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O dia em que Francis Ford Coppola deu uma aula surpresa em Curitiba

Saiba como uma coordenadora e um crítico de cinema organizaram uma palestra do diretor de "O Poderoso Chefão" durante uma de suas visitas ao Brasil.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 28 out 2024, 22h53 - Publicado em 26 out 2024, 16h00

A suíte presidencial do Bourbon Hotel, no centro de Curitiba, tem 305 metros quadrados. Há uma cozinha completa ali dentro, além de banheira de hidromassagem, sauna e uma mesa de jantar para seis pessoas. A diária custa de R$ 5,3 mil a R$ 10 mil.

O Bourbon abriu em 1988. Está a poucos passos da Praça Tiradentes, marco zero da capital paranaense, e de outros pontos turísticos, como o Largo da Ordem e a Rua 24 Horas. O estabelecimento pertence à família Vezozzo, que plantava café no norte do estado antes de entrar no ramo hoteleiro, em 1963 (a rede começou em Londrina).

A suíte presidencial do Bourbon já recebeu vários famosos, como B.B. King, Elton John e a rainha Silvia da Suécia, cuja mãe é brasileira. Em 2003, o quarto hospedou por duas semanas um dos cineastas mais influentes dos últimos 50 anos: Francis Ford Coppola, o diretor da trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990) e de Apocalypse Now (1979).

Coppola esteve no Brasil a trabalho. Ao lado do diretor de arte Dean Tavoularis, ele visitou várias cidades em busca de inspiração para Megalópolis, épico de ficção científica que o cineasta havia concebido ainda no final dos anos 1970 – e que chegou finalmente aos cinemas em 2024. No Brasil, o filme, protagonizado por Adam Driver, estreia em 31 de outubro.

(Os bastidores de Megalópolis foram conturbados. O projeto só saiu do papel porque Coppola bancou a produção do próprio bolso: foram US$120 milhões, que ele conseguiu depois de vender parte do seu negócio de vinhos. Ainda assim, ele penou para que o filme fosse distribuído. Mais sobre essa história aqui.)

O objetivo da viagem de Coppola em 2003 era encontrar soluções urbanísticas inovadoras – a história de Megalópolis gira em torno de um arquiteto visionário e seu projeto para reconstruir uma cidade após um desastre. Mas é claro que o diretor dedicou boa parte do tempo para turistar (além de Tavoularis, ele veio acompanhado do poeta Tony Dingman, seu amigo). Coppola frequentou cafés, pizzarias – e atendeu ao pedido de Denize Araújo, coordenadora da pós-graduação em cinema da Universidade Tuiuti do Paraná, para dar uma aula a seus alunos.

“Pedi meia hora de conversa, mas ele disse que seria muito pouco. Acabou passando quase três horas conosco”, disse Araújo. Vamos entender como Coppola foi parar na sala de aula da Tuiuti – e o que ele disse por lá.

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A chegada

“Coppola soube de Curitiba durante uma feira de vinhos nos EUA, quando ficou amigo de Alceu Vezozzo Filho, da rede de hotéis Bourbon”, conta Marden Machado, jornalista, crítico de cinema e que, na época, era orientando de Araújo. Vezozzo, então, teria a dito ao diretor que o hospedaria na cidade caso ele a visitasse.

Dito e feito: Coppola desembarcou em Curitiba no dia 30 de julho de 2003 e se abrigou no Bourbon. O cineasta logo entrou em contato com Jaime Lerner (1936-2021), que exerceu três mandatos como prefeito da cidade e havia acabado de terminar sua gestão como governador do Paraná.

Foto do Coppola com Marden Machado.
O diretor Francis Ford Coppola e o jornalista e crítico de cinema Marden Machado. (Denize Araújo e Marden Machado - Acervo pessoal/Reprodução)

Lerner, que também era arquiteto, foi um dos maiores nomes do urbanismo mundial. Em Curitiba, ele construiu o primeiro calçadão para pedestres do Brasil na rua XV de Novembro, no centro. Durante seus mandatos, a cobertura vegetal da cidade cresceu graças a novos parques e praças. Além disso, foram abertos espaços que hoje são atrações locais, como o Jardim Botânico e a Ópera de Arame.

