uma passagem para a gringa), mas era padrão na época: Titanic saiu em 19 de dezembro de 1997 nos EUA, mas só em 16 de janeiro do ano seguinte por aqui.
Todo mundo já sabe a sinopse, mas não custa revisar: durante o dia, Thomas Anderson é um programador insone, que bate ponto em um escritório monótono com divisórias de fórmica. À noite, é um hacker que atende pelo codinome Neo. No submundo virtual, entra em contato com algo chamado Matrix – descrita como “a sensação de que há algo de errado com o mundo”. Ele fica obcecado pela ideia.
Por meio de outra hacker, Trinity, Neo conhece o conspirador Morfeu – não por coincidência, nome da divindade grega do sono. Morfeu revela que o mundo conhecido por Neo, na verdade, é uma realidade virtual.
Máquinas sencientes dominaram o planeta, derrotaram nossa espécie e estão extraindo energia de nossos corpos dormentes em enormes “fazendas de gado humano” – enquanto nos mantêm distraídos em uma simulacro do que era a Terra no auge da civilização humana. Morfeu é um dos líderes da rebelião contra a inteligência artificial, e traz Neo para a realidade com a famosa pílula vermelha.
Começando na Grécia
O despertar de Neo remete à Alegoria da Caverna, um experimento mental proposto por Platão no livro VII da República, escrito por volta de 380 a.C. Platão raramente usava prosa tradicional: deixou boa parte de sua obra na forma de diálogos entre Sócrates e diversos interlocutores atenienses – utilizando-os como personagens para expressar suas ideias.
Parece estranho hoje, mas esse jeito de escrever era adequado à ideia de que a razão só pode ser alcançada por meio do diálogo. Não basta exprimir uma opinião, é essencial saber se ela se mantém verdadeira após o escrutínio dos outros. O conhecimento é construído por meio do questionamento.
No livro VII, Sócrates pede a Glauco que imagine uma caverna em que um grupo de pessoas está aprisionado desde o nascimento. Eles são atados de maneira que só consigam ver a parede da caverna: não enxergam seus próprios corpos, nem os de seus colegas. Exatamente como os humanos em Matrix – que são armazenados pelas máquinas em cápsulas gelatinosas, desacordados.
Atrás dos prisioneiros há uma fogueira, cuja luz é usada para projetar sombras de pessoas, animais e objetos na parede da caverna. Como os prisioneiros nunca tiveram acesso à realidade, passam a pensar que aquele mundo de interações entre sombras é a própria realidade. Uma versão analógica do que acontece no filme.
Sócrates (novamente: na verdade é Platão) então imagina o que o ocorreria se um dos prisioneiros fosse libertado e arrastado à força para fora – o equivalente a tomar a pílula vermelha (o elemento de que grupos machistas atuais, autodenominados Red Pills, se apropriaram em seus discursos contra mulheres e a liberdade sexual feminina). Após muita resistência, ele seria exposto ao mundo e forçado a pensar sobre o que vê. Assim, descobriria que a realidade é muito mais satisfatória que o teatro de sombras, e retornaria à caverna, ansioso por libertar seus colegas.
Ao voltar, porém, o Neo de Platão, agora com as retinas acostumadas à luz, ficaria cego nas trevas. E seus companheiros, percebendo que ele se feriu em sua jornada, se negariam a acompanhá-lo. É mais confortável cultivar a ignorância do que trilhar uma jornada dolorosa contra o conformismo.
Sabor de croissant
O francês René Descartes, que viveu entre 1596 e 1650, é outro alicerce de Matrix. Ele é autor da frase mais famosa da civilização ocidental, “Penso, logo existo”. Em outras palavras: não dá para ter certeza de nada. Mas dá para ter certeza de que você é capaz de duvidar de tudo. Não podemos confiar nas informações fornecidas por nossos sentidos, mas sempre teremos o raciocínio lógico a nossa disposição.
Neo foi capaz de duvidar de seus sentidos no interior da Matrix. Ele foi cético. E sua paranoia cartesiana, no fim das contas, se justificou. Todas as suas experiências de sua vida até então – o sabor de cada prato, a textura de cada objeto, o ruído dos carros na rua – de fato haviam sido geradas artificialmente. As máquinas só não o privaram da capacidade de pensar, e foi essa capacidade que o libertou.
O americano Hillary Putman, que viveu no século 20, atualiza a desconfiança de Descartes com um experimento mental. Ao fazê-lo, chega a um cenário similar ao de Matrix:
“Imagine que um ser humano foi submetido a uma cirurgia por um cientista do mal. O cérebro da pessoa foi removido do corpo e colocado em um tonel com nutrientes que o mantém vivo. Os nervos foram conectados a um computador que faz com que a pessoa tenha a ilusão de que tudo esta perfeitamente normal.”
“Parece haver pessoas, objetos, o céu. Mas, na realidade, todas as experiências são resultado de impulsos eletrônicos viajando do computados para os nervos. O computador é tão eficaz que, se a pessoa tenta levantar a própria mão, ele fará com que ela sinta e veja a mão se erguer. A vítima chega até a pensar que está sentada lendo estas palavras sobre a suposição absurda, mas interessante, de que há um cientista que remove o cérebro de uma pessoa de seu corpo e o coloca em um tonel.”
O americano Robert Nozick deu um passo além: e se o cientista na verdade fosse um cara bacana – e pudesse programar a máquina de maneira a fazer seu cérebro ter a ilusão de estar vivendo tudo que você sempre quis viver? Você optaria por realizar seus maiores desejos? Ou se privaria da experiência? Adianta ser um rock star se na verdade não há alguém ouvindo sua música? Ou isso não importa quando todos os seus sentidos lhe dizem que, na verdade, os fãs existem?
Indireta cidadã
Nos primeiros minutos do filme, Neo esconde um disquete com um programa de computador ilegal no interior de um livro do francês Jean Baudrillard, intitulado Simulacros e Simulação. Na obra de 1981, Baudrillard argumenta que as simulações e imitações da realidade se tornaram mais reais que a realidade em si.
Falando assim, fica difícil entender, então vamos de exemplo: a população dos países ocidentais desenvolvidos é extremamente sedentária; andar, correr ou cavalgar não são mais atividades que fazem parte do cotidiano. Fazer cooper, por outro lado, é um passatempo cobiçado: nós compramos sapatos e roupas especiais, instalamos aplicativos no celular e compramos livros sobre o assunto. Exatamente como a Barbie, que em cada embalagem simula uma profissão ou atividade.
As irmãs Wachowski admitiram abertamente a influência do pensamento de Baudrillard no roteiro. Ele, por sua vez, esnobou o filme. Mas mesmo que Matrix tenha transformado um ensaio que se opõe à cultura de massa em mais cultura de massa, uma coisa é impossível negar: ele fez a massa pensar sobre a própria cultura. Com uma ajudinha de couro. Óculos escuros. E outras escolhas fashion… duvidosas.