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Ainda nos anos 1970, Lerner introduziu um novo modelo de transporte público em Curitiba, com faixas exclusivas de ônibus e os famosos “tubos” de visual futurista por onde os passageiros embarcam. Foi um dos primeiros sistemas BRT (bus rapid transit) do mundo. Coppola, claro, andou de busão – e elogiou a limpeza das ruas.

Em sua passagem pelo Brasil, o diretor visitou ainda outras cidades, como Rio, Salvador, Recife e Foz do Iguaçu. “Ele detestou Brasília, veja só. Preferiu o urbanismo de Curitiba”, conta Marden.

Coppola viveu como um local. Sem seguranças nem assessores, ele batia ponto no Caffé Metrópolis (não confundir com “Megalópolis”) e chegou a ver um jogo de futebol na Arena da Baixada: Athletico Paranaense x Paraná, clássico regional. Comprou bananas numa mercearia e cozinhou no restaurante italiano A Pamphylia, no bairro Batel– até hoje, há uma pizza marguerita feita com massa grossa no cardápio que leva o nome do diretor.

“Ele também foi a um baile de debutante num clube da cidade. Chegou até a pegar uma câmera para filmar”, diz Marden. Não há registros desse momento na internet – mas gosto de pensar que o diretor de Drácula (1992) gravou uma festa de 15 anos no sul do Brasil.

Foto do Coppola com a professora Denize Araújo e alunos do curso.
A professora Denize Araújo, o diretor Francis Ford Coppola e o poeta Décio Pignatari. (Denize Araújo e Marden Machado - Acervo pessoal/Reprodução)
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O convite

Marden, piauiense que mora em Curitiba desde 1992, descobriu que Coppola estava hospedado no Bourbon graças a um colega, o jornalista Reinaldo Bessa. Ele logo repassou a informação para Araújo (que fundou a pós em cinema na Tuiuti em 1997). A professora, então, decidiu arriscar: no dia 1º de agosto, deixou uma carta para Coppola na recepção do hotel, convidando-o para uma aula.

Denize não esperava receber uma resposta, mas ela chegou – e rápido. Coppola se dispôs a ir à universidade no dia seguinte. “Mas confesso que, até o momento em que o busquei no Bourbon, ainda tinha dúvidas se ele iria de fato.”

No dia 2, Denize foi de carro para o hotel, acompanhada de seu filho. No caminho, Coppola e ela conversaram sobre a década em que a professora morou nos Estados Unidos para fazer seu mestrado e doutorado. No campus da Tuiuti, eles compartilharam o horário da aula de documentário do professor Fernão Ramos.

A aula começou vazia – o clima, afinal, era de incerteza. “Convidei pouca gente. Vai que ele não aparecia, né?”, conta Denize. Aos poucos, alunos e demais curiosos foram se acomodando na sala (provavelmente, atraídos por mensagens de texto do tipo “ele veio mesmo!”). “Não houve cobertura da imprensa naquele dia, porque ninguém acreditava que ia rolar. As fotos são todas caseiras”, conta Marden.

Ao todo, cerca de cem pessoas compareceram. Dentre elas estavam os escudeiros de Coppola, Dingman e Tavoularis; o poeta brasileiro Décio Pignatari (1927-2012), que na época lecionava na Tuiuti; e o roteirista Murilo Hauser, então aluno da universidade que, em 2024, venceu um prêmio no Festival de Cannes pela coautoria do roteiro de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles.

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Baita plateia.

A aula

Coppola não preparou slides. A aula, na verdade, funcionou mais como uma conversa. O diretor começou falando sobre como as câmeras digitais (e não mais as películas de filme) estavam virando o padrão-ouro para as gravações. Coppola reconheceu a revolução, em curso desde o finalzinho do século 20, mas não pareceu se preocupar.

“Isso é fácil. Difícil é a parte em você não precisa de tecnologia”, disse o cineasta*, referindo-se aos aspectos artísticos de uma obra audiovisual, sobretudo o roteiro. Coppola também frisou que os diretores costumam se preocupar muito com as câmeras e a edição, mas às vezes esquecem de estudar e tentar entender a atuação.

Sobre os seus filmes, o cineasta estava feliz pelos DVDs, que se consolidavam como uma nova alternativa de distribuição e aliviavam o peso da bilheteria para medir o sucesso de um longa (mal sabia ele que o streaming mudaria tudo isso). Além disso, ele disse que havia percebido mudanças nos hábitos de consumo do público – e isso o levou a lançar versões estendidas de obras que sofreram vários cortes antes de chegar às telonas, como Apocalypse NowVidas Sem Rumo (de 1983; um dos primeiros trabalhos de Tom Cruise e Patrick Swayze).

Coppola falou também sobre processo criativo. “Escrever é uma coisa que se beneficia do trabalho diário. Você deve fazê-lo toda manhã e tentar encontrar seu coração, sua voz. Escreva sobre sua família, suas ideias. Imite autores que você gosta.”

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Ao ser perguntado sobre o cinema brasileiro, Coppola confessou ter assistido a Central do Brasil (1998), mas que ainda não havia visto Cidade de Deus (2002), a sensação daquela época. “Apesar disso, pude ver no Rio de Janeiro um filme que não chegou a nenhum de vocês.” Ele estava se referindo a Chatô: O Rei do Brasil: o diretor Guilherme Fontes mostrou ao americano uma versão do filme, cuja produção havia começado em 1995.

(Chatô conta a história do magnata da mídia Assis Chateaubriand, brasileiro que comandou os Diários Associados e inaugurou a Tupi, primeira TV do Brasil. Tal qual Coppola com Megalópolis, Fontes levou anos para lançar o filme, que só estreou em 2015.)

“Acho que vocês gostariam de saber que eu era amigo do Glauber Rocha”, continuou Coppola. “Ele estava na minha casa em São Francisco porque estava tendo um pequeno problema com o governo daqui.”

Diretor de obras-primas do cinema nacional, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (2014) e Terra em Transe (1967), Rocha se exilou para fugir da ditadura militar (anos mais tarde, foi revelado que o regime pretendia matá-lo). “Nós costumávamos beber e ouvir Vila-Lobos. E ele chorava: ‘eu quero voltar para casa, para o meu país’.”

Foto do Coppola com os alunos de Curitiba.
Da esquerda para a direita: Glauber Gorski (pesquisador em cinema), Coppola, Murilo Hauser, Fernando Severo (doutor em cinema e audiovisual), Marcelo Correia (pesquisador em cinema) e Claudia Guimarães. (Denize Araújo e Marden Machado - Acervo pessoal/Reprodução)

Coppola voltou a Curitiba em 2008. Foi uma passagem mais breve. Ele jantou com Lerner e Vezozzo (que se tornaram seus amigos) antes de seguir rumo a Buenos Aires, cidade pela qual também se apaixonou. Na capital argentina, gravou o longas Tetros (2009) – e a casa em que morou durante as filmagens foi transformada por ele em um hotel de luxo da rede Bourbon.

Não dá para saber se Megalópolis, que passou por tantas revisões, reescritas de roteiro e mudanças de elenco ao longo, vai mostrar algo que remeta a Curitiba. Mas, tratand0-se de Coppola, tudo é possível. Vamos combinar que uma cena do Adam Driver esperando por um ônibus dentro de um tubo seria bem legal de ver.

Faz a boa aí, Francis.

*As aspas de Coppola foram tiradas da revista Promover, que era publicada pela Universidade Tuiuti do Paraná.

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